03 Outubro 2022
Padre jesuíta e teólogo, Patrick Goujon é o autor de Prière de ne pas abuser (Oração para não abusar). Um ano após a publicação do relatório Sauvé, ele testemunha a mudança que observou na Igreja.
A entrevista é de Youna Rivallain, publicada por La Vie, 28-09-2022. A tradução é do Cepat.
Em seu livro Prière de ne pas abuser, Patrick Goujon testemunha as agressões sexuais de que foi vítima na infância, cometidas por um padre.
Como o relatório Sauvé foi recebido?
Ao longo de um ano, observamos várias fases: o momento do assombro durou algum tempo, para os católicos, mas não exclusivamente para eles. Fiquei impressionado com a recepção do relatório Sauvé pela sociedade como um todo. Em uma França dividida, onde as questões da laicidade surgem regularmente, isso poderia ter sido uma oportunidade para criar uma onda de oposição à Igreja.
Continuo impressionado com a seriedade e a imensa dignidade com que o relatório Sauvé foi tratado na grande imprensa, por exemplo. Isso decorreu, certamente, do trabalho de qualidade da Ciase e da extensão do problema na sociedade como um todo, do movimento de base nascido da liberação da palavra das mulheres sobre as agressões sexuais. Deste ponto de vista, a Igreja está em sintonia com o seu tempo.
Após o reconhecimento pelos bispos em Lourdes de suas responsabilidades, entramos em um momento muito nebuloso, difícil de viver para as vítimas e os cristãos em geral. Após a série de anúncios, nos perguntamos o que realmente estava acontecendo.
Fiquei marcado pela heterogeneidade com que as paróquias e as dioceses aceitaram o relatório e as suas conclusões. Algumas comunidades paroquiais organizaram noites de reflexão sobre as propostas da Ciase e a questão das violências, para se perguntar: “E agora, o que devemos fazer?”.
Em outras paróquias, nada aconteceu. Houve também a reação de membros da Academia Católica. Mesmo que tenha sido doloroso para mim, penso que estavam certos em se manifestar, pois também precisamos ouvir essa diversidade que é real e com a qual teremos que conviver e trabalhar.
Agora precisamos de tempo para refletir sobre a situação, para aprender com ela. Decisões são tomadas, visitas canônicas a congregações e dioceses levam a fechamentos ou procedimentos rigorosos, o que mostra que a questão dos abusos espirituais e das agressões sexuais também é levada em consideração pela instituição. Podemos ficar impacientes, com medo de falta de ar. Mas a mudança de cultura levará tempo.
Especialmente porque em muitos lugares, as coisas ainda não foram esclarecidas. Os fatos ainda são ocultados. Os responsáveis ainda não foram denunciados. Ainda resta um grande trabalho a ser feito do ponto de vista legal, mas o trabalho mais importante é aprender a reconhecer o mal e aceitar a contradição. Ainda não saímos dessa cultura do silêncio, da cegueira.
É tão impensável para alguns que os criminosos sejam protegidos dentro da Igreja que acabaram dizendo que era impossível. Outros minimizam, argumentando que o fenômeno do abuso é algo isolado, mas mesmo um caso “isolado” é demais!
Esta heterogeneidade na forma de apreender a relação é séria?
A diversidade é boa quando aceitamos dialogar e expressar as divergências sem acusar os outros de não serem bons cristãos... e isso, nos dois sentidos! A tragédia das agressões sexuais e dos abusos de poder é uma questão que compartilhamos com toda a sociedade, é um sintoma contemporâneo. Cabe a cada um de nós tentar dar um passo para entender o ponto de vista do outro, deixar de lado as nossas picuinhas para conseguir ver o que está no centro da vida cristã.
Como vítima de abusos sexuais na infância, você se magoou com certas reações?
O que me machucou como católico e sobrevivente foi aquele boato comum que consiste em dizer às vítimas: “Está tudo bem, nós ouvimos vocês”. Esta reação, que ouvi de leigos e de clérigos, é surda ao sofrimento e não leva em conta as vítimas recentes! Isso me fez passar por momentos de depressão, especialmente quando ouvi isso em meu círculo próximo.
Fiquei pasmo ao ver que, diante dos casos em andamento, quando as sanções canônicas são tomadas, sempre ouvimos dos fiéis que se trata de “rumores contra um padre”. Que mecanismo é este que faz com que, mesmo quando a própria instituição reconhece a culpa de um padre, isso não seja suficiente para convencer todos os fiéis?
A crise dos abusos é verdadeiramente reveladora do caminho que se propõe no centro da fé para reconhecer a violência e encará-la de frente para se livrar dela. “Livrai-nos do mal” é uma oração que é atual. A ideia não é acreditar que o pecado deixou o mundo desde que Jesus ressuscitou! Rezamos diariamente para que Ele nos livre do mal.
A crise dos abusos também trouxe à tona a falha institucional da Igreja: ao contrário do que se poderia pensar, se há tantos excessos, é também porque internamente a instituição é muito desorganizada. Ela não tem os meios para fazer valer seus direitos. A Igreja está sobrecarregada com suas próprias disfunções.
É também para isso que serve a caminhada sinodal: encoraja-nos mutuamente, como crentes, para encontrar os meios para nos proporcionar uma “casa segura”, como disse o papa, mas também uma verdadeira casa. Não se trata apenas de segurança, mas também de verdade e de justiça.
Alguns católicos criticam a lentidão e a falta de transparência das iniciativas da Igreja para reformar a instituição. Você concorda com essa opinião?
As coisas demoram a se encaixar, mas é difícil, mesmo com a maior benevolência (e a fortiori quando se é vítima), não ficar estupefato e consternado pela lentidão da mudança.
Não podemos deixar de nos perguntar: realmente tudo foi implementado? Sei que o Presidente da Conferência Episcopal da França está fazendo o que pode. Infelizmente, as engrenagens institucionais são muito pesadas.
Tem a sensação de que tudo está sendo feito para colocar a voz das vítimas no centro da reflexão?
Uma vez que foi divulgado o relatório, a Ciase cumpriu sua missão: a plataforma de contato e acolhimento das vítimas que era a comissão Sauvé não existe mais. Inicialmente, o site da CEF dedicado às vítimas não era fácil de encontrar. As coisas melhoraram, mas ainda é difícil que uma vítima faça uma denúncia e saiba a quem fazê-la, mesmo com as muitas iniciativas que os bispos e religiosos tomaram!
Há um equívoco persistente em relação às vítimas, que têm muita dificuldade de se expressar, e da instituição que implementa muitas coisas, mas sem medir a dificuldade das crianças vítimas, que já se tornaram adultas, para tomar a palavra.
Não medimos todas as barreiras internas e institucionais que uma vítima deve superar para falar. Por exemplo, em muitas dioceses e/ou congregações pequenas, é o bispo ou o abade quem é o interlocutor das vítimas. O que pode ser muito institucional, muito intimidante para as vítimas!
Especialmente porque esta posição é delicada para o bispo que deve ouvir a vítima, mas também decidir sobre a pena canônica contra o agressor, verificar se ela é implementada e manter a relação com as vítimas. Tudo isso na Igreja, com os meios à sua disposição. A questão está longe de ser resolvida. Mas os abusos não são um problema que resolvemos, mas uma questão que carregamos conosco.
Como a Igreja pode ser um recurso espiritual para as vítimas?
A Igreja pode às vezes ser tentada a traçar um retrato falado da vítima típica, a propor uma espiritualidade reparadora... A primeira coisa que a Igreja não deve esquecer é que ela representa simbolicamente o agressor. Ela deve, portanto, comportar-se com modéstia diante de qualquer proposta eclesial.
Inácio de Loyola não disse para ir oferecer ajuda às pessoas, mas para responder às pessoas que vierem pedir ajuda. A perspectiva é invertida. Nosso dever como Igreja é mostrar que abrimos espaço para as vítimas, mas cabe a elas virem nos encontrar, não cabe a nós ir até elas dizendo: “Jesus vai te curar”! Às vezes, é assim que alguns foram agredidos e isso pode ser percebido como um ataque adicional.
A verdadeira ajuda espiritual vem no reconhecimento das necessidades do outro. Em uma agressão de um clérigo, a relação com Deus é afetada, portanto certamente há cuidados especiais a serem tomados nesta área, mas não devemos esquecer a dimensão corporal e psíquica do trauma. Achar que as coisas se resolvem com uma aproximação espiritual é não ter entendido do que se trata.
A luta contra os abusos espirituais, tão difíceis de determinar, é a próxima luta da Igreja?
Graças à nossa tradição espiritual, temos recursos para caracterizar e enquadrar esse tipo de abuso. Não é tão vago quanto este. Por outro lado, é certo que é um desvio muito comum na Igreja, e começa tanto nas relações pastorais como nas conversas, especialmente no confessionário.
A confissão está bem delimitada pelo direito canônico, mas às vezes fico impressionado ao ouvir os católicos descreverem abusos de poder na confissão ou no acompanhamento espiritual. A Igreja está muito equipada com um direito preciso de práticas, mas é regularmente desrespeitado. Acima de tudo, não devemos minimizar os abusos espirituais porque são uma forma de violência disfarçada sob o pretexto de cuidado pastoral. O canteiro de obras é enorme.
No entanto, acredito sinceramente que todos esses assuntos podem nos trazer de volta ao centro da fé. A violência está presente no mundo, mas não terá a última palavra, desde que estabeleçamos uma fraternidade corajosa para proteger nosso próximo quando for agredido. Isso significa encarar o mal de frente. É o que nos libertará.
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“Os abusos não são um problema que resolvemos, mas uma questão que carregamos conosco”. Entrevista com Patrick Goujon - Instituto Humanitas Unisinos - IHU