14 Setembro 2024
Dentro da fé. O autor do Quarto Evangelho consegue algo que parece impossível: mantém a distância e a veneração pelo Mestre e, ao mesmo tempo, se aproxima dele e nos permite tocá-lo também. O novo livro de Giulio Busi Il Vangelo di Giovanni (O Evangelho de João), também conhecido como o Quarto Evangelho por ser considerado mais tardio, é uma grande árvore que deu frutos ao longo da história cristã.
O artigo é de Giulio Busi, estudioso do misticismo judaico, publicada por Il Sole 24 Ore, 03-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Cada ramo dessa imensa planta conta, e é importante conhecê-lo. É importante para os cristãos, pois o Quarto Evangelho é uma das pedras angulares da fé. Mas também é fundamental para a cultura e a sociedade do chamado “mundo ocidental”, pois cada uma das palavras escritas nesse livro influenciou, para o bem ou para o mal, dois mil anos de história. O Evangelho de João é o mais judaico dos Evangelhos. Seu autor conhece profundamente os costumes judaicos e tenta explicá-los aos leitores não judeus. Ele se sente à vontade na topografia de Jerusalém quanto qualquer pessoa nascida na cidade santa. Até mesmo o grego com o qual se expressa trai a origem judaica e aramaica de seus pensamentos. Ao mesmo tempo, e em um contraponto dramático, o Evangelho de João usa palavras duras contra os “judeus” e até os acusa de terem o diabo como pai (João 8,44).
A hostilidade de João é uma ferida profunda na história das relações muitas vezes conflituosas entre o cristianismo e o judaísmo. Como explicar essa polêmica? João foi mal interpretado em sua posição em relação aos “judeus”? E, em caso afirmativo, de onde nasce esse mal-entendido? O Evangelho de João tem suas próprias características, que o distinguem claramente dos três Evangelhos sinóticos - Mateus, Marcos e Lucas. E exibe uma força, uma ambição teológica que o torna, juntamente com as cartas de Paulo, o primeiro grande documento de pensamento da Igreja Cristã.
Os sinóticos são indispensáveis para reconstruir a figura do Jesus histórico, mas o Quarto Evangelho tem um significado duplo. Por um lado, é a pedra angular do amor de Cristo e da sua preexistência. Por outro lado, nos revela detalhes históricos, topográficos e cronológicos, desconhecidos pelos sinóticos, e de fundamental importância para a ambientação da pregação de Jesus na Terra de Israel, entre seu povo. João. O Discípulo que Jesus amava se baseia exatamente nessas características excepcionais. O Quarto Evangelho é tão diferente e tão pessoal que nos oferece uma oportunidade única. De todas as perguntas, a que mais nos interessa diz respeito à fidelidade de João a Jesus. Não há dúvida de que ele quer ser fiel ao Mestre de sua juventude. Tampouco há dúvida de que a estrutura ambiciosa do Quarto Evangelho esteja no centro da construção do cristianismo. Mas uma coisa é querer a fidelidade. E outra coisa é obter tal adesão à pregação original.
Por que, às vezes, João parece ter encontrado uma pessoa diferente, que fala e age de forma diferente do protagonista dos sinóticos? Durante séculos, o Evangelho de João foi considerado uma obra de pouco valor histórico. Muita teologia e poucos fatos. Veremos que esse não é bem assim, mesmo que seja verdade que João “usa” os fatos, que muitas vezes conhece melhor do que os outros, à sua maneira, de acordo com uma agenda intelectual muito pessoal.
Como pensar que a prosa tão intensa do Quarto Evangelho seja obra de João, o apóstolo filho de Zebedeu, um humilde pescador da Galileia, que os Atos dos Apóstolos nos mostram quase como um iletrado?
Se quisermos desvendar o mistério da obra, devemos abandonar essa atribuição tradicional, que a Igreja assumiu desde o século III. Muitas pistas decisivas convergem para João, o Ancião, ou o Presbítero, o autor de três cartas preservadas no Novo Testamento. Documentos históricos muito antigos nos falam do Ancião como de um discípulo de Jesus, que não fazia parte do círculo dos doze apóstolos, mas que, no entanto, teve conhecimento direto do Mestre de Nazaré.
Depois de deixar a Terra de Israel, em uma data anterior à revolta contra os romanos de 66-70 e à destruição do Templo em Jerusalém, João, o Ancião, muda-se para Éfeso, a capital romana da Ásia Menor. Lá ele compõe ao longo dos anos o seu Evangelho, que é publicado por seus alunos somente após sua morte, que aconteceu em idade avançada, por volta do ano 100.
De acordo com uma tradição muito difundida em Éfeso, João, o Ancião, é de linhagem sacerdotal, um fato que explica muitas características de seu Evangelho. E que nos desafia a entender de uma maneira diferente toda a sua construção teológica. De acordo com os Evangelhos, os sacerdotes do Templo judaico estão entre os principais antagonistas de Jesus. E eis que um deles descreve o conflito, registra até mesmo seus aspectos mais tensos e dolorosos. Mas faz isso de dentro, das fileiras da elite de Jerusalém. João fica fascinado, aliás, abalado, pelo encontro com Jesus, o Mestre que abala as certezas e joga confusão na fé de Israel. Um evangelista de nova face, portanto, e todo a ser descoberto, que coloca diante de nossos olhos seu próprio testemunho, tão diferente porque diferente e especial é o ponto de vista a partir do qual ele olha para Jesus. A desorientação e a tensão agitam João, mudam sua vida, projetam-no em um mundo distante daquele de suas origens.
Tensão, sim, mas também proximidade com Jesus, simplicidade. João consegue o que pareceria impossível. Mantém a distância e a veneração pela figura tão dominante do Mestre e, ao mesmo tempo, aproxima-se dele, toca-o e, de alguma forma, faz com que nós o toquemos também. Não se trata de uma metáfora. O discípulo de fato toca Jesus, e é tocado por ele com um gesto de amor: “Ora, um de seus discípulos, aquele a quem Jesus amava, estava reclinado no seio de Jesus” (Jo 13,23). Por cinco vezes, o Quarto Evangelho menciona o discípulo a quem Jesus amava para indicar o autor do livro ou, pelo menos, aquele que, por seu próprio testemunho, atesta tudo o que é narrado nele. Os alunos tentam entender Jesus e quase sempre não conseguem. As multidões são atraídas por seu carisma, mas o contestam e se colocam contra ele. João registra, maravilha-se, descreve, duvida, acredita. E, a partir da angústia e da fé, extrai a joia, reluzente e obscura, de seu Evangelho.
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Com João nós também podemos tocar Jesus. Artigo de Giulio Busi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU