25 Março 2024
Naomi Oreskes acaba de publicar, com Erik M. Conway, Le grand mythe: comment les industriels nous ont appris à détester l’Etat et à vénérer le marché (O grande mito: como os industriais nos ensinaram a odiar o Estado e a reverenciar o mercado), livro que conta como o fundamentalismo de mercado se consolidou nos Estados Unidos.
Esta especialista em história da ciência passou a escrever sobre este assunto passando por um estranho caminho, que ela nos conta durante a sua visita a Paris no início de fevereiro.
Geóloga de formação, Naomi Oreskes começou a trabalhar no início de sua carreira nos debates históricos em torno das placas tectônicas. Ela percebeu que os argumentos evoluíam na década de 1950 em direção ao que acontecia nas profundezas do oceano, graças a pesquisas financiadas pela Marinha estadunidense que queria saber mais sobre o assunto para seus submarinos. E aí ela observa que durante este período se estabeleceu um início de consenso científico em torno da realidade das mudanças climáticas.
Porém, quando ela começou esta pesquisa, no início dos anos 2000, o debate americano encontrava-se envolvido em controvérsias científicas sobre o assunto. Ela consulta a literatura disponível que confirma esse consenso e publica diversos artigos, inclusive na grande mídia, que passam a dar destaque ao tema. O que lhe rendeu, em troca, uma campanha de insultos e um ataque violento por parte de um senador republicano.
Foi então que ela começou a investigar seus adversários, momento em que conhece o escritor e historiador Erik M. Conway. Ambos percebem que são as mesmas pessoas que atacaram o consenso científico sobre os buracos na camada de ozônio. E sempre os mesmos que defenderam a segurança da indústria tabagista! Publicaram o seu primeiro sucesso, Les marchands de doute (Os mercadores da dúvida), destacando a mobilização de interesses privados que financiam uma falsa ciência destinada a manter o ceticismo climático.
Antes de perceber que estes mesmos interesses também estão presentes em muitas outras áreas para recusar qualquer regulação pública da economia. E aqui estão eles novamente para uma nova pesquisa histórica sobre a forma como o fundamentalismo de mercado procurou impor-se ao longo do século XX.
Naomi Oreskes é professora de História da Ciência na Harvard University.
A entrevista é de Christian Chavagneux, publicada por Alternatives Économiques, 16-03-2024. A tradução é do Cepat.
Quando é que os defensores do mercado global começam a se organizar para influenciar nos debates?
Nós nos esquecemos de quão brutal era o capitalismo no final do século XIX e no início do século XX. Encontramos crianças com apenas 5 anos de idade, por vezes menos ainda, trabalhando em fábricas, e muitas delas morriam antes de atingirem a idade adulta. Os acidentes de trabalho eram numerosos, tanto que era menos provável que você morresse nos combates da Primeira Guerra Mundial! Daí as primeiras regulamentações para colocar as crianças na escola e a favor da indenização por acidentes de trabalho.
Em resposta, os patrões mobilizaram-se contra estas primeiras tentativas de regulação. Mas obviamente eles não clamaram em voz alta: “nós amamos o trabalho infantil e, além do mais, barato!” Não, eles tentaram impor a ideia de que não cabe ao governo decidir como um líder empresarial deve se organizar – ou então, argumentaram, este é o início do comunismo! A Revolução Russa, é verdade, ocorreu pouco antes. Tentam também impor a ideia de que não cabe ao governo decidir o que um pai deve fazer com os filhos e que, se quiser mandá-los trabalhar, é um direito dele.
Esses empresários atuam em conjunto por meio de grupos como a Associação Nacional dos Fabricantes (NAM), criada em 1895 e ativa até hoje. Na década de 1920, ela postulou a ideia de que o capitalismo e a liberdade andavam de mãos dadas e que, assim que se ataca o primeiro, é um passo em direção ao totalitarismo. Muito antes da publicação de O caminho da servidão, de Friedrich A. Hayek, em 1944!
Estas são ideias que encontramos na Europa de alguém como o economista liberal austríaco Ludwig von Mises, por exemplo.
Perfeito! Não conseguimos determinar se ele influenciou a NAM ou o contrário, ou se a mesma ideia nasceu em dois lugares diferentes. Mas descobrimos que já no final da década de 1920, início da década de 1930, von Mises era consultor da NAM. Existem, portanto, muitas ligações entre as empresas americanas e a escola liberal austríaca a partir desse momento.
Qual é o próximo passo na batalha travada pelos fundamentalistas do mercado?
Aconteceu na década de 1930. A luta foi então liderada pela National Electric Light Association (NELA), o sindicato dos produtores privados de eletricidade.
Na época, o setor era dominado por grandes empresas como General Electric, Edison Electric, Westinghouse. Elas prestam um serviço de boa qualidade nas grandes cidades, mas não se interessam pelo campo, que não é muito rentável. Algumas cidades pequenas começam a desenvolver as suas empresas públicas municipais e verifica-se que a produção pública é mais barata do que a produção privada. Inspirado pelo que está acontecendo no Canadá, na província de Ontário, o governador do Estado da Pensilvânia, Gifford Pinchot, constrói um grande projeto público de produção de eletricidade a preços competitivos.
A NELA começa a responder que tudo isto é falso, que a produção estatal é muito cara e mobiliza especialistas que publicam estudos neste sentido.
Vocês dizem no livro que esses interesses privados não tiveram problemas em recrutar economistas para defenderem as suas ideias falsas...
Sempre há especialistas à venda... Acadêmicos um pouco isolados, mal remunerados ou necessitados de reconhecimento foram facilmente atraídos. Foram convencidos antecipadamente da superioridade do setor privado ou apenas com conhecimentos especializados contratados? É difícil dizer, mas acho que a maioria estava apenas à venda! E prontos para dizer que a eletricidade produzida de forma privada era mais barata, o que era falso.
A Comissão Federal de Comércio, que protege os consumidores nos Estados Unidos, disse que a NELA lançou então a maior campanha de propaganda da história dos EUA. Com relatórios, cartazes, etc., e até, certamente o pior, ela mandou reescrever livros escolares do ensino médio, e milhares de exemplares de livros pró-mercado foram enviados gratuitamente às bibliotecas universitárias.
Em Harvard, a universidade onde ensino, ela pagou pela criação de um curso sobre “a regulação do mercado elétrico” que explicava porque não havia absolutamente nenhuma necessidade de regulação pública! Encontramos o recibo do cheque aceito pela Harvard.
Tudo isso deve ter custado muito dinheiro?
É difícil dizer com certeza. Conseguimos recuperar informações da campanha anterior da NAM e estimamos que o gasto total esteja na faixa de US$ 400 milhões a US$ 500 milhões em valores de hoje. Não é nada!
Mas tudo isto não funcionou: foi Roosevelt quem venceu as eleições de 1932, foi reeleito e impôs a regulação pública da economia...
Não funcionou porque os fatos diziam o contrário das ideias que eles promoviam! Crianças morriam nas fábricas, a eletricidade pública era mais barata, etc., as pessoas notaram isso e não acreditaram nestes discursos. A Grande Depressão da década de 1930, ligada à desregulamentação bancária e financeira, sublinhou ainda mais a necessidade de regulamentações públicas.
Parte da comunidade empresarial, ligada à Câmara de Comércio Americana, irá acomodar o New Deal e tentar moderá-lo. Mas outra parte, mais agressiva, nunca desistiria e contribuiria para campanhas virulentas contra Roosevelt. É neste momento que eles cunham a expressão “Big Government” (Grande Governo) para denunciar a intervenção estatal.
Como os fundamentalistas do mercado se recuperaram?
Disseram para si mesmos que o Big Business não era confiável quando dizia que tudo o que fazia era para defender o dia a dia das pessoas. Tiveram que encontrar outras justificativas, outros representantes.
Perceberam então que a Universidade de Chicago poderia representar uma base intelectual para desenvolver o que chamaram de “projeto de livre mercado”. O economista Frank Knight assumiu posições próximas às deles. Eles decidiram torná-lo seu bastião intelectual e recrutaram advogados para lutar contra as regulamentações antimonopólio e economistas como George Stigler, Milton Friedman e Aaron Director. A sua linha agora era dizer: “vejam, não somos nós os businessmen que defendemos a superioridade do mercado, mas todos estes economistas brilhantes”… Tudo sem especificar, obviamente, que foram eles que os financiaram!
Eles trouxeram Friedrich A. Hayek para Chicago na esperança de que ele escrevesse uma versão americana de O caminho da servidão. Mas isso não lhe interessava. Pediram então a Friedman que o fizesse, o que se tornou Capitalismo e liberdade, publicado em 1962, uma reescrita do livro de Hayek adaptada para o público americano e mais extremada.
Paralelamente, o jurista Robert Bork, protegido de Aaron Director, desenvolveu a ideia segundo a qual as empresas em posição de monopólio são aquelas que dominam o jogo da concorrência, são as melhores no seu negócio, o que é bom para o consumidor, porque, por serem mais eficientes, os preços que oferecem são os mais baixos!
Durante décadas, as ideias de Bork impedirão qualquer luta real contra o poder dos monopólios nos Estados Unidos e as de Friedman justificarão a dominação dos acionistas e a corrida ao lucro.
Vocês mostram que a batalha não foi apenas intelectual; os fundamentalistas do mercado queriam atingir um público mais amplo.
Podemos tomar o exemplo de Uma casa na pradaria, que vendeu centenas de milhares de exemplares antes de se tornar um romance de sucesso. Esta obra de Laura Ingalls Wilder conta a história de sua família, mas sua filha, Rose Wilder Lane, uma escritora libertária, fez um grande trabalho de reescrita para torná-la uma ilustração das virtudes do esforço individual, sem a ajuda do governo. A filósofa Ayn Rand escreveu romances libertários populares como A revolta de Atlas (1957).
Quando o cinema começou a ganhar importância nas décadas de 1940 e 1950, um ex-membro da Câmara de Comércio assumiu o comando do sindicato dos produtores e declarou que filmes sociais como As vinhas da ira (John Ford, 1940) estavam acabados! Após a crise da década de 1930, muitos filmes tomaram como heróis personagens das classes trabalhadoras, enquanto os ricos, empresários e banqueiros eram bandidos ou idiotas: era necessário, portanto, incentivar produtores e diretores a fazerem filmes pro-business.
Deste ponto de vista, só podemos constatar a total hipocrisia de pessoas como Ayn Rand, que escreveu palavras inflamadas sobre a liberdade de expressão e que, ao mesmo tempo, escreveu um código de censura para proibir ideias progressistas do cinema, afirmando explicitamente que os ricos e os banqueiros não devem ser retratados negativamente.
Irá o movimento pró-mercado investir também nas Igrejas?
Um dos problemas que os empresários encontraram foi que os seus argumentos eram considerados anticristãos. Os pastores protestantes perceberam durante a crise que não conseguiriam lidar com o afluxo de pessoas pobres e apoiaram Roosevelt.
De forma mais geral, a mensagem cristã promove a solidariedade. Os empresários pensam que os ricos são simplesmente os melhores, e tanto pior para os pobres! Mostramos como irão desenvolver um cristianismo que contesta a mensagem social do Evangelho, com base numa ideia simples: o comunismo é agnóstico e Deus é capitalista. Um bom cristão deve defender o capitalismo de livre mercado. E isso continua até hoje.
Ao mesmo tempo, um ator de segunda categoria se tornará o ícone do movimento...
Este é o terceiro pilar da sua vitória: depois da universidade e da cultura popular, vem Ronald Reagan. Na década de 1940, ele era democrata e chefiou o sindicato dos atores por um tempo. No final da década de 1950, ele mudou para os republicanos.
No meio está seu trabalho para a General Electric. O seu vice-presidente lançou uma grande operação de propaganda interna para convencer os trabalhadores a rejeitarem o sindicalismo. Reagan tornou-se seu porta-voz, atuou nas fábricas, nas escolas, etc., e desenvolveu um verdadeiro talento oratório. Ele também apresentou o General Electric Theatre, o terceiro programa de televisão mais popular dos Estados Unidos. Um programa de qualidade, recebe atores famosos e semanalmente são veiculadas ficções, algumas das quais transmitem claramente a mensagem libertária.
Graças a esse programa, ele se tornou muito popular. E quando deixou a General Electric para entrar na política, alguns dos gestores desta empresa financiaram não só as suas campanhas, mas toda uma série de especialistas para formá-lo em numerosos assuntos, em política externa, etc. Tornou-se governador da Califórnia em 1967 e presidente dos Estados Unidos em 1981.
Será este o culminar de oitenta anos de luta dos fundamentalistas do mercado?
Exatamente. Não devemos subestimar a luta persistente travada por estes fundamentalistas. Mesmo quando suas ideias não têm sucesso, nunca desistem. Eles se reúnem, definem estratégias e colocam o dinheiro certo na mesa, e não deixam que falte.
Sua motivação? Principalmente a ganância. Mas também um desejo de reconhecimento social… E um grande ego! Eles se consideram pessoas brilhantes e bem-sucedidas. Eles não querem que lhes digam que o seu negócio mata crianças, causa crises financeiras, pobreza...
Elon Musk está obviamente feliz por ser extremamente rico e isso aconteceu nos Estados Unidos de hoje. Por que ele está lutando tanto contra a intervenção pública? Isso não lhe renderá muito mais dinheiro. Simplesmente, ele não quer que lhe digam o que fazer, que supervisionem as suas atividades em nome do bem-estar de todos.
A história nos ensina que não podemos deixar que esses empresários façam o que querem. Devemos regular as suas atividades em nome do coletivo, é por isso que precisamos de governos.
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“Os fundamentalistas do mercado nunca desistem”. Entrevista com Naomi Oreskes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU