13 Agosto 2025
"Diante desta situação, não nos resta que dar voz a uma pergunta que não quer ser calada: haveria ainda lugar para uma crítica emancipatória tanto das tecnologias quanto do neoliberalismo?"
O artigo é de Sinivaldo Silva Tavares.
Sinivaldo Silva Tavares, frade franciscano, é doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum (1998) e pós-doutor pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2018). De 1999 a 2011 foi professor de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia dos franciscanos em Petrópolis. Desde 2012, é professor e pesquisador junto ao Programa de Pós-graduação em Teologia da FAJE.
É membro dos grupos de pesquisa: “Ecoteologia, religião e consciência planetária” (FAJE); “Transdisciplinaridade, Ecologia integral e Justiça socioambiental” (UNISINOS) e “Common Home and new ways of living interculturally” (Universidade Católica Portuguesa). Possui mais de dez livros publicados, dentre os quais: A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo. A contribuição da Teologia da Libertação latino-americana (2002); Jesus, Parábola de Deus. Cristologia narrativa (2007); Trindade e Criação (2007); Teologia da Criação. Outro olhar – novas relações (2010); Evangelização e interculturalidade (2010); Evangelizar em Diálogo. Novos cenários a partir do paradigma ecológico (2014); Cuidar da Casa Comum. Chaves de leitura teológicas e pastorais da Laudato Si’ (com A. Murad) (2016); Ecologia e decolonialidade. Implicações mútuas (2022). Possui ainda inúmeros estudos publicados em revistas especializadas e em obras
coletivas.
Sinivaldo Silva Tavares | Foto: Arquivo Pessoal
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
Mais uma atitude histriônica do presidente eleito dos EUA: impor tarifas exorbitantes sobre demais nações, desrespeitando acordos comerciais celebrados até o presente. Apesar de envolto em grossas nuvens de fumaça, esse “tarifaço” revela um projeto colonial global com vistas ao extrativismo predatório e, portanto, com incidências diretas sobre a atual “crise climática”. Trago, aqui, a título de exemplo duas situações.
A primeira delas diz respeito ao acordo tarifário celebrado entre EUA e União europeia. Na opinião de analistas atentos, em vez de acordo o que, de fato, ocorreu foi a capitulação cabal dos países europeus, pondo em risco o cumprimento de compromissos climáticos assumidos. A aceitação, sem resistência, da imposição do governo estadunidense de que os países europeus comprem 750 bilhões de dólares em petróleo e gás durante o período de três anos, compromete a “transição energética” programada. Mais do que um acordo comercial ou econômico, celebrou-se um “compromisso fóssil”, e o clima acabou se tornando “moeda de troca” da transação. É lamentável que, justamente no momento em que mais necessitamos de potências mundiais que se contraponham ao negacionismo climático dos EUA, os países europeus se submetam aos caprichos fósseis de um presidente financiado pelas Big Oil. E, mais ainda, esse acordo entre EUA e União europeia possui fortes semelhanças com os tratados desiguais e injustos que potências coloniais europeias impunham a suas colônias, entre os séculos XVI-XX. Só que dessa vez, constata-se um deslocamento de posições e de papéis: as vítimas são os países europeus, tratados como colônias estadunidenses.
A segunda situação se refere às ameaças tarifárias impostas pelo presidente dos EUA ao Brasil. Nesse caso específico, a “cortina de fumaça” em torno do “tarifaço” se torna ainda mais espessa por conta de jogos políticos de interesse de uma família capaz de sacrificar tudo em defesa da própria pele. No entanto, por trás das ameaças do presidente dos EUA se encontram sobretudo o interesse em nossas “terras raras com seus metais estratégicos” e a manutenção dos interesses econômicos e de poder das Big Techs estadunidenses.
As “terras raras” contêm cerca de 17 minerais estratégicos para tecnologias de ponta necessárias ao processo da “transição energética” ou “energia limpa”. Lítio, níquel, cobalto, manganês e grafite são componentes cruciais para o desempenho, a longevidade e a densidade de energia das baterias, incluindo as usadas em veículos elétricos e sistemas de armazenamento de energia. Cobre e alumínio são vitais para a infraestrutura de energia, usados em grandes quantidades em linhas de transmissão e redes elétricas, garantindo a distribuição eficiente da eletricidade gerada por fontes renováveis. E os elementos de terras raras são imprescindíveis para a fabricação de ímãs permanentes, utilizados em turbinas eólicas e motores de veículos elétricos, fundamentais para a geração de energia renovável e a mobilidade elétrica.
O Brasil se encontra na mira da geopolítica dos EUA por ser o segundo país com maiores reservas desses minérios, superado apenas pela China. E o que mais preocupa é o caráter extremamente predatório dos processos utilizados na extração desses minerais estratégicos. Esse extrativismo predatório emerge, portanto, como condição de possibilidade e de sustentação de novas relações coloniais para com populações e territórios. Sabemos bem o que isso significa graças à persistência de estruturas extrativistas e coloniais ao longo de nossa história. O próprio nome, Brasil, revela e, ao mesmo tempo, trai sua referência a um bem natural extraído e comercializado. E o extrativismo selvagem praticado em nossas terras pela colonização europeia foi se intensificando, com o passar do tempo, ainda que seus bens naturais fossem se diversificando. À extração do Pau-Brasil, seguiram-se outros ciclos não menos predatórios: cana-de-açúcar, mineração, borracha, café e, simultaneamente, gado. Em síntese, o extrativismo predatório se tornou o motor do capitalismo mercantilista colonial. E emergimos, nesse contexto, como uma “empresa multinacional”, dada a configuração intercontinental da ocupação e exploração de povos e territórios. Nossos produtos eram transformados em mercadorias, mediante o trabalho extenuante de povos escravizados. Um verdadeiro empreendimento produtivo e comercial transnacional de fazer inveja à nossa globalização tão decantada no ocaso do século XX e aurora do século XXI.
Vivemos ainda hoje em condições de persistente colonialidade, pois o Brasil continua produzindo commodities para o mercado global. A mineração que continua em plena atividade em nossos territórios é manchada pelo sangue de inúmeros crimes socioambientais. Bastaria mencionar os últimos crimes socioambientais causados pela Vale do Rio Doce em Minas Gerais, para nos darmos conta do legado de ações criminosas de empresas mineradoras responsáveis por passivos ambientais que atingem áreas bem além daquelas diretamente afetadas. As vítimas desses crimes são milhares de pessoas que vivem em seus territórios e deles retiram o básico para sua sobrevivência: quilombolas, povos originários, pequenos agricultores.
E o que dizer com relação às Big Techs? Nada mais emblemático do que a presença no ato de posse do presidente eleito dos EUA, em primeira fila, de representantes das grandes corporações: Big Pharma (farmacêuticas), Big Food (alimentícias), Big Oil (petroleiras) e Big Techs (Uber, Facebook, Google, Apple, Microsoft). Trata-se da confirmação de que sua política sucumbiu aos interesses econômicos dessas grandes corporações, revelando o total esgotamento do sentimento comunitário e social da “Política” desde tempos imemoriais.
As Big Techs têm operado uma espécie de “extrativismo digital”. Não suficientemente satisfeitas com escavar solos e subsolos e de extenuar a força humana de trabalho, empresas de informação pretendem escavar nossa psique e nossa privacidade, operando uma autêntica “mineração de dados”. As fake News, por exemplo, são o subproduto do “capitalismo digital” assim como o aquecimento global o é do “capitalismo fóssil”. E a razão dessa atitude extrativista se encontra na descoberta dos algoritmos, verdadeira “mina de ouro imaterial” das grandes empresas e corporações internacionais. O mapeamento de algoritmos permite às grandes empresas o controle de consumidores e também de eleitores, uma vez que descrevem um vasto leque de padrões de comportamento. Por meio do “extrativismo digital” nossa privacidade, nossa subjetividade, nossos desejos mais recônditos são extraídos, alienados e, enfim, reduzidos a mercadorias compradas e vendidas à revelia de nossa vontade. Numa palavra, nossas informações, granuladas e rastreadas, se convertem em armas de controle e de governabilidade. Até nossa liberdade pessoal é reduzida a mera prestação de serviços, a despeito de nossa consciência e vontade. Exemplo disso é o fato de que, cada vez que compartilhamos nas redes sociais um momento que seja de nosso lazer, estamos produzindo, sem o saber e o querer, o enriquecimento de alguns poucos que sequer conhecemos. De fato, a privacidade tem se tornado o maior ativo econômico do século XXI.
Diante desta situação, não nos resta que dar voz a uma pergunta que não quer ser calada: haveria ainda lugar para uma crítica emancipatória tanto das tecnologias quanto do neoliberalismo?