11 Julho 2023
Marginais no final da Segunda Guerra Mundial, as ideias liberais entraram na moda na década de 1980 e continuam a dominar o debate público até hoje.
A reportagem é de Jean-Christophe Catalon, publicada por Alternatives Économiques, 23-06-2023. A tradução é do Cepat.
Tributar os ricos amedronta e prejudica a competitividade do país, o setor privado é sempre mais eficiente do que o setor público, ou o seguro-desemprego excessivamente generoso penaliza o emprego: essas cantilenas estão em voga no debate público. Mas como essas ideias liberais se tornaram hegemônicas? Na França, no final da Segunda Guerra Mundial, elas eram marginais, “o socialismo, o marxismo e o catolicismo social davam o tom”, lembra François Denord [1]. Progressivamente, a esquerda e a direita acabarão se convertendo a elas.
Nos anos 1970, o liberalismo possibilitou a aproximação de grupos hostis à união da esquerda: de donos de empresas a intelectuais de direita, passando por ex-ativistas de esquerda para quem marxismo rimava com totalitarismo. Entre eles, os chamados “novos economistas”, acadêmicos e jornalistas próximos ao mundo empresarial (Henri Lepage, Jean-Jacques Rosa, Pascal Salin, etc.) “contribuíram para difundir o monetarismo, as teorias das ofertas e estigmatizar o keynesianismo”, relata o sociólogo.
Com a aproximação das eleições presidenciais de 1981 na França, “o liberalismo está em sintonia com os tempos”, contextualiza François Denord, entre a chegada ao poder de Margaret Thatcher no Reino Unido e de Ronald Reagan nos Estados Unidos. A direita francesa deu a volta por cima e, com a vitória da esquerda, reconstruiu-se desenvolvendo as ideias liberais que lhe permitiram marcar a sua oposição à política econômica de François Mitterrand e que acabariam por fazer parte da sua identidade.
Pelo lado da esquerda, embora anticapitalista nos textos, o Partido Socialista de François Mitterrand não almeja romper com a economia de mercado, mostra a obra do historiador Mathieu Fulla [2]. Em 1983, dividido entre as suas duas ambições, “a Europa ou a justiça social”, o presidente decidiu pela primeira e anunciou um plano de austeridade. Esta decisão reconhece que a França é agora uma economia aberta.
A esquerda não apenas aceita, mas acompanha o movimento: Pierre Bérégovoy na França e Jacques Delors em escala europeia estão entre os arquitetos da livre circulação de capitais. A ideia é construir uma globalização com regras. A economia de mercado globalizada é hoje o horizonte dos maiores partidos políticos do país. E a queda da URSS consolidou essa tendência nos anos 1990.
A hegemonia do discurso neoliberal explica-se também pela difusão de “dogmas”, “proferidos por altos funcionários que trabalham alternativamente para governos de esquerda e de direita” e que fizeram emergir “um pensamento único”, diz o jornalista Laurent Mauduit [3]. As comissões criadas pelos governos, que reúnem a intelectualidade econômica e administrativa, são um exemplo perfeito disso.
A comissão confiada a Alain Minc, criada pelo primeiro-ministro Edouard Balladur em 1994, embala a ideia de que o desemprego se deve a salários excessivamente altos; o relatório Pébereau, encomendado pelo ministro da Fazenda Thierry Breton, em 2005, faz uma leitura dramatizada da dívida pública, contribuindo para torná-la um dos temas da eleição presidencial de 2007.
Sem esquecer a Comissão Attali, constituída por Nicolas Sarkozy no ano da sua chegada ao Elysée, da qual participaram o futuro presidente do Medef Geoffroy Roux de Bézieux e Emmanuel Macron, que denuncia as regulamentações que restringem a iniciativa privada e insiste em que a as reformas recomendadas sejam “perseguidas (...) independentemente de quais sejam as maiorias” políticas.
Além dessas grandes reuniões pontuais, os dogmas neoliberais também são promovidos, muitas vezes por essas mesmas personalidades, por meio de think tanks. Um dos mais emblemáticos é a Fundação Saint-Simon (1982-1999). Criada para estabelecer uma ligação entre uma franja de empregadores e intelectuais de esquerda para quem a economia de mercado e a democracia andam de mãos dadas, teve entre as suas figuras de proa Alain Minc e Pierre Rosanvallon. Sua nota sobre “a preferência francesa pelo desemprego”, publicada por Denis Olivennes, inspirou as conclusões do relatório da Comissão Minc.
Estas organizações multiplicaram-se na sequência de uma vontade política de terceirizar a expertise, antes restrita ao Departamento de Previsão, ao Planejamento – caracterizado por um certo pluralismo – ou ao INSEE, de forma a promover a emergência de ideias novas. Entre os mais influentes estão o Institut de l'entreprise, criado pelos empresários em 1975, o Instituto Montaigne, fundado em 2000 pelo dono do AXA, Claude Bébéar, e o Terra Nova, criado em 2008 para renovar as ideias do Partido Socialista após a derrota presidencial [4].
Longe de corresponder à ambição inicial, “estas estruturas, financiadas por grandes empresas e com membros em comum, disseminam um discurso mainstream”, observa a socióloga Catherine Comet. Entre as personalidades que acumulam mais interligações estão economistas como Jean-Hervé Lorenzi, presidente do Círculo dos Economistas – descrito como “um gabinete de propaganda do ‘pensamento único’” por Laurent Mauduit [5] –, ou ainda Jean Pisani-Ferry, membro entre outros do Terra Nova.
Quanto aos empresários, muitas vezes são aqueles que têm assento em vários conselhos de administração e que assim têm “uma consciência dos interesses coletivos das grandes empresas”, explica Catherine Comet, tal como Michel Pébereau, enarca [graduado da ENA – Escola Nacional de Administração] que se tornou CEO do BNP Paribas, que, de modo especial, presidiu o Institut de l'entreprise.
O problema é que os políticos terceirizam seu trabalho intelectual para esses think tanks. A campanha de Emmanuel Macron em 2017 é emblemática desse ponto de vista. Sem partido, consegue construir um programa com mais medidas do que os seus antecessores, sublinha o cientista político Rafaël Cos [6]. Um símbolo e tanto: Jean Pisani-Ferry estava encarregado de elaborar as propostas do candidato quando Laurent Bigorgne, então diretor do Instituto Montaigne, o acolheu no En Marche!.
Para propagar suas ideias, os think tanks produzem notas didáticas que muitas vezes são recolhidas pela mídia. Bem, nem todas. Por exemplo, em maio de 2020, a do Instituto Montaigne que propõe o aumento do tempo de trabalho para compensar as perdas do confinamento teve ampla cobertura mediática, ao contrário daquela da Attac, publicada dois dias antes e que convidava, entre outras coisas, a tributar excepcionalmente o patrimônio dos biliónarios, relata a associação de críticos da mídia Acrimed.
A mídia obviamente tem um papel importante na divulgação e legitimação das ideias neoliberais e na desqualificação de alternativas. Isso por meio de editoriais econômicos, quase exclusivamente escritos por colunistas pró-negócios dominantes na imprensa, até mesmo no serviço público com Jean-Marc Sylvestre e depois Dominique Seux na cadeia de rádio France Inter.
Nesse sentido, a crise de 2008 e o retorno à promoção do papel do Estado desencadearam uma contrarrevolução: um lugar central foi, pouco a pouco, sendo oferecido aos ultraliberais até então confinados à margem do debate (Jean-Marc Daniel, Agnès Verdier-Moligné…). Suas mensagens são claras: as contas públicas devem ser equilibradas a todo custo, os impostos estão muito altos, os sindicatos só servem para bloquear o país etc., que dão a impressão de que são simplesmente ideias de bom senso.
Além disso, os assuntos econômicos são abordados com “uma linguagem simples e clara, direta, que não hesita em provocar”, comenta o sociólogo Frédéric Lebaron [7]. Como David Pujadas, que aborda essa legislação trabalhista “tão pesada” antes de fazê-la cair ruidosamente no cenário do JT da France 2, perguntando ingenuamente se a Lei El Khomri iria “aliviar” isso.
A permanência dessas ideias no debate público também se deve a outros fatores, como o desenvolvimento das ciências econômicas e seu ensino. A economia mainstream trata a economia de mercado, possivelmente incluindo suas falhas, como um modelo ideal que deveria, na melhor das hipóteses, ser melhorado. As relações sociais de poder, o poder das grandes empresas, os excessos das finanças, o protecionismo, a empresa como instituição política, etc., são temas amplamente negligenciados.
A hegemonia das ideias econômicas liberais continuará? Ela foi um pouco prejudicada pelas crises, pela consciência das desigualdades, especialmente graças aos trabalhos de Thomas Piketty. O livre mercado já não é tão elogiado, mesmo que não seja diretamente questionado, a contestação da reforma previdenciária e o eco midiático das rigorosas análises de Michaël Zemmour promoveram outro discurso, sem esquecer a questão climática. E já existem cursos universitários de economia que estão abertos a outras abordagens. Mas essas inflexões ainda estão longe de superar essa opinião bem estabelecida.
1. Ver DENORD, François. Le néo-libéralisme à la française. Histoire d’une idéologie politique, 2016.
2. FULLA, Mathieu. Les socialistes français et l’économie (1944-1981). Une histoire économique du politique, Les Presses de Sciences Po, 2016.
3. MAUDUIT, Laurent. La caste. Enquête sur cette haute fonction publique qui a pris le pouvoir, La Découverte, 2018.
4. COMET, Catherine. «How does the inner circle shape the policy-planning network in France?», in Socio-Economic Review vol. 17 n° 4, 2019; COMET, Catherine. «Les think tanks en France, lieu de prédilection des interdépendances entre économistes et dirigeants dans la conception de l’action publique», in Politix vol. 34 n° 134, 2021.
5. MAUDUIT, Laurent. Les imposteurs de l’économie. Enquête sur ces gourous médiatiques qui nous enfument, Gawsewitch Jean-Claude, 2012.
6. COS, Raphaël. «De la dénégation du programme à la baisse de la fiscalité du capital. Aspects de la mobilisation programmatique d’En Marche !», in L’entreprise Macron, Presses universitaires de Grenoble, 2019.
7. LEBARON, Frédéric. La croyance économique. Les économistes entre science et politique, Seuil, 2000.
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Como as ideias liberais se impuseram no debate público - Instituto Humanitas Unisinos - IHU