11 Janeiro 2023
O principal investigador de abusos do clero do Papa Francisco reconheceu as frustrações dos sobreviventes com a estrita cultura de sigilo do Vaticano sobre os bispos católicos acusados de má conduta ou encobrimento. As vítimas que apresentam uma reclamação têm o direito de saber como ela é tratada, disse o arcebispo maltês Charles Scicluna.
A reportagem é de Joshua J. McElwee e Christopher White, publicada por National Catholic Reporter, 11-01-2023. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Em entrevista ao National Catholic Reporter, Scicluna admitiu que o Vaticano não está no que ele chamou de “um ponto ideal” no que diz respeito ao acompanhamento das vítimas de abuso, chamando o assunto de “algo que precisa ser desenvolvido”.
Scicluna, que atua como secretário adjunto do poderoso Dicastério para a Doutrina da Fé do Vaticano e investigou denúncias de abuso em todo o mundo, disse: “A maior parte do sofrimento que tenho visto é quando as vítimas são deixadas no escuro sem qualquer acompanhamento da divulgação que eles deram”.
“Temos uma lei e um sistema que permite que as pessoas divulguem abuso ou má conduta, mas você também tem o direito de saber o que acontece com suas denúncias”, disse ele.
Scicluna estava respondendo na entrevista a uma pergunta sobre a forma como o Vaticano lidou com o caso do bispo francês Michel Santier, que renunciou à liderança da Diocese de Luçon em janeiro de 2021. Embora Santier inicialmente tenha dito que estava renunciando por motivos de saúde, vários veículos franceses posteriormente relataram que o bispo estava sob investigação no Vaticano por suposto abuso espiritual e sexual de pelo menos dois homens na década de 1990.
Enquanto Scicluna disse que não poderia comentar especificamente sobre o caso Santier, ele acrescentou: “Eu percebo que essas situações criam frustração e uma sensação de perda”.
Scicluna, falando em uma entrevista de 45 minutos em 5 de janeiro focada principalmente no legado do falecido Papa Bento XVI, também se recusou a fazer qualquer comentário sobre o caso do jesuíta esloveno Marko Rupnik, um artista religioso reconhecido internacionalmente que foi impedido de ministrar depois que mulheres adultas o acusaram de má conduta espiritual e sexual.
A ordem jesuíta anunciou as restrições contra Rupnik em 2 de dezembro. O superior-geral da Companhia de Jesus, padre Arturo Sosa, mais tarde reconheceu que o escritório doutrinário do Vaticano havia processado Rupnik por pelo menos um caso de abuso de uma mulher adulta em 2019.
Scicluna conversou longamente com o NCR sobre seu trabalho com Bento e Francisco. O prelado maltês serviu como funcionário na década de 2000 sob o cardeal Joseph Ratzinger, futuro Bento, enquanto Ratzinger era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Desde então, Scicluna também trabalhou em estreita colaboração com Francisco e ajudou a organizar uma cúpula histórica sobre abuso sexual em 2019 no Vaticano.
Scicluna caracterizou o trabalho diferente de Bento XVI e Francisco para responder ao abuso sexual do clero como parte de um “continuum” de esforços.
“Francisco não está copiando Bento; Francisco é Francisco. Mas há um continuum e uma consistência”, disse Scicluna.
“Francisco leva a teologia da solidariedade de maneira muito profunda; quando um membro sofre, todos nós sofremos”, disse o arcebispo. “Há um continuum, mas também há um desenvolvimento; não é simplesmente repetir”.
Em termos dos esforços de Francisco, Scicluna abordou o status de Vos Estis Lux Mundi (“Você é a luz do mundo”), documento de 2019 emitido motu proprio, isso é, por iniciativa do próprio papa. Ele determinou que todos os padres e membros de ordens religiosas em todo o mundo fossem obrigados a relatar suspeitas de abuso ou encobrimento ao seu bispo ou superior.
O documento, que também criou um novo sistema global para avaliação de denúncias de abuso ou encobrimento por bispos, foi inicialmente aprovado por um período experimental ad experimentum de três anos, que expirou no verão passado.
O arcebispo confirmou que Vos Estis ainda está em vigor. Ele comparou o processo de atualização a como o Sacramentorum Sanctitatis Tutela, um motu proprio que o Papa João Paulo II emitiu pela primeira vez em 2001 para encarregar o escritório doutrinário de lidar com casos de abuso, foi posteriormente atualizado por Bento XVI em 2010 e novamente por Francisco em 2021.
“O fato de algo ser ad experimentum não significa que tenha prazo de validade”, disse Scicluna. “É obviamente um sinal de que isso provavelmente não é perfeito, e vamos ajustá-lo para torná-lo mais compatível com a realidade, porque às vezes a realidade vai além do que a lei diz”.
Com relação ao que foi aprendido ao longo dos três anos em que Vos Estis está em vigor, Scicluna falou em se concentrar na implementação do documento e em garantir que todos os católicos tenham o poder de denunciar suspeitas de abuso.
“A lei é um instrumento, mas não é mágica”, disse o arcebispo. “Se você não quiser implementá-la, não será implementada, e isso é um desafio”.
“Vamos aceitar os valores e a situação incômoda que legislações como... Vos Estis nos colocam?”, ele perguntou. “Essa é a questão. E as pessoas têm poder suficiente? Elas conhecem essas leis? Elas estão cientes dessas leis? E elas também estão dispostas a fazer da letra da lei algo vivo?”.
Scicluna invocou o conceito de sinodalidade, o foco do revigorado processo de três anos de Francisco para o atual Sínodo dos Bispos. Esse processo incluiu consultas com católicos de todo o mundo e levará a duas reuniões de bispos em Roma em outubro de 2023 e outubro de 2024.
“Se a sinodalidade não vai ser uma dádiva simplesmente caída do céu, precisamos chegar ao essencial, que capacite as pessoas a olhar para a liderança como serviço, como Jesus quer”, disse o arcebispo. “E isso é responsabilizar as pessoas de liderança. É algo que precisa ser feito”.
Scicluna falou com o NCR poucas horas depois que Francisco celebrou o histórico funeral de Bento XVI no Vaticano, o primeiro papa a renunciar voluntariamente ao papado em mais de 700 anos. No início da entrevista, o arcebispo relembrou longamente o período em que trabalhou com Ratzinger no escritório doutrinário do Vaticano.
Depois de servir por vários anos no Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, a mais alta autoridade judicial da Igreja Católica, Scicluna chegou pela primeira vez à então Congregação para a Doutrina da Fé em 2002. Ele assumiu o papel de Promotor de Justiça do escritório, ou promotor principal, que ocupou até 2012, quando voltou para casa para se tornar o arcebispo de Malta.
Scicluna disse ter chegado quando o Vaticano estava lidando com uma “avalanche” de casos de abuso, iniciada após a reportagem de 2002 sobre abuso generalizado e encobrimento na Arquidiocese de Boston. Ele disse que se encontrava com Ratzinger toda sexta-feira para discutir os casos de abuso pendentes.
“Eu vi... o cardeal Ratzinger amadurecer em sua compreensão do fenômeno”, disse Scicluna. “Estávamos revisando centenas de casos todos os anos e as narrativas ensinam muito. Elas ensinam não apenas sobre a fraqueza humana, mas também sobre a face sombria do abuso, os efeitos nas vítimas e também o fato de que existe uma narrativa que se repete”.
O arcebispo elogiou Ratzinger pela forma como coordenou sua equipe, dizendo: “Ele teve a humildade de confiar em nós, especialistas”.
“Ele conhecia seus limites no direito canônico”, disse Scicluna. “Mas ele tinha esse grande entendimento da natureza humana, e também da teologia e da antropologia por trás da má conduta, o que obviamente trouxe um aprofundamento do discernimento sobre o caso e o que fazer em circunstâncias específicas”.
Quanto aos possíveis erros que Ratzinger ou o escritório possam ter cometido, o arcebispo disse: “Pode haver questões em que as coisas ... poderiam ter sido decididas de uma maneira melhor. Mas esse é o caso. O que quer que você tente fazer, sempre será o caso”.
Questionado sobre os críticos que dizem que Ratzinger poderia ter feito mais sob João Paulo II para responsabilizar bispos individuais por perpetrar encobrimentos para proteger padres abusivos, Scicluna respondeu simplesmente: “Não era seu papel como prefeito”.
Quanto a saber se Ratzinger fez o suficiente depois de ser eleito papa em 2005, o arcebispo respondeu: “No final, quando você é papa, você é papa. Você não pode dizer ‘eu não sou papa’. Mas depende, obviamente, da informação que você obtém”
Scicluna elogiou Bento XVI por sua carta de 2010 aos católicos na Irlanda, na qual o pontífice se desculpava com as vítimas de abuso no país, cobrava dos bispos que cooperassem com as autoridades civis que investigavam as denúncias de abuso e anunciava planos iniciais para investigações do Vaticano sobre dioceses, seminários e ordens religiosas irlandesas.
Scicluna chamou essa carta de “um ponto de referência” e disse que contém “as premissas” de como Francisco responderia mais tarde à crise dos abusos, inclusive na “Carta ao Povo Peregrino de Deus no Chile” do próprio Francisco. Essa carta, emitida em 2018 depois que Francisco irritou vítimas de abuso e defensores durante sua visita ao Chile naquele ano, incluía o papa admitindo sua vergonha por suas ações.
“Veja, há um continuum”, disse o arcebispo sobre as respostas de Bento e Francisco à crise. “Obviamente, eles são pessoas diferentes... mas você vê um desejo de oferecer uma resposta adequada dentro dos limites do discernimento humano e também da falibilidade do julgamento humano. E isso é algo que eu acho que também precisa ser levado em consideração”.
Recordando seus primeiros dias como um dos funcionários de Ratzinger, o arcebispo lembrou que o cardeal fez um esforço especial para ajudar em seu trabalho.
Ao chegar ao prédio para seu primeiro dia em 2002, Scicluna disse ter notado que seu novo escritório não tinha computador. Ele disse que disse ao secretário de Estado Ratzinger, o então cardeal Tarcisio Bertone, que precisava de um computador para fazer seu trabalho.
Embora não houvesse verba no orçamento para a compra, Ratzinger forneceu o aparelho. “Na verdade, o cardeal comprou meu primeiro computador do seu próprio bolso”, lembrou Scicluna.
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“Vaticano deve tratar melhor as vítimas de abuso”, diz Scicluna, principal investigador do papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU