14 Setembro 2018
Como responder ao retorno da ‘questão social’? O conceito de Robert Castel diz respeito ao crescente número de ‘desfiliados’, aqueles que estão fora da condição salarial ou subordinados a ela numa situação de ausência de direitos universais. Quais são as alternativas para enfrentar o esgotamento da sociedade salarial? O que Robert Castel proporia? A indagação é de Cesar Sanson, professor de sociologia do trabalho na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN em artigo que retoma a obra do sociólogo francês Robert Castel.
Uma das contribuições mais significativas de Robert Castel em sua obra As Metamorfoses da Questão Social. Uma crônica do salário (1995) foi mostrar que com o surgimento da Revolução Industrial e o advento da modernidade liberal, a ‘condição salarial’ se tornou uma resposta a ‘questão social’. Em Castel a questão social diz respeito aos pobres que compreendem os supranumerários, os inempregáveis, os desfiliados, os desvalidados, os dissociados, os desqualificados, os supérfluos, os desterritorializados , aqueles enfim que se encontram a margem da sociedade.
Na sociedade feudal, diz Castel, tínhamos uma ‘sociabilidade primária’ que dava conta da questão social. Essa sociedade conjugava dois vetores principais de interdependência que concorrem para sua estabilidade: as relações horizontais no seio da comunidade rural e as relações verticais da sujeição senhorial. Cada indivíduo encontra-se, assim no interior de uma rede complexa de trocas: a dependência em relação ao senhor eclesiástico ou laico e a inscrição no sistema das solidariedades de vizinhança (que se faz pela inscrição familiar e social e pela territorialidade - redes primárias). A comunidade remedia os fracassados da sociabilidade primária (os órfãos, os enfermos, os inaptos para o trabalho). São sociedades “asseguradas”, sociedades “providas” na definição de George Duby, citado por Castel.
Com o surgimento das primeiras cidades que concentram uma aglomeração maior de pessoas, quebras-se a sociabilidade primária porque surge o fenômeno da desterritorialização, das pessoas que se encontram desterritorizadas. São os chamados ‘vagabundos’ porque acumulam a desvantagem de estar fora do trabalho e fora da ordem da sociabilidade porque são estrangeiros. A medida mais adotada em relação ao vagabundo é o banimento que representa uma escapatória, graças a qual uma comunidade se desembaraça de uma questão insolúvel, para colocá-lo num outro lugar. Prisões, deportações, pena capital, internamento são práticas comuns destinadas aos vagabundos. São declarados inimigos públicos.
Castel esclarece que os vagabundos representam o subproletariado urbano e rural. A maior parte deles representaria o que hoje chamamos de desempregados subqualificados em busca de um emprego. Na sociedade pré-industrial são os ‘estrangeiros’ que procuram meios de sobreviver fora de sua terra. Nas sociedades pré-industriais, a questão social levantada pelo ‘vagabundo’ é tratada como caso de polícia. Por isso, o tratamento dispensado aos mesmos é o da repressão, pois representam uma ameaça à ordem pública. A questão da vagabundagem pelo que revela e oculta foi o modo pelo qual se expressou a ‘questão social’ na sociedade pré-industrial, diz o autor.
Na sociedade pré-industrial a ‘vagabundagem’ representa a essência negativa do assalariado. O vagabundo é um assalariado puro, só possui sua força de trabalho. Mas lhe é impossível entrar numa relação salarial para vendê-la. Isso porque nas cidades, as corporações de ofício (forjadores, carpinteiros, sapateiros, seleiros, tecelões) dispõem do monopólio da produção. A unidade de base desse modo produtivo é o ofício constituído pelo mestre artesão, proprietário de suas ferramentas, de um ou dois empregados (os companheiros) e de um ou dois aprendizes. Esta comunidade de ofício persegue um duplo objetivo: assegurar para si o monopólio do trabalho nas cidades e evitar que exista uma concorrência interna entre seus membros. Fora das corporações de ofício não há propriamente um mercado de trabalho: nem liberdade de contratação, nem liberdade de circulação. A grande divisão social do trabalho no período se dá, portanto, na organização artesanal através dos mestres e suas oficinas com os companheiros e aprendizes. As corporações de ofício traçam a linha divisória entre os incluídos e os excluídos.
Qual é a grande novidade da modernidade liberal, da sociedade industrial? Castel destaca que a verdadeira descoberta que o século XVIII promove não é a da necessidade do trabalho, mas sim, a da necessidade da liberdade do trabalho. Para tanto se faz necessário a ruptura com a sociedade estamental, de status, de condições, regida pelas tutelas. É preciso destruir os dois modos de organização do trabalho até então dominante: o trabalho regulado (das corporações de ofício – as jurandes) e o trabalho forçado (o modelo da corvéia, as instituições de correção, os depósitos de mendicância, as instituições de caridade). Portanto, o livre acesso ao trabalho e a instituição de um livre mercado do trabalho marcam o advento de um mundo social racional por meio da destruição da ordem social arbitrária da antiga sociedade.
Junto com este movimento de liberalização do mercado e do trabalho há uma redefinição do papel do Estado. Trata-se da constituição de Estado mínimo que deve contentar-se em suprimir os obstáculos ao mercado e garantir que aqueles se entreguem livremente ao seu trabalho. O papel do Estado, portanto, é garantir que o jogo dos interesses (mercado – trabalho) possa se expressar livremente. Doravante, a questão social diz respeito agora a reorganização social do trabalho: A assistência se dará a partir do trabalho. O contrato marca a passagem para a assistência em torno do qual se cria uma rede de assistência. Agora todos têm direito à subsistência que se dá pelo trabalho.
A novidade, portanto, da sociedade industrial foi a de circunscrever a cidadania à condição operária. Essa nova forma de tratar a questão social, incluir todos e todas através do trabalho, não se deu sem conflitos, mas logrou êxitos. A sociedade salarial, diz Castel, parecia seguir uma trajetória ascendente que, num mesmo movimento, assegurava o enriquecimento coletivo e promovia uma melhor repartição das oportunidades e garantias.
Ocorre que a centralidade do trabalho vem sendo brutalmente colocado em questão e com ela todo o suporte de identidade social e pertencimento à sociedade entraram em crise. O próprio Castel percebe isso e comenta que há um novo crescimento de ‘vulnerabilidade de massa’ que se pensava afastado. Assim como o pauperismo do século XIX estava inserido no coração da dinâmica da primeira industrialização, também a precarização do trabalho é um processo central, comandado pelas novas exigências tecnológicas da evolução do capitalismo moderno, diz ele.
Três pontos da cristalização da nova questão social podem ser distinguidos afirma Castel:
1 - desestabilização dos estáveis: classe operária integrada e assalariados da pequena classe média ameaçados (a mobilidade ascendente se desfaz);
2 - instalação da precariedade: trajetórias erráticas feitas de alternância de emprego e não emprego;
3 - déficit de lugares: trabalhadores que não tem mais lugar no processo produtivo: trabalhadores que estão ‘envelhecendo’, com menos de 50 anos e jovens à procura de um primeiro emprego que vagam de estágio em estágio e de um pequeno serviço a outro.
Esta inutilidade social, diz Castel, desqualifica as pessoas também no plano cívico e político. Há uma perda de identidade dos que não se encaixam na sociedade salarial e assiste-se a erosão dos suportes relacionais como família, relações de vizinhança, participação em grupos, associações, partidos, sindicatos.
O núcleo da questão social seria hoje, segundo Castel, o retorno dos desfiliados – aqueles que estão fora da sociedade salarial. Porém, pergunta ele: O surgimento da nova questão social nos permite afirmar que a sociedade salarial morreu? É possível recolocar no jogo social as populações invalidadas pela conjuntura e acabar com uma hemorragia de desfiliação que ameaça deixar todo exangue o corpo social?
Segundo ele, estamos diante de uma bifurcação: aceitar uma sociedade inteiramente submetida às exigências da economia ou construir uma figura do Estado Social à altura dos novos desafios. Isto porque, diz ele, nas últimas décadas o Estado que na revolução industrial moderna ganhou papel de regular as relações mercado-trabalho, hoje perde esta função e a economia se autonomizando desagrega a condição salarial.
Castel sugere que é preciso assegurar a proteção social de todos os cidadãos e defende um Estado social forte. Para ele, o surgimento da nova questão social, não nos permite afirmar que a sociedade salarial morreu. O que ele percebia claramente era a crescente degradação da condição salarial.
Castel nos deixou em 2013. Certamente estaria ainda mais pessimista com os contornos que o mundo vai assumindo com a crescente degradação da condição salarial. Não se pode saber se Castel vendo a realidade hoje, defenderia o retorno ao assalariamento como alternativa a ‘questão social’. Certamente, perspicaz como sempre foi, reconheceria as impossibilidades de um retorno ao pleno emprego.
Crítico das políticas de caráter provisório que estavam se transformando em permanentes, Castel não era muito simpático à proposta da Renda Mínima Universal ou algo similar, entretanto, considerando-se a impossibilidade da inclusão social via emprego para milhares de pessoas, é possível que hoje a reconhecesse como uma alternativa e uma reposta à emergente questão social.
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O retorno da ‘questão social’. Revisitando a obra de Robert Castel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU