20 Janeiro 2021
"A relevância 'cultural' e (se quisermos também 'política') do cristianismo nas sociedades não deve ser contestada: está em jogo a missão da Igreja fiel ao seu Senhor. A questão é 'como' isso deve acontecer para ser cristãmente fecunda e vencedora hoje".
A reflexão é de Antonio Staglianò, bispo de Noto, na Itália. O artigo foi publicado por Settimana News, 15-01-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Leia também os outros artigos da série: Para além da “religião civil” e do “cristianismo burguês”. Artigo de Duilio Albarello; Para além da “religião civil” e do “cristianismo burguês”. Artigo de Francesco Cosentino; Além da “religião civil” e do “cristianismo burguês”. Artigo de Giuseppe Lorizio; e As grandes questões que a Igreja de Francisco ainda não viu. Artigo de Ernesto Galli Della Loggia.
Tudo começa com as palavras, mas as palavras caminham no tempo, atravessam as épocas e permanecem as mesmas apenas no seu “signo linguístico” (às vezes até o signo muda) com um significado em contínua mutação e sempre em devir (J. Derrida). A relação palavra-signo e palavra-significado não é fixa para sempre. Existe uma evolução, mas também uma recompreensão em relação ao “sistema de referência” e ao “jogo linguístico”.
Tratando-se da fé cristã, da religião católica ou da Igreja hierárquica – como no recente debate levantado por algumas observações de Ernesto Galli della Loggia – termos como “democracia”, “direitos das pessoas”, monarquia do papa, certamente têm o significado das palavras em uso corrente (isto é, a “superfície dos fenômenos”), mas revelam um “interior de estranha beleza” (à la Heisemberg), com cálculos lógicos de extraordinária harmonia que só no “paradoxo” permitem equações que fazem as contas fecharem.
Para além da metáfora, somente na realidade paradoxal da Igreja (a sua natureza teândrica, humano-divina) se pode entender por que uma “monarquia absoluta” pode realizar, no seu autêntico exercício, a plenitude dos direitos pessoais de todos, como se fosse uma democracia adequadamente realizada.
Certamente, precisamos de teólogos que – intervindo mais no debate público e, assim, talvez interpretando o sentido da “Igreja em saída”, da “teologia de joelhos” ou da “teologia de rua” do Papa Francisco – falem-nos da urgência de distinguir (e não para separar, mas para depois unir em harmonia) entre o Soberano do Estado Pontifício e o bispo de Roma, pastor da Igreja universal, com o seu “primado” de jurisdição e a sua infalibilidade pessoal em questões de fé e moral. De fato, o essencial da monarquia do papa está totalmente na sua “raiz teológica”.
Os teólogos, solicitados pelo seu serviço eclesial – precisamente eles que são cientistas do saber da fé – poderiam nos mostrar “o interior de estranha beleza” existente na monarquia absoluta do bispo de Roma, porque, quanto ao seu conteúdo/significado e, portanto, à sua verdade, ela remeteria não tanto ao “Rei Sol da França” (ou mesmo a todas as formas com as quais a soberania pontifícia foi realizada ao longo dos séculos, especialmente nos chamados “tempos sombrios”, nos quais o papado era subserviente ao poder das nobres famílias romanas), mas sim à “monarquia de Deus em Deus”, a do Deus cristão, Deus-ágape, Deus somente e sempre amor, isto é, o Pai do Filho que dá o Espírito: aqui o “monarca” (isto é, o único princípio) é o Pai, não gerado, que gera o Filho e (com o Filho, para nós, latinos ocidentais que amam o Filioque) envia o Espírito Santo.
Os teólogos teriam a tarefa facilitada por Jesus de Nazaré, o Filho que veio nos falar do Pai e da “substância totalmente agápica” de Deus e com as simples palavras (justamente aquelas para as quais deveríamos transferir a verdade da fé) declarou que o poder entre os cristãos é exercido como serviço de amor e “quem quiser ser o primeiro se fará o servo de todos, isto é, o último”. Sem compreender esse paradoxo (oximorônico), como se poderá entender e falar da “monarquia” do papa?
Os “olhos da fé”, para a razão crítica de um teólogo, têm muito mais poder (de visão) do que o telescópio do astrofísico, com o qual se veem as galáxias e as estrelas? A fé cristã mostra o Invisível, põe em jogo o Invisível Deus, assumindo da Revelação de Jesus, o Filho de Deus, Verbo na carne humana, o envolvimento real de Deus na história, realizando a única, verdadeiramente e absolutamente única, “singularidade espaço-temporal”, a do Eterno que se faz instante de tempo.
Assim se anuncia a bela notícia de Cristo: “O tempo se cumpriu, convertam-se e creiam no Evangelho”. Daí se origina o cristianismo como vida bela e transbordante de Evangelho, no seguimento do Mestre de Nazaré, que é tolice e loucura para os religiosos e os sábios, mas é luz da verdade de Deus, vivível pessoalmente pelo ser humano: “Deus é somente e sempre amor”, por isso os cristãos se amarão como Cristo os amou.
E eis a pergunta intrigante: esse cristianismo – que passou a existir há 2.000 anos a partir do evento fundador do Filho de Deus – é observável a partir das investigações científicas da sociologia, como “Gente di poca fede. Il sentimento religioso nell’Italia incerta di Dio” [Gente de pouca fé. O sentimento religioso na Itália incerta de Deus, em tradução livre], de Franco Garelli? Não nos interessa aqui sublinhar a incredulidade registrada por muitos que “suspeitam” de edulcorações na interpretação sociológica paga pela Conferência Episcopal Italiana, considerada ad usum delphini: o “catolicismo mesmo cansado” de Garelli ainda parece resistir à onda de secularização imperante, apesar dos muitos aspectos críticos; por isso, para muitos, parece ser uma interpretação acomodada aos interesses do cliente que – se ele se contentar – poderá, no fim das contas, ficar consolado.
Por outro lado, é importante insistir na natureza científica dessa investigação sociológica acerca do “estado da fé e da religião na Itália”, para afirmar a sua “grande utilidade” e, ao mesmo tempo, a sua objetiva insuficiência para o discernimento pastoral e a ação responsável dos bispos. O “princípio de indeterminação” vale para todo saber científico, até mesmo para o da sociologia, e leva em consideração a “dúvida” probabilística da exatidão dos resultados obtidos com aquela abordagem.
O discernimento requer o trabalho crítico de teólogos, empenhados em estudos empíricos, no campo da vivência da fé nas paróquias, nas famílias e nas cidades com aquele poderoso interferômetro (o Evangelho) capaz de dar avaliações verdadeiras sobre a realidade da fé observada. O olhar do sociólogo, no máximo, capta a superfície do fenômeno religioso. Imagino, porém, que lhe seja difícil captar – só para dar um exemplo – como ambientes religiosos (católicos) conseguem perder de vista a mensagem evangélica.
Uma leitura teológica do “catolicismo convencional” poderia, por sua vez, adivinhar facilmente a condição de “descrença prática” em que se encontra essa forma religiosa de catolicismo. Prefiro falar de “catolicismo convencional” e não de “cristianismo convencional”, como foi feito nos anos 1970 por W. H. Van de Pol, em “O fim do cristianismo convencional”.
Na verdade, se o cristianismo existiu (e se ainda existe), jamais pode ser, por sua natureza, “convencional”, porque se refere ao (e vive o) Evangelho do evento da Encarnação. A expressão “cristianismo convencional” é uma contradição in terminis. Todas as formas de Igreja que – com o passar do tempo e das estações – perpetuaram o cristianismo podem ser “julgadas” como convencionais precisamente por referência ao cristianismo, porque o “convencional” é adesão a hábitos, a ritos, a costumes, tempos e sinais já esvaziados do conteúdo cristão, isto é, insignificantes à luz do Evangelho.
O atual catolicismo convencional ainda resiste na Igreja Católica, mas está sofrendo tremendas repercussões devido ao premente processo de secularização. Seu colapso definitivo é desejável, mas não é um processo irreversível, porque o “catolicismo convencional” (embora difundido em grande medida nas camadas populares de cristãos “inconscientes” que se contentam com o verniz religioso da sua fé em uma prática que não estreita o vínculo entre culto e vida) desenvolve amplos espaços de “resiliência” nas alas ditas “conservadoras” ou mesmo “integralistas” presentes no mundo, com o risco evocado por um artigo recente do diretor da La Civiltà Cattolica – Pe. Antonio Spadaro – de um “ecumenismo do ódio” entre integralismo católico e fundamentalismo evangélico nos Estados Unidos. O ponto unificador é sempre o mesmo: “Uma problemática fusão entre religião e Estado, entre fé e política, entre valores religiosos e economia”.
A relevância “cultural” e (se quisermos também “política”) do cristianismo nas sociedades não deve ser contestada: está em jogo a missão da Igreja fiel ao seu Senhor. A questão é “como” isso deve acontecer para ser cristãmente fecunda e vencedora hoje. O fim da chamada cristandade pode desagradar aqueles que têm em mente o “triunfo sobre o inimigo e sobre o mal” ou alguma outra cópia (feia ou bonita, não importa) do “Sacro Império Romano” ou do fascínio (tremendo) das catedrais medievais.
Se a Europa não reconheceu as suas “raízes cristãs”, pode até ter ofendido os cristãos da Europa, mas as raízes cristãs na Europa são profundas e indeléveis. Resta o problema de “como” sustentá-las, vivê-las e fazê-las germinar em função de um novo renascimento humano (porque cristão) na Europa.
Sobre o “como”, no entanto, para uma teologia difundida entre o povo, o discurso é claro: “Como eu vos amei”. Não há outro caminho de relevância cristã na cultura social e política (a fortiori no ethos eclesial). Em uma entrevista ao jornal francês La Croix, o Papa Francisco reiterou isso com decidida clareza: “A contribuição do cristianismo a uma cultura é a de Cristo com o lava-pés, ou seja, o serviço e o dom da vida. Não deve ser uma contribuição colonialista”. Portanto: “A Europa, sim, tem raízes cristãs. O cristianismo tem o dever de regá-las, mas com um espírito de serviço como no lava-pés. O dever do cristianismo para com a Europa é o serviço”.
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Para além da “religião civil” e do “cristianismo burguês”. Artigo de Antonio Staglianò - Instituto Humanitas Unisinos - IHU