04 Janeiro 2021
O diretor da prestigiada revista dos jesuítas, La Civiltà Cattolica, muito cara aos papas e em particular a Francisco, conta a evolução deste importante instrumento de diálogo da Igreja com o mundo contemporâneo, saúda com cautela e esperança a eleição de Joe Biden e reitera que o conservadorismo não deve utilizar a religião para seus próprios interesses.
A entrevista é de Francesco Lepore, publicada por Linkiesta, 28-12-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Muita água passou debaixo da ponte desde aquele 6 de abril de 1850, quando, por iniciativa do jesuíta Carlo Maria Curci e um pedido explícito de Pio IX, era publicado em Nápoles o primeiro número da Civiltà Cattolica. Desde 1º de outubro de 2011, seu diretor é o jornalista, teólogo e crítico literário Antonio Spadaro.
O papa, que nas pegadas de seus antecessores e mais do que eles apoia a revista, há mais de sete anos, é Francisco. Ambos são jesuítas, unidos por tal entendimento que o primeiro é um dos mais próximos colaboradores e confidentes do segundo.
Pe. Spadaro, a Civiltà Cattolica completou 170 anos em 2020. Nas últimas décadas, ela se impôs sobretudo pela sua posição de diálogo com o mundo contemporâneo, marcando assim uma diferença com a orientação original apologética e condenatória dos “inimigos” da Igreja. Como você avalia a história e as atividades multiformes da revista?
Como diretor, vejo a Civiltà Cattolica como um ser vivo. Sempre tive uma visão biológica dela, certamente não estática. Se quisermos, até mesmo contraditória: ao longo das décadas, a revista também foi um espelho dos tempos e das suas ambiguidades. Houve, portanto, posições assumidas pela Civiltà Cattolica que hoje a revista absolutamente não compartilharia. De fato, não faltaram momentos de enrijecimento, momentos de incompreensão, mas que eu considero como parte da estrutura de uma revista viva, de uma revista imersa nas contradições do seu tempo, que às vezes olha com lucidez, às vezes a perde, às vezes se torna demasiadamente um espelho do pensamento do momento. Mas, ao longo do tempo, a revista sempre foi capaz de fazer autocrítica e de dirigir a sua ação para aquilo que estava acontecendo.
Se a revista nasceu também em oposição à unificação da Itália, é igualmente verdade que, depois, com o passar do tempo, ela se caracterizou pela sua ação de extrema defesa da Itália unida. Com o tempo, também houve posições antissemitas, mas é igualmente verdade que elas mudaram radicalmente depois. Recentemente, para dar um exemplo entre outros, também houve uma entrevista com o rabino Skorka. O mesmo vale para Rosmini: no início, as posições foram muito duras; agora, publicamos e continuamos publicando artigos e resenhas sobre a sua obra, valorizando-a. A nossa revista, por assim dizer, está misturada com a história, e isso me fascina.
O fundador, Carlo Maria Curci, passou das intransigentes posições iniciais a um antitemporalismo acalorado, a ponto de ser expulso da Companhia, para depois ser readmitido poucos meses antes da sua morte. Você não acha que a sua experiência é paradigmática do processo evolutivo da revista?
O Pe. Curci inicialmente se moveu alinhado com as posições papais contrárias à unificação da Itália e favoráveis ao temporalismo. Depois, quando o poder temporal da Igreja cessou com a tomada de Roma em 1870, Curci foi muito realista: era inútil para ele lamentar o passado; pelo contrário, era necessário reconhecer a nova situação e avaliar como reagir diante das mudanças históricas. Uma posição sábia, que quase prefigurou e de fato caracterizou a história da Civiltà Cattolica. A parábola de vida do Pe. Curci, portanto, é um ponto de referência para compreender a história da revista.
Em uma perspectiva cada vez mais internacional, a Civiltà Cattolica lançou em maio a versão em chinês. O que levou a tal novidade editorial?
O interesse pela China, podemos dizer assim, está no DNA dos jesuítas, devido à presença de grandes figuras como a de Matteo Ricci, que, para a Companhia, é um exemplo fundamental de inculturação e de enorme amor pelas culturas diferentes, pouco conhecidas, nas quais se imerge. A versão chinesa da Civiltà Cattolica é muito importante para nós, porque este é um momento muito delicado nas relações entre a China e a Santa Sé. Essas relações existem há mais de 30 anos: iniciadas por João Paulo II e continuadas por Bento XVI, chegou-se a uma virada com o Papa Francisco. De fato, assinou-se um acordo provisório com relação à nomeação dos bispos. Trata-se de um acordo pastoral e não de tipo político nem diplomático, que visa a resolver a complexa questão da ordenação dos bispos. A conclusão é de que, neste momento, todos os bispos que estão à frente de dioceses da China estão em comunhão com Roma. Um resultado muito importante, mas que significa entrar em um processo de diálogo e de debate em que devem crescer a confiança recíproca e o conhecimento.
A Civiltà Cattolica quer desempenhar humildemente essa tarefa de aproximação e de conhecimento recíproco, porque é uma revista cultural. Portanto, se algumas publicações católicas de notícias estão presentes na China, a nossa contribuição quer ser a de uma formação cultural abrangente, no que diz respeito aos temas tanto teológicos quanto de interesse comum. Isso não significa ausência de dificuldades, mas sim vontade de iniciar um diálogo profícuo. É nessa ótica que se insere a nossa publicação dos três volumes sobre a China, o último dos quais diz respeito à importante figura do bispo jesuíta de Xangai, Dom Aloysius Jin Luxian, que aceitou receber a ordenação episcopal sem mandato pontifício e foi posteriormente reconhecido pela Santa Sé. Ele contribuiu enormemente para o crescimento da Diocese de Xangai.
No entanto, não faltaram críticas a esse processo de diálogo. Foram pesadas, por exemplo, as críticas do cardeal Joseph Zen Ze-kiun, que também se queixou de não ter sido recebido pelo papa durante a sua recente estada em Roma...
Há respeito por parte do papa. Mas a posição do cardeal Zen é muito angular, provavelmente de incompreensão e de não aceitação, e, pelo contrário, de rejeição radical do processo que está ocorrendo, com acusações até mesmo diretas de falta de fé dirigidas ao secretário de Estado, Pietro Parolin. Ataques que parecem estar fora do padrão e desconhecem o diálogo que está se instaurando neste momento. A posição do cardeal Zen, portanto, não corresponde ao movimento de reconciliação que está ocorrendo dentro da Igreja. O papa, sem dúvida, escuta todas as vozes, razão pela qual este episódio da audiência que não ocorreu também foi amplamente exagerado na narração por parte do purpurado e de alguns meios de comunicação.
Em nível mundial, 2020 foi o ano da pandemia: tendo que fazer um balanço, o que a Covid-19 significou para a Igreja, na sua opinião?
É difícil fazer um balanço agora, porque eu acredito que sempre é necessária uma distância temporal. Certamente, me impressiona que a Igreja e também o magistério do papa se tornaram uma caixa de ressonância e uma espécie de câmara de elaboração e de desenvolvimento, quase fotográfica, dos acontecimentos. Por exemplo, diante do que aconteceu, o gesto fundamental do papa continua sendo o do dia 27 de março, quando ele quis rezar sozinho em uma Praça São Pedro sem pessoas, de fato, mas na realidade com todos nós dentro dela. Não houve um evento recente do pontificado que tenha reunido tantas pessoas ideal e espiritualmente como esse. Nesse sentido, um papa que vive uma relação direta e até física com as pessoas conseguiu se conectar profundamente com a vivência das pessoas isolando-se, isto é, criando uma situação de vazio e de silêncio.
Para mim, tal situação continua sendo paradigmática: precisamente ela gerou a encíclica Fratelli tutti, com a qual Francisco quis dar uma visão diferente do mundo baseada em uma fraternidade substancialmente esquecida. A fraternidade, como o papa a entende, é mais um passo em relação à solidariedade, porque é o reconhecimento de uma realidade fundamental que vai além de barreiras de um mundo fraturado e dividido, que, paradoxalmente graças ao vírus, também se redescobriu unido. Portanto, se eu tivesse que dizer qual é a palavra-chave na vida da Igreja neste ano de pandemia, eu certamente indicaria a fraternidade. Uma palavra que, obviamente, não tem como horizonte a própria Igreja, mas sim a construção do Reino de Deus, em que estão envolvidos não só os católicos, mas também todos os fiéis e as pessoas de boa vontade. A esse respeito, é significativo que o papa desenvolveu a Fratelli tutti à luz da relação com o Grão-Imã de al-Azhar, Ahmad al-Tayyib.
No entanto, a simples menção do Grão-Imã de al-Azhar levantou críticas pelas acusações de antissemitismo, fundamentalismo e misoginia que pairam sobre o líder sunita...
Em primeiro lugar, é preciso sempre considerar a evolução do pensamento ao longo do tempo. Al-Azhar tornou-se, por exemplo, um lugar que está levantando fortemente a questão da cidadania dentro do mundo islâmico, não mais referida, como até agora, exclusivamente à religião. Isso é algo muito inovador. Além disso, não está excluído de modo algum o fato de haver posições problemáticas. O sentido da relação com o papa não é a aprovação específica desta ou daquela posição, mas sim a elaboração de um pensamento de fraternidade universal e unidade das religiões, portanto também judaica, que está crescendo em todo o mundo.
O processo de diálogo e fraternidade universal promovido por Francisco continua sendo alvo do conservadorismo, principalmente da região estadunidense. Há três anos, na Civiltà Cattolica, você escreveu com o protestante Marcelo Figueroa, diretor da edição semanal argentina do L’Osservatore Romano, um artigo dedicado ao fundamentalismo evangélico e ao integralismo católico. Você acha que a eleição de um católico democrata como Joe Biden pode marcar um retrocesso ou uma desaceleração em relação àquilo que você chamou, na época, de ecumenismo do ódio?
Eu distinguiria bem as coisas: o chamado pensamento conservador, que existe dentro da Igreja, é absolutamente legítimo e plenamente coerente com o catolicismo vivido. O problema é quando o conservadorismo político utiliza a religião para seus próprios interesses. O problema, portanto, não é a posição que um pastor pode expressar sobre determinados temas eclesiais, mas sim a mistura que às vezes pode haver do plano político e do religioso, dando assim a César aquilo que é de Deus. O uso dos símbolos religiosos, portanto, para propaganda política. No artigo citado, quisemos denunciar a duas vozes, a minha e a do presbiteriano Figueroa, o perigo da confusão dessas duas perspectivas. Esse é um risco que efetivamente se corre, principalmente nos Estados Unidos, mas não só. Isso também por causa do desenvolvimento das chamadas teologias da prosperidade – objeto de outro artigo nosso publicado em 2018 – que ligam a fé em Cristo a um sucesso material objetivo, que quem crê deveria alcançar.
É evidente a abordagem instrumental de tipo econômico, que é exatamente o oposto do Evangelho. Portanto, espera-se que haja uma purificação dessa perspectiva nos Estados Unidos. A eleição de Biden é um evento significativo, mas obviamente será preciso esperar para poder fazer avaliações que não sejam precipitadas e superficiais demais. Um bom presságio é a vontade de unidade com que essa presidência parece nascer. Sem dúvida, a partir destas eleições, os Estados Unidos saem divididos em dois: é preciso uma reconciliação nacional, que exigirá tempo e energias. O fato de Biden ter afirmado que quer ser o presidente de todos os estadunidenses é um bom presságio.
Não faltaram críticas de alguns bispos a Biden pelas posições pro-choice e polêmicas com o novo cardeal Gregory por ter anunciado que não negará a Comunhão ao presidente na sua Diocese de Washington. O que você acha?
O pastor que tem a competência para julgar a posição do presidente eleito Biden é o arcebispo de Washington, o cardeal Wilton Gregory. Eu confiaria no seu discernimento. O cardeal afirmou que o tipo de relação que procura com o presidente é o de uma conversa, em que seja possível descobrir áreas de cooperação que reflitam os ensinamentos da Igreja, sabendo muito bem que existem algumas áreas em que não estamos de acordo. Ao decidir quando colaborar e quando criticar, ele disse: “Espero não pôr em evidência um sobre o outro”, sobretudo sabendo que a defesa da vida vai além do aborto e diz respeito a toda a vida, desde a concepção até a morte. O que nos ajuda a refletir é a história de Giulio Andreotti, que em maio de 1978, como primeiro-ministro [da Itália], pôs dolorosamente o seu nome à Lei 194, que disciplinava pela primeira vez na Itália a interrupção voluntária da gravidez, sem, por isso, incorrer em sanções canônicas.
Pe. Spadaro, no dia 16 de dezembro, a Netflix anunciou a produção de uma série inspirada no seu livro “Sharing the Wisdom of Time” [Compartilhando a sabedoria do tempo], que contará também com um testemunho do papa. Qual foi a sua reação?
Certamente de alegria e satisfação. O importante é que a mensagem papal de diálogo entre as gerações e a valorização das idosas e dos idosos possa chegar a pessoas de todos os tipos por meio da série. Daí o meu contentamento. Até porque a mensagem de Francisco certamente é contracorrente, especialmente em tempos de Covid, em que assistimos a uma espécie de ruptura entre jovens e idosos. Neste momento, a série televisiva é, portanto, uma oportunidade importante para dar novamente valor às pessoas idosas, que têm a capacidade de comunicar sabedoria e sapiência a quem cresce. E é justamente esse aspecto que mais impressiona Francisco e o convenceu da bondade da operação.
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“A palavra-chave na vida da Igreja neste ano de pandemia certamente é fraternidade”. Entrevista com Antonio Spadaro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU