19 Janeiro 2023
"Caso Rupnik: na carta de um coirmão ao jesuíta denunciado por violências psicológicas e sexuais há uma forma depreciativa e culpabilizadora de se referir às vítimas", escreve Luísa Alioto, em artigo publicado por Il Regno, 16-01-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Também me pergunto, com todo o respeito, que tipo de freira era e que formação tinha aquela pobre garota que engoliu com tanta facilidade as regras de seu suposto diretor espiritual. Isso pode agravar o teu abuso, mas também aponta o dedo para algumas congregações femininas pela falta de formação de seus membros” (Pe. José Gonzáles Faus sj ao Pe. Marko Rupnik sj).
Sou Luisa, uma mulher de 35 anos, fui consagrada e freira de uma comunidade religiosa na qual passei 8 anos e meio de minha jovem experiência, saí da congregação há 6 anos e hoje ainda tento buscar meu rosto de mulher dentro desta vida, desta igreja, deste mundo, tentando confiar na voz que pronuncia o meu nome.
Eu li a tradução da “Carta a Marko Rupnik” do jesuíta José Gonzáles Faus de 29 de dezembro de 2022 e experimentei uma série de sentimentos conflitantes, de raiva e de profundo desejo de reagir à ameaça. Numa primeira leitura, vejo um homem jesuíta, numa tentativa desajeitada de ser garante da justiça e da verdade, que encoraja um coirmão à penitência, mas como o faz? Sentindo a necessidade de se perguntar, “com todo o respeito, que tipo de freira era e que formação tinha aquela pobre garota”. Vejo, novamente, um homem que indica uma vítima, mulher, e se pergunta que culpa pode ser atribuída a ela.
Um homem que "aponta o dedo" contra as congregações femininas e não ousa falar de formação para o ministério sacerdotal e direção espiritual. Ele até se pergunta que tipo de freira era aquela mulher sem defini-la como tal, como se se presumisse que existem freiras de diferentes categorias e que uma vez que se tornam freiras já não têm mais sequer a dignidade de serem invocadas como mulheres, como se os votos e o véu apagassem sua própria identidade de mulher. Vejo, novamente, um homem que tenta questionar sobre a formação de uma pobre garota como para dizer que uma mulher abusada deve necessariamente ser "pobre" de formação para "engolir", quase com alegria, os abusos. [1]
Sou uma mulher, talvez eu também tenha sido uma pobre garota, fui uma freira e daquele tipo que amava o estudo teológico, a formação e uma espiritualidade sã e humanizadora. Busquei com todas as minhas forças a minha identidade de mulher, à luz do Evangelho e na escola de cada experiência, mesmo quando os sistemas eclesiais e congregacionais em que vivi não o favoreceram e, às vezes, até o proibiram duramente.
Eu sou uma mulher que viveu em ambientes que abusam do poder e estou aqui de joelhos, exausta, cansada e sem fôlego, mas ainda com força no coração para compartilhar um grito de mulher ao mundo dos homens e da Igreja feita de homens.
Nós, mulheres, somos de um só tipo, "uma ajudadora idônea para ele” (cf. Gn 2,18). Não somos culpadas dos abusos – e de nenhum tipo de abuso – dos quais somos vítimas e eu gostaria que vocês homens pudessem conseguir olhar para nós não como pobres garotas, mas como mulheres e ponto.
Eu não quero nenhum adjetivo, não quero nenhum aceno de tutela que sinta necessidade de me diminuir, desejo a verdade, a misericórdia e a redenção que pretende o restabelecimento de toda justiça. Destaco o trabalho da Rede L’ABUSO nascida na Itália em 2010, esperando que muitos ainda encontrem a coragem de denunciar por amor à verdade e pelo desejo de redenção.
Não tenho os elementos necessários para fazer uma avaliação completa do caso Rupnik, não é minha função e haverá lugares e pessoas - espero sinceramente que sim - que terão competência no assunto, mas sinto a necessidade de olhar para\as realidades que me cercam, e me cercaram, invocando uma misericórdia séria, adulta, justa, nada açucarada, que abrace tanto o carrasco quanto a vítima.
A misericórdia, para ser tal, deve desejar o restabelecimento da justiça e a cura de todas as dimensões da realidade, de toda a integralidade das pessoas sem ser privação de dignidade ou diminuição nem da vítima, nem do agressor para se sentir "mais próximos". Não me parece que Jesus se fizesse próximo com esse estilo, pelo contrário, a sua redenção sempre foi acompanhada de verdade e plena responsabilidade.
Passei os últimos anos relendo, com cuidado delicado, minha experiência de "Igreja", os sistemas em que sofri por causa de pessoas em funções de serviço transformadas em ocasião de controle e abuso de poder; me perguntei o quanto eu "procurei" ou até mesmo fui a causa do meu sofrimento, mas hoje sou a mulher que sou.
O sofrimento vivido não é minha culpa e esses sistemas de poder existem na Igreja! Muitas vezes são escondidos, camuflados e justificados com a mesquinha espiritualidade do sacrifício; sua origem não está ligada ao gênero sexual. O risco de embrutecer e deformar a própria humanidade pode atingir a todos, ninguém está excluído, seja homem ou mulher. Eu só me questiono que perguntas a Igreja e todos os cristãos podem fazer a si mesmos e quais ações são necessárias, não mais derrogáveis ou negociáveis, para que haja cada vez menos vítimas e até menos carrascos.
Que imagem da mulher é aceita nos sistemas formativos de todo nível social e eclesial? Quando as mulheres realmente terão voz para falar sobre mulheres? Quando a mulher poderá sentir-se realmente "eclesial" e não instrumento de uma pastoral só aparentemente mais inclusiva?
Quando será possível falar publicamente sobre teologia de gênero sem mal-entendidos e deturpações? Quando será possível ensiná-la nos institutos e faculdades pontifícias? Quando será revista a formação do clero masculino e de todo homem ordenado? Quando será verdadeiramente integrada e humanizada? Por que não pensar em um acompanhamento sério dos sacerdotes também depois da ordenação?
Cada figura, no contexto real, é chamada a uma constante atualização e verificação periódica. Somos mulheres e homens em constante evolução, caímos e nos levantamos, todos precisamos de uma “boa vigilância” para não sermos deixados existir só porque desempenhamos um papel. Quando será superada a fobia por um mundo afetivo compartilhado e construído por homens e mulheres, saudáveis, que não tenham medo de serem tais? Por que os verdadeiros órgãos de decisão da Igreja ainda têm muita dificuldade para dar autoridade autorizativa também às mulheres nos processos deliberativos?
Somos chamados a denunciar o sofrimento, a buscar a verdade, a estar perto de quem tem a coragem de denunciar todo abuso, mas isso não basta! Somos responsáveis, todos, pela tentativa de buscar e encontrar soluções, caminhos alternativos para que a misericórdia cure e para que a justiça seja restabelecida mesmo a um preço alto.
Sentimos a urgência e a impossibilidade de adiar processos em que somos os autores e as autoras de possíveis "espectros da existência", nos quais a vida – de todos e de cada um – possa fluir e possa fazê-lo cada vez melhor.
[1] A impressão não muda, aliás, é reforçada, lendo a resposta do padre Gonzáles Faus às críticas da carmelita Teodora Corral, a que se associaram, com texto próprio, dois coletivos de feministas cristãs.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Abusos: quem aponta o dedo para quem? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU