O arcebispo e o historiador. A Igreja é ouvida, mas não escutada? Entrevista com Eric de Moulins-Beaufort e Guillaume Cuchet

Catedral de Notre Dame, um dos símbolos do catolicismo francês | Foto: Esteban Chiner-CC

11 Setembro 2021


D. Eric de Moulins-Beaufort, presidente da Conferência Episcopal francesa (CEF) e arcebispo de Reims, e Guillaume Cuchet, historiador, analisam os pontos fortes e fracos da Igreja na França e delineiam suas mudanças futuras. A queda da prática religiosa é irremediável? O catolicismo pode descobrir outras formas de encontrar os fiéis?

 

A entrevista é de Arnaud Bevilacqua e Christophe Henning, publicada por La Croix, 06-09-2021. A tardução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista.

 

"O catolicismo ainda tem futuro na França?" é o título do último livro de Guillaume Cuchet. Como o arcebispo responde a essa pergunta?

Eric de Moulins-Beaufort: Os católicos franceses por muito tempo se consideraram "um grande número", senão a totalidade. Mas ser cristão é outra coisa, é ser escolhidos e chamados, um a um. A luz a ser difundida, a ação a ser conduzida não são proporcionais ao número. A lógica do povo de Israel é a do “pequeno resto”, posto à prova e fiel em nome de todos os outros. O nosso desafio é viver como “o resto de Deus”, herdando uma importante herança inscrita na nossa paisagem e na nossa cultura.

 

Guillaume Cuchet: O catolicismo francês está vivendo uma mudança de formato espetacular, que não é a primeira de sua história e que não terminou, mas que coloca toda uma série de novos problemas, ad intra (ou seja, na imagem que tem de si mesmo) e ad extra (em suas relações com a sociedade).

 

É também uma pergunta que se coloca a cada um: nos sentimos responsáveis pelo nosso futuro?

Eric de Moulins-Beaufort: É uma resposta que me agrada. As coisas dependem de todos nós. Ser católico pode se manifestar com uma fé muito ardente, mas também em saber que outros me apoiam. É um grupo a serviço uns dos outros. Basicamente, somos cristãos por escolha de Deus, no sentido da eleição em termos bíblicos. É algo que não se explica totalmente, ainda que elementos sociológicos favoreçam esse pertencimento. O papa recentemente expressou preocupação com a diminuição na participação nas assembleias dominicais, considerando que o Covid tenha acelerado o abandono da prática.

 

Como está a situação na França?

Guillaume Cuchet: Hoje, os franceses que vão à missa todos os domingos são 2%. Na década de 1950, o percentual médio era de 25%, com variações de 0 a 100 no campo, sem paralelo em outras partes do mundo. Atualmente, a prática religiosa não tem mais o mesmo sentido cultural ou social.

A Igreja já não tem mais os meios para cobrir todos os espaços do território. A unidade de base do sistema não é mais o município, mas a capital do distrito: a prática se tornou complicada para muitos. O Covid certamente não melhorou a situação.

 

Eric de Moulins-Beaufort: É um pouco cedo para medir os efeitos da pandemia. Vários fiéis idosos, que têm dificuldade para ouvir ou ver, descobriram que conseguem participar melhor da missa por meio da televisão. Outros, de todas as idades, descobriram como a missa era indispensável para eles. Poderíamos ter dado meios mais concretos, para uma prática doméstica ativa, mesmo diante de uma tela. Quanto à diminuição da prática religiosa, é claro que nem todos podem percorrer os quilômetros necessários todos os domingos.

 

Até que ponto a rede territorial ainda pode ser modificada? A Igreja será urbana ou rural?

Guillaume Cuchet: Nas cidades sempre há gente suficiente para fazer viver uma comunidade, mesmo pequena, enquanto no campo pode-se chegar a zero. O futuro do catolicismo francês será, portanto, sem dúvida, urbano, mas ainda será necessário inventar modos de presença intermitentes em áreas onde a Igreja não tem mais os meios para uma rede territorial.

 

Eric de Moulins-Beaufort: Mas realmente é necessária uma rede territorial? A situação é muito diferente dependendo da diocese, mas a redução do número de padres não nos permite servir as paróquias que existiam antes, e o recurso a padres estrangeiros não é suficiente. Devemos dar um jeito para alcançar as pessoas das nossas regiões sem esperar que sejam elas a vir até nós. Afinal, cada um pode santificar o dia do Senhor, mesmo que não possa ir à missa. Devemos aproveitar os mais diversos meios para sustentar a vida cristã: por exemplo, admiro os habitantes das Ardenas que, tendo dificuldade em viver uma intensa vida paroquial durante o ano, fazem uma peregrinação a Lourdes, enquanto os habitantes das cidades pouco participam dessa.

 

Todos os anos há uma escassa centena de ordenações ... Vamos rumo a uma igreja sem padres?

Eric de Moulins-Beaufort: Temos que agradecer por essas poucas vocações sacerdotais, cada uma delas é quase um milagre. São o dom que Deus nos dá para que possamos seguir em frente. No cristianismo existe uma plasticidade suficientemente grande para poder viver com uma organização diferente e um papel dos padres renovado em relação ao que conhecemos no passado. Deus nos conduziu a viver dimensões da vida eclesial às quais talvez ainda resistamos.

 

Guillaume Cuchet: Não se deve esquecer que ainda no início da década de 1960 três quartos dos padres franceses vinham de seminários menores, ou seja, sua vocação foi o resultado inicial de um discernimento durante a sua infância, em um diálogo a três. entre eles, sua mãe e seu pároco, algo que hoje nos parece muito distante do nosso modo de viver!

 

Eric de Moulins-Beaufort: Conheci padres que haviam frequentado seminários menores chegando a Reims. Eles produziram vidas muito belas, diferentes das vocações de hoje. Viemos de um mundo onde ser sacerdote era uma possibilidade entre outras - e não a pior - enquanto hoje um jovem pensa em entrar no seminário apenas tendo recebido uma graça muito forte de Deus.

 

Diante dessa diminuição de recursos, onde a Igreja ainda pode estar presente?

Eric de Moulins-Beaufort: Em primeiro lugar, não vamos abandonar os lugares onde ainda estamos presentes. Depois, não podendo estar presentes em todos os lugares e sempre, temos que estar em todos os lugares em momentos diferentes. Além disso, a Igreja não está presente apenas por meio de padres e das instituições, mas por meio das pessoas. Como acompanhar e apoiar quem, lá onde está, procura viver por Cristo e em Cristo? Leigos bem formados, apoiados e nutridos, são capazes de se empenhar na fé e em ações em nome de sua fé.

 

Guillaume Cuchet: Para a Igreja ainda existem locais de forte contato com a sociedade. Por exemplo, as escolas católicas, onde passam 40% das crianças. Ou os funerais, que ainda dizem respeito a 70% dos falecidos, porque a morte é a última coisa que se abandona na esfera religiosa, mas também porque as pessoas que morrem hoje muitas vezes ainda receberam uma educação religiosa. Batizados na igreja e sepultados na igreja, completam o ciclo, mas o que acontecerá depois?

 

Eric de Moulins-Beaufort: Hoje, as pessoas estão se acostumando com o fato de que a oração fúnebre é presidida por um leigo. Mas os padres precisam se confrontem com a dor das pessoas, para acompanhá-las. Faz parte do nosso ministério. Nós, padres, não podemos manter distância do sofrimento e da dor alheia. Servimos ao Crucificado que é a Ressurreição e a Vida.

 

Guillaume Cuchet: Como historiador, percebo que o acompanhamento do luto é uma oportunidade para reestabelecer o contato. Se há um âmbito em que o Cristianismo deveria ter algo a dizer aos contemporâneos, é justamente a morte. Mas as condições do morrer mudaram muito. A negação da morte é uma espécie de reflexo natural do espírito humano que é mais forte hoje. As gerações são eliminadas gradualmente, quase mecanicamente após os 60 anos, o que é completamente novo.

 

A Igreja também está exposta, às vezes até denegrida, na sociedade. Ainda consegue se fazer ouvir no debate público?

Eric de Moulins-Beaufort: Há quem considere que os bispos não falam o suficiente. Porém, na França, as questões da bioética, por exemplo, ainda são objeto de debate, o que não acontece em outros países. Devemos levar a contradição diante do que pode parecer um rolo compressor da sociedade. A história bíblica é povoada por profetas e a sorte do profeta é de não ser escutado. Mas seu grito sustenta aqueles que buscam viver à luz de Cristo.

 

Guillaume Cuchet: Da Igreja se ouve o que ela diz, mas não é escutada? Depende dos âmbitos. No entanto, deveríamos ter certeza de que em cada um desses âmbitos ela tenha algo específico e realmente interessante a dizer.

 

Eric de Moulins-Beaufort: Nossa prova hoje é que em uma sociedade que se preocupa cada vez mais em ampliar o leque das possibilidades, temos o ingrato papel de dizer o que é bom e o que não é. Mas não podemos nos limitar a isso: o coração do cristianismo não é dizer o que é proibido, mas anunciar a cada um que sua história pessoal com Deus nunca acabou, independente do que ele tenha feito.

 

A Igreja é atravessada por diferentes correntes, como manter a unidade?

Eric de Moulins-Beaufort: Guiar enquanto mantém a unidade é consubstancial ao papel do bispo, o papa. O papel do bispo é precisamente ajudar a crescer na unidade homens e mulheres diferentes. Há aqueles que desejam a reafirmação da lei, da norma, e há aqueles que são sensíveis à abertura, correndo o risco de esquecer que se trata de converter-se. Precisamos permanecer na linha do cume. Em termos teológicos e espirituais, somos um pequeno número a serviço do bem e da salvação de todos, e não uma reserva de índios orgulhosos de sua condição. Estamos dentro da totalidade.

 

Guillaume Cuchet: Sempre houve divisões na Igreja. É inevitável, mesmo que um pouco de ecumenismo interno poderia não ser inútil. Muitas vezes se tem a sensação de que o declínio geral está reacendendo o conflito interno, como se os católicos quisessem absolutamente cobrar duas vezes o preço da secularização, uma vez todos juntos para com a sociedade, e uma segunda vez entre si.

 

A Comissão Independente sobre os abusos sexuais na Igreja está se aprontando para entregar seu relatório no início de outubro. É uma etapa importante contra a pedofilia na Igreja ...

Eric de Moulins-Beaufort: A crise dos abusos é um choque imenso e uma grande tristeza que nos atingiu no coração. Vivíamos na ideia de que, no fundo, éramos boas pessoas. Aceitávamos a ideia de que havia padres com problemas de caráter, narcisistas, preguiçosos ... mas os abusos são inqualificáveis. A Igreja não foi capaz de enfrentar o problema de forma adequada no passado porque, coletivamente, não foi capaz de olhar para a realidade, em particular a dor sofrida pelas pessoas vítimas. Devemos agora estar mais cientes das fragilidades sempre possíveis e ser lúcidos quanto ao tipo de relações que o presbiterado cria entre o padre e os fiéis, relações que podem ser facilmente desviadas.

 

Depois da crise dos abusos, qual pode ser a imagem da Igreja?

Guillaume Cuchet: Um trabalho pela verdade é absolutamente necessário. Para as vítimas, em primeiro lugar, é claro, mas também porque essas revelações acontecem em uma sociedade onde muitos têm um conhecimento totalmente exterior do clero, ou absolutamente nenhum conhecimento, de modo que o choque não é compensado ou ponderado através de imagens mais positivas ou mais representativas, de longa familiaridade. A máscara de ferro que a crise dos abusos coloca no rosto da Igreja é, neste contexto, devastadora.

 

Hoje já se fala de pessoas que não se reconhecem em nenhuma religião. A Igreja ainda pode alcançá-las?

Guillaume Cuchet: O aumento dos “não” ou “não filiados” é um fenômeno muito forte entre os jovens. É algo inédito nos anais antropológicos da humanidade. No entanto, as necessidades de sentido, de consolação e de ritualização, que constituíam a essência da anterior demanda religiosa, não desapareceram, como evidencia o interesse de nossos contemporâneos pela "espiritualidade", que colocam em contraposição à "religião" como o bem ao mal. O catolicismo é um dos sujeitos desse novo cenário no qual se deverá demonstrar o seu próprio valor a mais em relação às espiritualidades ao redor.

 

Eric de Moulins-Beaufort: As pessoas sem religião referem-se a todos os tipos de moral, até o epicurismo, o estoicismo ou Spinoza, que se tornou um "pai" do pensamento contemporâneo.

Como se vive uma espiritualidade em um mundo moldado pelo culto do tempo livre, da publicidade, da manipulação através de imagens que visam nos tornar consumidores? É um dos desafios antropológicos das gerações futuras: os seres humanos são capazes de uma interioridade consciente, mas nem a televisão, nem as redes sociais, nem a publicidade o conduzem a isso.

 

A França volta a ser uma terra de missão?

Guillaume Cuchet: Estou impressionado com o fato de que há apenas 2% de praticantes no país, mas que 50% dos franceses ainda se declaram nas pesquisas como católicos, e que três quartos consideram a França um país de "cultura cristã". Existem, portanto, reservas importantes do catolicismo, mas estão diminuindo rapidamente. A Igreja não tem mais os meios do antigo serviço público da transcendência. Nesse ponto, cabe a cada um assumir suas responsabilidades. Porque, afinal, trata-se da nossa história, e não só aquela do clero. O risco é que a Igreja se torne exclusivamente uma pequena elite de happy few (poucos privilegiados) muito motivados. Para os sociólogos, a especificidade das Igrejas, ao contrário das seitas, é adaptar-se a posições espirituais muito diferentes que permitem a cada uma ter uma história, à custa de perder a vez se não souber encontrar o caminho da fé, sem impedir que renasça na geração seguinte. Se este não pode ser o único horizonte da Igreja, caberia justamente ao gênio do cristianismo contribuir para reintroduzir aquele sentido de duração, de tradição, dos vivos e dos mortos, tão ameaçado em nossa sociedade.

 

 

Nota do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

 

De 04 de junho a 10 de dezembro de 2021, o IHU realiza o XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição, que tem como objetivo debater transdisciplinarmente desafios e possibilidades para o cristianismo em meio às grandes transformações que caracterizam a sociedade e a cultura atual, no contexto da confluência de diversas crises de um mundo em transição.

 

XX Simpósio Internacional IHU. A (I)Relevância pública do cristianismo num mundo em transição

 

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