06 Outubro 2016
No dia 24 de março de 1986, exatos dez anos após o golpe militar que derrubou Isabel Perón, "A História Oficial" recebeu em Hollywood o primeiro Oscar concedido a um filme argentino. Vinte anos mais tarde, o filme de Luis Puenzo foi relançado e redescobriram a força de um cinema sincronizado com seu tempo, capaz de influenciar o curso da coisa pública.
A reportagem é de Thomas Sotinel, publicada por Le Monde e reproduzida por portal Uol, 06-2016.
Quando Puenzo começou a escrever seu filme, em 1983, a junta militar ainda não havia abandonado o poder. Manifestações de rua, impensáveis antes da guerra das Malvinas — que o regime perdeu para o Reino Unido--, exigiam a saída dos generais e almirantes, mas a democracia tardava a chegar.
As mães e as avós da Praça de Maio, que exigiam a verdade sobre o destino dos desparecidos, se tornaram célebres no mundo inteiro, mas os mecanismos dessa campanha de extermínio conduzida pela junta contra seus opositores permaneceram obscuros. Um dos principais deles era o destino reservado aos bebês nascidos enquanto suas mães estavam presas e foram entregues a famílias ligadas ao regime.
No começo, Luis Puenzo, que não filmou durante os anos negros e dirigia uma produtora de filmes publicitários, pensava em dedicar seu longa-metragem à história de uma dessas avós que procurava a criança que sua filha carregava quando foi presa. Quando o regime começou a vacilar, ele teve juntamente com sua co-roteirista Aida Bortnik a ideia de fazer da mãe adotiva a personagem principal de "A História Oficial".
Foi assim que nasceu Alicia, professora autoritária que ensinava a história oficial em um colégio de Buenos Aires, mas que se tornava uma mãe ultrapermissiva uma vez que voltava para seu lar, sucumbindo ao charme de Gaby, a menina que seu marido Roberto levara para casa quatro anos antes apresentando-a como órfã.
A trajetória de Alicia, cujos olhos foram se abrindo aos poucos, é de todo um país. O que "A História Oficial" mostra é tanto a brutalidade de um regime quanto a cumplicidade passiva de um país que preferiu se calar, ainda que massacrassem seus filhos. O retorno dos exilados (encarnados aqui por Anna, uma amiga de infância de Alicia), o relaxamento da censura, as vozes das mães e avós da praça de Maio tiveram cada um sua parte nessa polifonia que sucedeu o silêncio, que acabou vencendo a surdez voluntária da personagem principal.
Graças à atriz Norma Aleandro (prêmio de melhor atriz em Cannes em 1985), essa conscientização escapa da rigidez um tanto didática que às vezes toma conta do roteiro.
Na época em que o filme foi lançado, criticaram Luis Puenzo por sua "estética publicitária", mas mais do que da propaganda, o cineasta emprestou do cinema hollywoodiano sua decupagem precisa e sua caracterização distinta dos protagonistas.
Os papeis secundários são memoráveis e arrastam Norma Aleandro para dentro de uma sequência de duetos, cada um deles revelando um novo aspecto do crime que foi cometido: Chunchuna Villafañe, exilada arrasada pela tortura, Patricio Contreras, professor contestador que ousou voltar a falar, e sobretudo Hector Alterio no papel do marido. Esse personagem oportunista, que se aproveita da ditadura, permanece humano o suficiente para que o espectador veja até que ponto a distância entre a decência e o crime pode se revelar pequena, às vezes.
Nos últimos 30 anos, o cinema argentino abordou continuamente o período de 1976 a 1983. Reticente no início, a nova onda que surgiu no começo dos anos 2000 acabou se apoderando do tema (um dos mais belos filmes sobre esse assunto, alimentado por lembranças de infância da diretora, continua sendo "Los Rubios", de Albertina Carri, lançado em 2003).
"A História Oficial" continua sendo a matriz desse exame de consciência que está sempre recomeçando, algo que muitos outros países poderiam se beneficiar fazendo.
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Filme argentino lança luz sobre drama de crianças sequestradas durante ditadura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU