18 Outubro 2024
"A narração joanina é a de um profeta, de um narrador competente, não apenas contador de histórias, mas também ator envolvido em uma história que mudou sua vida: ele narra com efeitos práticos e críticos e cria alternativas que são sugeridas pela memória da libertação trazida por Cristo no hic et nunc do leitor crente: agora mude sua vida, insiste João, agora você ressurge, agora você pode ser libertado", escreve o monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado em La Stampa - Tuttolibri, 12-10-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
O evangelho de João é “o outro” evangelho, outro no sentido de diferente dos evangelhos sinóticos.
Isso foi percebido desde a antiguidade e muito mais fortemente do que nas gerações cristãs posteriores. Especialmente no século II, a alteridade desse evangelho era sentida tão profundamente que perturbava a comunidade cristã. Temos vestígios, por exemplo, de que não foi imediatamente aceito pela grande igreja, ou seja, a igreja apostólica, aquela mais tarde chamada de católica ou ortodoxa, marcada por uma tradição que remontava aos apóstolos e na qual Pedro ocupava um lugar extremamente preciso. Clemente de Alexandria o chamava de “evangelho espiritual” e, com esse termo, queria indicar sua diversidade em relação aos outros três, uma diversidade certamente evidente por sua linguagem e pela riqueza simbólica.
Deve-se especificar de imediato que não se deve dar a esse atributo “espiritual” o sentido, muitas vezes entendido hoje de modo despotencializado, de abstrato, distante do real; na verdade, significa “animado pelo Espírito Santo” e assim é toda a Escritura e, de modo particular, João, que sabe trazer um olhar profundo ao mistério de Cristo. Esse é um evangelho que, mais do que qualquer outro, “encarnado” na história de seu tempo e ambiente: registra polêmicas, tensões, rupturas e apresenta uma mensagem muito disruptiva. Sua teologia narrativa fala de oprimidos, não de vencedores, é crítica em relação à sociedade contemporânea, é memória perigosa que não dá trégua aos poderosos, não aceita a opressão e contém uma proposta de libertação total para o homem. João “narra lembrando”, portanto, sua história se torna uma narração de histórias de libertação e se torna a prática da ação libertadora em todos os níveis.
Giulio Busi, professor da Freie Universität Berlin, que os leitores conhecem bem, especialmente, mas não apenas, por seus estudos sobre o misticismo judaico e a história do renascimento, dedicou sua última obra ao Evangelho de João. Giovanni, Il discepolo che Gesù amava (João, o discípulo amado por Jesus), é publicado por Busi um ano depois de Gesù il re ribelle (Jesus, o rei rebelde): duas histórias judaicas que formam um díptico perfeito, fecundo e estimulante. Jesus e João, um o mestre, o outro o discípulo amado. Jesus foi voz e palavra, “o discípulo sabe disso”, observa Busi, “ele o viu com seus próprios olhos. João viu a palavra. E é por isso que ele começou a ditar. Ele reuniu os escribas ao seu redor, fechou os olhos e começou a proferir as frases”. E disso surgiu o Evangelho “diferente” daqueles de Marcos, Mateus e Lucas, e hoje em dia há muitas ferramentas para verificar essa alteridade e confirmar a impressão desse caráter específico que Busi explicita em toda a sua eloquência.
Ele foi até mesmo definido por Robert Kysar como o “evangelho indomável”, um título dado ao seu estudo para indicar quase um “evangelho dissidente”, uma formulação que provavelmente é demasiado forte, mas certamente significativa para expressar o resultado de um caminho exegético preciso. Ernst Käsemann retoma a expressão “evangelho celestial” e faz um trocadilho com essa definição: “Sua inclusão no cânone esconde uma profunda ironia: o evangelho ao qual a igreja não conseguia mais atribuir um lugar de origem no plano terreno é chamado de celestial”. São apenas duas vozes que indicam sintomaticamente o debate inerente a essa diversidade.
“Por muitos anos, mais de quarenta, João foi um amigo para mim. Um conhecido íntimo, mas problemático”, confidencia o autor desse livro culto, mas escrito com palpável paixão. Não se explora página por página, nem os discursos de Jesus (muito longos nesse Evangelho), nem há demora em análises filológicas acadêmicas do texto, mas, admite Busi, “eu me ‘movi’ pelo Evangelho seguindo o olhar do discípulo amado”, quase sendo guiado pelo espírito do autor mais do que pela letra do texto. “O Evangelho de João é o mais judaico dos Evangelhos”, observa Busi com razão, que, no entanto, reconhece sua evidente contradição: ‘O Evangelho de João usa palavras duras contra os ’judeus' e até os acusa de terem o diabo como pai (Jo 8,44). A hostilidade de João é uma ferida profunda na história das relações, vezes demais conflituosas, entre o cristianismo e o judaísmo”. Com competência e grande senso bíblico, sem dúvida facilitado pelo texto eficaz do Evangelho de João da Bíblia Einaudi, traduzido por Roberto Vignolo, Busi ajuda o leitor a entender que não se deve abordar João com preconceito, acreditando que esse seu Evangelho seja evasivo em relação ao mundo: se há um Evangelho com dimensão de teologia política, é justamente este, porque seu objetivo é narrar a realização de ações que trazem libertação.
A narração joanina é a de um profeta, de um narrador competente, não apenas contador de histórias, mas também ator envolvido em uma história que mudou sua vida: ele narra com efeitos práticos e críticos e cria alternativas que são sugeridas pela memória da libertação trazida por Cristo no hic et nunc do leitor crente: agora mude sua vida, insiste João, agora você ressurge, agora você pode ser libertado.
Mas quem é João? É opinião comum entre os estudiosos que o autor do Quarto Evangelho seria João, o Ancião ou João, o Presbítero, nascido por volta do ano 15, provavelmente em Jerusalém, e morto em Éfeso muito idoso, por volta do ano 100. Para Busi, “João, o Ancião, é de linhagem sacerdotal” que, de dentro da elite de Jerusalém, registra as tensões entre Jesus e os sacerdotes do Templo, os principais antagonistas de Jesus. Isso faz de João “um evangelista com uma nova face, portanto, e todo a ser descoberto, que coloca diante de nossos olhos seu próprio testemunho, tão diferente porque diferente e especial é o ponto de vista do qual ele olha para Jesus”.
“Se eu quiser que ele permaneça vivo até eu voltar, o que lhe importa?” (Jo 21,22). No fim do Quarto Evangelho, é isso que Jesus diz a Pedro que, referindo-se ao discípulo amado, havia lhe perguntado “Senhor, e ele?” Pedro quer saber o que acontecerá com o discípulo amado. Mas a resposta do Senhor é uma negativa categórica a essa pretensão: “o que lhe importa?”. Jesus o interrompe e pede que ele aceite a vontade do Senhor: na única igreja presidida por Pedro, deve haver também a presença incontornável do discípulo amado, uma presença que Pedro deve apenas aceitar. Ao lado de Pedro, figura da Igreja institucional, encontramos o discípulo amado que “permanece”, fica morando até a parusia, até a vinda do Senhor. Essa é uma perícope muito preciosa para nosso Evangelho, porque revela que a Igreja nasce plural, é, por sua constituição nativa, uma comunhão plural na qual a única vontade do Senhor colocou tanto a primazia petrina quanto a permanência do discípulo amado. Hoje sabemos bem quem na Igreja é Pedro e reconhecemos sua primazia. Mas quem é o discípulo amado? Quem seria seu sucessor? Quem garantiria no hoje da Igreja a presença do discípulo amado que fica?
Giulio Busi, com a agudeza do estudioso refinado e a familiaridade com os textos bíblicos, mostra as razões pelas quais no cristianismo existe e “fica” quem dá a primazia ao amor, quem desempenha o papel profético com um amor vigilante e apaixonado, capaz de indicar a toda a igreja o Senhor.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
João, o discípulo mais amado, pelo mais “judaico” dos evangelhos. Artigo de Enzo Bianchi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU