"Stanziani demonstra que a história do trabalho livre não é compreensível sem aquela do trabalho forçado. E vice-versa. Por outro lado, não se trata de histórias paralelas ou em sucessão uma à outra. Não é verdade que o trabalho forçado tenha sido apenas um negócio da Europa de séculos atrás ou dos mundos não europeus. Assim como não é verdade que um trabalho inteiramente livre tenha sido característico da Europa burguesa, democrática e industrializada. Ao contrário, o trabalho livre e o trabalho forçado se sobrepuseram 'um ao outro'. A sua história é uma história entrelaçada. Uma única história".
O artigo é de Paolo Mieli, escritor italiano, publicado por Corriere dela Sera, 05-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Um grito, um grito estridente, de uma desolação sem fim, perfura lentamente o ar opaco”. O grito é o do traficante de marfim Kurtz, que vive isolado à frente de uma comunidade de nativos em um lugar remoto na floresta africana acessível apenas por via fluvial. Mas o que sai das páginas de Coração de trevas (Companhia do Bolso, 2008), de Joseph Conrad, é também o grito de uma condição particular de vida. E de trabalho. Em sua vida aventureira - como Jocelyn Baines já escrevia em Joseph Conrad. Una biografia critica (Mursia) – o autor de Coração de trevas conheceu muitos trabalhadores que no final do século XIX ainda viviam em condições de servidão e extrema dependência: os servos do Império Russo, os assalariados e marinheiros do Império Francês ou Britânico, os escravos e migrantes no Oceano Índico. E pode-se sempre dizer que ele tenha escutado exatamente aquele mesmo grito já ouvido nas profundezas da floresta do Congo.
Conrad publicou Coração das Trevas em três partes, em 1899, na revista escocesa Blackwood's Magazin. Depois, num volume, em 1902. Na década de 1970, o escritor nigeriano Albert Chinualumogu Achebe definiu aquele livro como "racista" porque, segundo ele, oferecia uma representação da África como "um campo de batalha metafísico desprovido de qualquer humanidade, no qual o errante europeu entra por sua conta e risco”.
Na realidade Conrad - escreve Alessandro Stanziani no extraordinário Le metamorfosi del lavoro coatto. Una soria globale del XVIII-XIX secolo publicado pela Il Mulino – sem renunciar à ideia de que a Europa havia se dado uma "missão civilizadora", em Coração de trevas ele estava nos contando algo diferente. Mais profundo. Conrad deu um relato inequívoco de seu desconcerto diante da "brutalidade do mundo colonial" e de sua visível sobrevivência, apesar de formalmente abolido, de formas de escravidão. Formas de escravidão que produziram atrocidades de que teriam restados amplos vestígios nos arquivos (ainda que os documentos sobre o Congo, ressalta Stanziani, fossem "muitas vezes e voluntariamente enganadores, apresentando os colonos de uma forma favorável").
O aspecto mais surpreendente, continua Stanziani, "não é tanto o silêncio das autoridades coloniais da época", as quais tentaram "desesperadamente e sistematicamente silenciar qualquer denúncia dos crimes cometidos". O mais incrível é "que esse silêncio só foi quebrado muito recentemente". Para dizer a verdade, as primeiras denúncias documentadas e implacáveis foram aquelas de 1905 na França pelo explorador italiano naturalizado francês Pierre Savorgnan de Brazza.
Brazza, porém, morreu naquele mesmo ano e mais tarde (1906) o caso foi tratado - com alguma excessiva cautela - pela comissão chefiada por Jean-Louis de Lanessan. O morno relatório Lanessan foi depois impresso em apenas dez exemplares que incrivelmente permaneceram escondidos nos arquivos por decisão do então Ministro das Colônias Raphaël Milliès-Lacroix. E permaneceram enterrados até o final da década de 1980, quando a estudiosa Elisabeth Rabut os desenterrou e os analisou minuciosamente. Finalmente, em 2014, a versão integral do relatório Brazza foi publicada pela editora independente “Passager clandestin”.
Posteriormente, foi publicado um exaustivo livro do historiador estadunidense Adam Hochschild, Gli spettri del Congo. La storia di un genocidio dimenticato (Garzanti). Hochschild reconstruiu a história do Congo, "descoberto" pelo explorador Henry Morton Stanley e "doado" em 1885 ao rei Leopoldo II da Bélgica que o administrou como uma imensa propriedade, uma posse pessoal. Sob a insígnia de um sistema de trabalho de quase escravidão que lhe permitia uma apropriação escandalosa do marfim e da borracha. Algo muito diferente do que acontecia nas colônias da mesma época. O pastor batista George Washington Williams percebeu isso e escreveu ao presidente dos Estados Unidos Benjamin Harrison para denunciar justamente os horrores conradianos. Depois dele foi a vez de Edmund Morel que voltou sobre aquelas denúncias. Em seguida, o afro-americano William Sheppard, o cônsul irlandês Roger Casement, os escritores Arthur Conan Doyle e Mark Twain.
Até que em 1908 Leopoldo II foi obrigado a entregar aquela sua colônia pessoal ao seu próprio país. Depois de ter ordenado a destruição de documentos que comprovavam extermínios e saques. Que reapareceram somente agora. Inacreditável.
Por que um silêncio tão prolongado? Por que tais omissões historiográficas? Não para ocultar os crimes de uma sociedade escravista ou pós-escravagista (aliás denunciados nos termos mencionados acima).
Ou não apenas por isso. Mas pelo fato de que a partir de uma análise mais aprofundada do que aconteceu no Congo é possível entender - e este é o principal mérito do estudo de Stanziani - como, em muitas partes do mundo, o trabalho livre e o trabalho forçado (na prática, trabalho escravo) continuaram a coexistir. Por muito tempo. Por décadas. Até hoje em algum lugar do planeta. Em uma substancial indiferença à abolição formal da escravatura.
Essa indiferença teve uma origem ideológica. Adam Smith acreditava que a escravidão não fosse "produtiva" e que, consequentemente, "a racionalidade econômica e o desejo de lucro a superariam". Uma tese, que ainda hoje é aceita por muitos estudiosos, mas que, segundo Stanziani, é, para toda evidência, "empiricamente falsa".
A escravidão nos Estados Unidos, escreve Stanziani, foi abolida por razões políticas e morais, certamente não econômicas, já que foi "lucrativa até o fim". Cerca de um século mais tarde, Max Weber, como Marx antes e muitos outros depois dele, retomou o teorema de Smith: o capitalismo seria "incompatível com o trabalho forçado". Depois das teorizações de Smith, Marx, Weber, os paradigmas convencionais da história colonial ocultaram os vínculos entre capitalismo e trabalho forçado.
Os especialistas dos movimentos sindicais na França e no Reino Unido nunca se interessaram pela escravidão. Por sua vez, os historiadores da escravidão - como, por exemplo, Olivier Pétré-Grenouilleau em La tratta degli schiavi. Saggio di storia globale (il Mulino) ou Karin Pallaver em Lungo le piste d’Africa. Commerci locali e strategie imperiali in Tanzania (Carocci) - não acompanharam muito os debates "sobre o surgimento de acordos coletivos na França ou sobre os salários de aprendizes na Inglaterra".
E também em livros como Schiavi in un mondo libero. Storia dell’emancipazione dall’età moderna a oggi (Laterza) de Gabriele Turi ou La schiavitù in età moderna (Laterza) de Patrizia Delpiano, segundo Stanziani, "a ênfase colocada nas rupturas abolicionistas tende a ignorar a persistência", após essas cesuras de época, de "formas ocultas da escravidão e servidão". Quanto ao que Robert Castel definiu como Le Metamorfosi della Questione Sociale (Sellino), teriam se produzido, segundo muitos estudiosos, "como se as escravidões e as colônias não existissem". Ênfase estendida por Stanziani também a Chiara Giorgi e Ilaria Pavan por sua Storia dello Stato sociale in Italia (il Mulino).
Essas negligências também se devem a outro motivo. Até a década de 1980, os historiadores, especialmente os de viés marxista, ressaltavam a importância da revolução de 1848 que, segundo eles, marcava "o fim do compromisso entre aristocracia latifundiária do Antigo Regime e mundo pós-revolucionário". Um fim que determinou o advento do capitalismo liberal burguês. Foi então Arno Mayer quem mudou a data do divisor de águas para a Primeira Guerra Mundial. Outros historiadores, como Christopher Bayly e Jürgen Osterhammel, contribuíram para "relativizar" a importância (deste ponto de vista) do 1848. Mas Stanziani acrescenta uma variável adicional, ausente da historiografia mencionada acima: a estreita relação que em 1848 liga as mutações na França e na Europa e a abolição da escravatura nos mundos coloniais.
O resultado é um quadro muito mais articulado em que se nota a persistência do poder das aristocracias fundiárias, o nascimento dos operários camponeses, o papel das pequenas unidades produtivas, mas também, nas colônias, a existência residual de “formas ocultas de escravidão”.
Esse último elemento "condiciona, por sua vez, a evolução das instituições laborais na própria Europa". A escravidão - ora "concebida e praticada em oposição às novas configurações do trabalho", em alguns casos "associada a estas últimas" - constitui "um ponto de referência inevitável" mesmo após sua abolição.
Constata-se que - apesar de uma determinada historiografia anglo-saxônica (mas não só) que enfatiza o "progresso da liberdade de trabalho que, por sua vez, encorajaria a abolição da escravatura" - no Reino Unido, ainda mais do que na França, "o trabalho livre está sujeito a formas significativas de repressão e coerção" (a ponto de "ser alvo de procedimentos penais").
Com a diferença de que no Reino Unido “a coerção passa pelo contrato e pelas leis sobre os pobres”, enquanto na França “se expressa através da carteira de trabalho e da luta contra a vagabundagem”.
No Oceano Índico, a abolição do tráfico primeiro e depois da escravatura (1832-39 para as Ilhas Maurício, 1848 para a Reunião) é seguida por um longo período durante o qual dominam os contratos de dependência servil. Os trabalhadores imigrantes veem seus direitos pisoteados enquanto as condições reais são muitas vezes semelhantes às da época anterior. Na verdade, piores. Nas Ilhas Maurício, apesar dos esforços do movimento abolicionista que tentou denunciar as formas de "escravidão oculta" após a década de 1930, as condições de trabalho e de vida dos imigrantes permanecem extremamente duras. Cruéis. Entre 1860 e 1870, são apresentadas pelos proprietários 70.000 denúncias contra igual número de trabalhadores. Na grande maioria dos casos, trata-se de denúncias de deserção ou absenteísmo. Ao longo dessa década, cerca de 14.000 trabalhadores são julgados e quase sempre condenados. E se uma parte das 70.000 denúncias não teve seguimento, é porque os proprietários preferem começar a procurar novos trabalhadores do que insistir em procedimentos judiciais caros e de resultados incertos contra os fugitivos.
Conrad morreu em 1924. Nesse mesmo ano - observa Stanziani - a Liga das Nações criou uma Comissão para lutar contra a escravidão. Essa Comissão, no entanto, limita-se a constatar a persistente disseminação do "trabalho forçado" pelo mundo e encontra motivos de comprazimento pelo desaparecimento da "verdadeira escravidão". Precisamente naquele 1924 (para ser preciso em 10 de março) no meio do Oceano Índico um contingente de trabalhadores originários de Madagascar desembarcou em Reunião a bordo do vapor "Le Bourbonnais". Trata-se do terceiro desembarque em poucas semanas. Há 1.016 homens, 167 mulheres e 8 crianças a bordo. A maioria deles, incluindo crianças, será destinada à construção da estrada para Cilaos. Eles vão quebrar pedras e cavar valas por uma tigela de arroz.
A leitura de Stanziani é muito diferente daquela de quem - de Adam Smith aos Whigs britânicos passando por Tocqueville - fixaram um nexo indissolúvel entre capitalismo e democracia. Mas está distante também daquela de Marx e Weber, onde ambos associavam capitalismo e trabalho assalariado. Tais visões nada mais foram do que um "ato de fé", no momento em que na Rússia, como na Europa, nos Estados Unidos e, obviamente, na África, "capitalismo e mercados se desenvolveram perfeitamente graças ao trabalho forçado". Stanziani demonstra que a história do trabalho livre não é compreensível sem aquela do trabalho forçado. E vice-versa. Por outro lado, não se trata de histórias paralelas ou em sucessão uma à outra. Não é verdade que o trabalho forçado tenha sido apenas um negócio da Europa de séculos atrás ou dos mundos não europeus. Assim como não é verdade que um trabalho inteiramente livre tenha sido característico da Europa burguesa, democrática e industrializada. Ao contrário, o trabalho livre e o trabalho forçado se sobrepuseram “um ao outro”. A sua história é uma história entrelaçada. Uma única história.