24 Junho 2025
Durante décadas, fomos levados a acreditar que o livre mercado e a liberdade individual eram sinônimos, e que qualquer intervenção pública significava uma ameaça aos valores democráticos. Naomi Oreskes desmantela essa falácia em seu último livro, El gran mito: Cómo las empresas nos enseñaron a aborrecer el Gobierno y amar el libre mercado (Capitán Swing), onde rastreia, junto com Erik M. Conway, como corporações e lobbies manipularam, por mais de um século, os discursos públicos, os meios de comunicação e até as universidades.
“O poder da propaganda é enorme”, diz ela nesta entrevista, explicando como setores inteiros da elite econômica se convenceram - ou preferiram se convencer - de que sua ganância era sinônimo de liberdade. Conversamos com ela sobre o negacionismo climático, as promessas tecnológicas que se repetem a cada cinco anos e a perda da noção de bem comum, uma ideia que até Adam Smith defendia e que hoje parece esquecida.
A entrevista é de Guillem Pujol, publicada por La Marea-Climática, 19-06-2025. A tradução é do Cepat.
No início do livro, vocês tomam como ponto de partida a tese de Naomi Klein e de outros autores que argumentam que o capitalismo é a causa estrutural da mudança climática: “Nós argumentamos que é como pensamos sobre o capitalismo e como ele funciona”. Em filosofia, diriam que é um debate entre idealistas e materialistas.
Penso que as ideias são fundamentais. Se olharmos para a história, vemos que pessoas como Marx, Hitler ou Adam Smith - para o bem ou para o mal - motivaram milhares a agir em nome de ideias. E se tenho alguma crítica a meu próprio campo, é que os historiadores se inclinaram a esquecer a importância das ideias nos últimos anos, concentrando-se muito nas estruturas materiais. É claro que tudo importa: ideias, pessoas, instituições, contextos materiais. O que importa é como interagem.
E o que acontece quando essas ideias não são honestas, mas instrumentalizadas, projetadas para justificar outros interesses?
Aí está a chave. Algumas pessoas as usam de forma cínica, e outras passam a acreditar nelas. O poder da racionalização é enorme. Em Merchants of Doubt, nosso primeiro livro, nós nos perguntávamos por que pessoas cultas negavam a ciência climática e descobrimos que por trás disso havia uma ideia muito poderosa: o fundamentalismo de mercado e seu vínculo com a noção de liberdade individual. Isso nos levou a investigar de onde vinha essa ideia, quem a havia promovido, porque estava claro que não era uma verdade universal, mas, ao contrário, uma construção ideológica interessada.
No livro, você também explora a chamada “tese da indivisibilidade”, que sustenta que capitalismo e a liberdade são inseparáveis e que representam uma ameaça ao todo. Como surge essa ideia?
É uma construção que nasce nos anos 1930 pelas mãos da Associação Nacional de Fabricantes, uma organização patronal. Eles defendiam a “liberdade industrial”, que nada mais era do que a liberdade dos empreendedores de gerir seus negócios sem interferências. O problema é que essa “liberdade” justificava coisas como condições de trabalho desumanas e o trabalho infantil. Como se defendia algo assim? Alegando que toda intervenção estatal é uma ameaça à liberdade como um todo.
Também fiquei surpreso com o papel do lobby da indústria elétrica nessa história. Não costumamos pensar nela como um ator ideológico poderoso.
E, no entanto, foi pioneira em campanhas de desinformação nos Estados Unidos. O problema é que a eletricidade, assim como as ferrovias, é um monopólio natural. A teoria clássica do livre mercado defende que a concorrência melhora tudo, mas isso não funciona quando você tem que construir infraestruturas caras. Desde o século XIX, muitos entenderam que esses setores precisavam de regulação ou nacionalização. Mas, para evitar isso, as empresas de eletricidade financiaram universidades, livros didáticos e cursos - incluindo a Harvard Business School - que ensinavam que não era necessário regulá-las. Foi uma corrupção intelectual em massa.
E isso continua acontecendo hoje, embora com outros atores, como o Vale do Silício.
Exatamente. Os grandes monopólios digitais atuais ocupam o lugar dos barões do petróleo ou da eletricidade de outrora. Sua ideologia dominante é libertária: menos impostos, menos regulação e mais concentração de poder. Alguns financiam think tanks, outros preferem agir diretamente porque já são tão poderosos que não precisam de intermediários.
Na posse de Trump, todos estavam lá, como em uma cena de ‘O Poderoso Chefão’, fazendo fila para beijar o anel.
Sim, e essa imagem resume muito bem como o poder real funciona. O que antes eram associações comerciais, hoje são grandes fortunas pessoais, de Jeff Bezos a Elon Musk. E embora haja conflitos internos, a base ideológica continua sendo essa defesa do mercado desregulamentado.
Gostaria de perguntar sobre a imprensa, porque um dos principais argumentos do MAGA (Make America Great Again) é que não é mais possível confiar na mainstream media. Até que ponto jornais como The New York Times e Washington Post também foram “cooptados”?
Muito. Em Merchants of Doubt, explicamos como as campanhas negacionistas da ciência climática manipularam os meios de comunicação com a ideia de “dar voz às duas partes”, como se houvesse duas posições legítimas sobre fatos científicos. E os jornalistas caíram na armadilha porque o equilíbrio é um valor no jornalismo. Mas a verdadeira responsabilidade deveria ser com a precisão e a verdade.
Em relação ao meio ambiente, parece que chegamos a um ponto em que nem é necessário justificar nada, embora os efeitos da mudança climática sejam cada vez mais evidentes. Como você vê o debate atual?
Vivemos um momento paradoxal. Por um lado, a evidência científica sobre a mudança climática é indiscutível. Por outro, há setores econômicos e políticos que continuam alimentando narrativas falsas ou minimizando o problema porque seu modelo de negócio depende disso. É o que vemos no negacionismo, mas também em certas promessas tecnológicas que funcionam como distração. A cada cinco anos, aparece o anúncio de que a energia de fusão está prestes a chegar e salvar tudo. E isto nunca acontece. Enquanto isso, não se investe suficientemente nas tecnologias que já existem, como a solar, a eólica ou o armazenamento de energia.
Como dizia Donald Trump: “Drill, baby, drill”. Age-se e ponto.
Certo, mas ainda é possível resistir criando narrativas alternativas. Embora digam que essas terras não valem nada, a verdade é que são um bem comum, patrimônio de todos os cidadãos. E devemos nos lembrar disso, porque mesmo em meios de comunicação liberais como The New York Times, já se fala pouco do conceito de “bem comum”.
Hoje, também temos outro problema: a concentração da mídia. A desregulamentação das telecomunicações dos anos 1990, sob Bill Clinton, permitiu a consolidação de grandes conglomerados que controlam a maior parte dos meios de comunicação, reduzindo enormemente a diversidade de vozes.
Dá a sensação de que perdemos até a capacidade de pensar os conceitos de “bem público” ou propriedade comum”.
Totalmente. E isso é trágico, porque até Adam Smith reconhecia, em A Riqueza das Nações, que deveria haver impostos para sustentar os bens públicos. E, no entanto, essa parte também foi apagada das edições “oficiais” promovidas por economistas como George Stigler. Portanto, penso que é urgente retomar essa conversa.
Vamos falar um pouco sobre a guerra, seja o genocídio israelense em Gaza, a invasão russa da Ucrânia ou o recente e preocupante ataque ao Irã, também desde Israel. Quem convence as sociedades de que elas devem entrar para morrer em uma guerra?
Aqui, concordo com Naomi Klein: há aqueles que se beneficiam muito da guerra. O complexo militar-industrial estadunidense continua sendo enormemente poderoso. Enquanto se discute sobre cortes orçamentários para ciência ou saúde, trilhões estão sendo gastos em armamento e exportações de armas. É um negócio multimilionário.
E isto se conecta com o que você dizia antes: boa parte do que vemos hoje não é ideologia coerente, mas pura ganância. O governo Trump abriu enormes extensões de terras públicas para a exploração de petróleo, gás e carvão, repetindo a estratégia da Rússia pós-soviética: privatizar ativos públicos e enriquecer uns poucos.
Para concluir: depois de pesquisar todas essas narrativas e discursos... ainda há espaço para otimismo?
Sim, e eu vou te dizer por quê. Porque se essas ideias foram fabricadas e incutidas por meio de estratégias conscientes e persistentes, o que significa que elas também podem ser desmanteladas. E o mais importante: outras podem ser propostas. E nessa tarefa, os meios de comunicação, as universidades e os movimentos sociais têm muito a fazer.