"Seguindo a historiadora Joanna Bourke, é oportuno adotar uma abordagem interseccional das violências sexuais, que permita considerá-las em relação às diversas discriminações que ocorrem nas instituições eclesiais e colocar em discussão a instrumentalização de um discurso da misericórdia, imposto às vítimas e que constitui um terreno fértil para a violência e a discriminação", escreve Agnès Desmazières, historiadora e teóloga, especialista em catolicismo contemporâneo e professora no Centre Sèvres-Facultés jésuites de Paris, em artigo publicado por Le Monde, 14-02-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Os repetidos escândalos sexuais que atingem a Igreja Católica mostram sua dificuldade em superar uma cultura ultrassecular de sigilo e impunidade, constata a historiadora e teóloga Agnès Desmazières.
A recente publicação de dois relatórios sobre as violências sexuais cometidas pelos irmãos dominicanos Thomas e Marie-Dominique Philippe e por Jean Vanier, fundador da L'Arche, destaca como uma cultura de silêncio e da impunidade tenha podido contribuir para a perpetuação das violências sexuais na Igreja Católica por décadas.
A condenação das violências sexuais tem sido um leitmotiv do discurso eclesial desde os primeiros séculos da Igreja. No início do século IV, o concílio de Elvira condenava as violências sexuais perpetradas por padres sobre jovens garotos, sinal de um fenômeno já presente na época. As violências sexuais foram consideradas antes de tudo na legislação da Igreja no âmbito do sacramento da confissão.
Recorrentemente, a Igreja condenou os avanços sexuais dos padres durante o sacramento da confissão. Estando na esfera sacramental, tinham um caráter sacrílego e, portanto, criminoso. É por isso que o "crime de solicitação" foi inventado no século XVI. Começando pela Bula Universi Dominici gregis (1622) do papa Gregório XV, contata-se uma frequente atividade legislativa em relação ao crime de solicitação e o recorrente aparecimento de novos procedimentos judiciais, indicando tanto uma preocupação crescente pelas violências sexuais cometidas no confessionário, quanto as dificuldades em enfrentá-las.
A afirmação do crime de solicitação coincide com o desenvolvimento de uma pastoral da confissão nas décadas seguintes ao Concílio de Trento (1542). Este último impôs uma todos os fiéis a confissão anual. Sem perder a sua dimensão consoladora, o sacramento de confissão tornava-se sobretudo um instrumento de controle das populações católicas. O crime de solicitação representava, portanto, uma ofensa não só à moral, mas também à fé. Os penitentes, na maioria dos casos mulheres, tinham a obrigação de denunciar seus aliciadores, pena a excomunhão. As sanções contra os padres aliciadores eram menos duras.
A concepção eclesial da justiça é, de fato, marcada pelo princípio evangélico da misericórdia. Não se busca apenas a punição da culpa, mas a conversão do criminoso.
Nessa perspectiva, a vítima não é reconhecida como tal. No crime de solicitação, a ofensa é feita em primeiro lugar a Deus e não para a pessoa aliciada. A justiça penal da Igreja, afirmada na relação com o sacramento da confissão, se preocupava, em princípio, apenas com os crimes ditos “públicos”, em oposição a aqueles que permanecem “ocultos”. Era o escândalo público que normalmente motivava a ação judicial. Os fatos ditos “ocultos”, que eventualmente, porém são conhecidos por iniciados, podiam permanecer dissimulados.
Além disso, como demonstrou a historiadora italiana Elena Brambilla (1942-2018), a justiça não sempre era a mesma para todos. Tendencialmente se estabelece uma distinção entre "homens de honra", quem podem ser por nascimento e mesmo após a ordenação, e aqueles que não são. Em ordem a preservar a honra, os primeiros frequentemente sofrem penitências privadas e secretas, ao contrário dos segundos. Assim se compreende melhor o contexto do segredo em que se exerce a justiça eclesial. Finalmente, os religiosos muitas vezes gozaram de uma justiça de exceção. Os crimes sexuais – o crime de solicitação, mas também as violências sexuais contra crianças - faziam parte da justiça episcopal e do Santo Ofício, a congregação romana encarregada da defesa da fé e da moral (hoje Congregação para a Doutrina da Fé).
Num contexto de crescente autonomia das ordens religiosas, os superiores religiosos - para desgosto dos bispos e do Santo Ofício - muitas vezes sancionavam diretamente, normalmente com mudança de convento, evitando que seus subordinados comparecessem diante da justiça episcopal.
Nesse contexto, a sanção de suspensão, que proíbe qualquer ministério clerical, é excepcional. É em grande parte devida a outra acusação, aquela do "falso misticismo", tratada com rigor particular pelas autoridades eclesiais.
Os repetidos escândalos sexuais que atingem a Igreja Católica demonstram sua dificuldade em retirar o manto do segredo, visto que a cultura do segredo é secular e favorecida por concepções de honra e justiça de geometria variável. Seguindo a historiadora Joanna Bourke, é oportuno adotar uma abordagem interseccional das violências sexuais, que permita considerá-las em relação às diversas discriminações que ocorrem nas instituições eclesiais e colocar em discussão a instrumentalização de um discurso da misericórdia, imposto às vítimas e que constitui um terreno fértil para a violência e a discriminação.