29 Setembro 2022
Aproximam-se eleições com o clima político e social mais acirrado da história republicana brasileira. Lula galvaniza as esperanças da ampla maioria de progressistas que habitam o Brasil, mas do outro lado há mais do que um candidato neofascista: Bolsonaro simboliza um movimento global de engajamento de parcelas da população de negação dos valores consagrados pelo liberalismo político que hegemoniza o Ocidente há quase 250 anos. Portanto, as ditas polarizações haverão de continuar fechadas as urnas no Brasil. É disso que trata a entrevista que o Correio publica com Marina Basso, autora do livro “O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro”.
A obra analisa o bolsonarismo como um movimento ultraconservador de busca por um mundo que se perdeu e trata como bode expiatório grupos sociais historicamente discriminados pelas sociedades que o capitalismo engendrou.
“Quanto ao horizonte social, cultural e ideológico, vou usar uma palavra desgastada, mas precisa: polarização. Temos diante de nós um horizonte de polarização. Há setores da sociedade muito engajados em uma cada vez maior defesa da liberdade dos costumes, da diversidade da organização dos afetos, na defesa de expressões culturais progressistas, do combate muito forte ao racismo; mas há também setores ou muito aferrados ao tradicionalismo, ou lutando contra diversas formas da igualdade social”.
Mas se por um lado é fácil apontar o caráter patriarcal, religioso, heteronormativo e branco que caracteriza os setores que alcançaram o benefício material e imaterial das sociedades organizadas sob o modo de produção capitalista, por outro cabe admitir que tal movimento, em última instância incapaz de frear as transformações do mundo, capturou os sentimentos de medo e frustração de camadas sociais subalternas.
“Parte das pessoas pobres, desesperadas, sem poder, tendem a se agarrar a posições conservadoras, tradicionalistas, como um modo de proteção contra o desmoronamento da vida, a falta de oportunidades, de perspectivas. Portanto, eu vejo alguns aspectos das manifestações da ultradireita, sim, como um grito, mas não diante da redistribuição de forças no sistema geopolítico, e sim com a queda, de décadas, das políticas de bem-estar”, analisou.
A entrevista é de Gabriel Brito, publicada por Correio da Cidadania, 23-09-2022.
Seu livro “O novo conservadorismo brasileiro: de Reagan a Bolsonaro” já enuncia no título uma abordagem mais histórica e conjuntural. E coincide com o período e o próprio líder político do que ficou compreendido como neoliberalismo. O que explica toda essa conexão?
O que aproxima a ascensão de Ronald Reagan e a ascensão do Bolsonaro é um projeto político baseado em valores morais da direita cristã e na defesa do punitivismo como resposta aos problemas sociais, e em oposição aos modelos de intervenção do Estado para redução das desigualdades. Nos Estados Unidos dos anos 1980 esse projeto viabilizou a implantação do neoliberalismo. No Brasil, esse marco político possibilitou a retomada do neoliberalismo em estado puro, sem as várias mitigações que foram feitas nos governos do PT.
Como a ascensão desses grupos ameaça as democracias liberais e aquilo que podemos chamar de “consenso dos mercados”, isto é, uma conjuntura política que pareceu aceita inclusive por setores à esquerda por determinado tempo?
Esse movimento neoconservador – ou paleoconservador como eu venho chamando mais recentemente – tem no seu cerne a oposição a valores iluministas, liberais. É uma lógica de que o que está no centro de uma boa sociedade são os valores tradicionais, a “verdadeira” família, a religião e não direitos universais. No limite, essa luta contra o iluminismo, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, acabou levando ao rechaço do que possivelmente é o maior legado do iluminismo, que é a democracia liberal. Eu argumento isso em um livro recente que lançamos pela USP.
Isso acontece também porque, nos Estados Unidos e no Brasil, o projeto que tem no seu centro a família tradicional e a religião – temas que têm muita legitimidade – acaba agregando com o seu desenvolvimento outras tendências da direita e da extrema direita, algumas das quais militam diretamente contra os marcos da democracia representativa. Por exemplo: acabaram se associando à direita cristã aqueles que são saudosistas do regime de 1964.
Qual horizonte histórico se coloca diante de nós em relação a esta aliança política, econômica, cultural e ideológica?
Nós estamos vivendo as agonias de 40 anos de neoliberalismo, com uma desigualdade persistente e consistente não só no Brasil como no mundo. Vivemos também um processo de financeirização sem precedentes, sob o qual o resultado do trabalho das famílias e dos indivíduos é consumido no pagamento de juros. Lula, que deve ganhar as eleições, dá sinais de que irá promover políticas inclusivas, mas não sei até que ponto isso será possível. De um lado, o perfil conciliador dele é um dos seus grandes trunfos. De outro lado, como enfrentar essas mazelas econômicas sem confrontar forças poderosas?
Quanto ao horizonte social, cultural e ideológico, vou usar uma palavra desgastada, mas precisa: “polarização”. Temos diante de nós um horizonte de polarização. Há setores da sociedade muito engajados em uma cada vez maior defesa da liberdade dos costumes, da diversidade da organização dos afetos, na defesa de expressões culturais progressistas, do combate muito forte ao racismo; mas há também setores ou muito aferrados ao tradicionalismo, ou lutando contra diversas formas da igualdade social.
Com a provável vitória do Lula, os setores mais conservadores (e os mais radicalizados entre os conservadores) seguirão existindo, é claro. Vou dar um exemplo: nunca vimos o movimento feminista e os valores feministas permeando tantos setores sociais; por outro lado, também nunca tínhamos visto figuras públicas, na história contemporânea, defenderem textualmente a submissão da mulher no casamento.
É possível tecer similaridades com o fenômeno do nazifascismo no século 20? Estamos diante de um reavivamento, sob novos símbolos, signos, até vocabulário, desse bloco?
Essa é uma das tendências da extrema direita contemporânea no Brasil. Eu entendo o bolsonarismo como um agregado mais ou menos coerente, mais ou menos incoerente, de posições conservadoras. Temos a direita cristã, os monarquistas, os ultraliberais na economia, os ruralistas, os armamentistas... O neonazismo é uma dessas forças.
Se projetamos o futuro, estaríamos diante de capítulos finais de uma supremacia ocidental nas relações geopolíticas gerais? O novo conservadorismo seria um grito desesperado pela volta a um passado que não tem condições de se realizar diante de uma redistribuição de forças capitaneada pela China, além das próprias condições gerais a que chegou o capitalismo?
Aqui precisamos separar duas coisas. Uma delas é a China. A reação ao comunismo em geral e à China em particular têm um papel fundamental para o desenvolvimento das várias direitas. O neoconservadorismo se estruturou contra a URSS. A direita brasileira contemporânea tem o Socialismo do Século 21 como inimigo. A direita cristã brasileira, em 1964 e hoje, têm no anticomunismo uma pedra de toque. O anticomunismo está presente nas forças armadas brasileiras há praticamente um século e as parcerias da China com a Dilma foram fundamentais para os militares participarem das estratégias de derrubada do PT. Há também a teoria da guerra cultural, que é contra o legado de Gramsci, intelectual marxista italiano. E assim por diante.
Mas o grito popular conservador não é contra a China. Como eu mencionei antes, nós vivemos “nas ruínas”, para usar a expressão de uma autora chamada Wendy Brown, ou vivemos as expressões “mórbidas”, para usar uma expressão do cientista político André Singer. Ruínas, expressões mórbidas, de 40 anos de neoliberalismo, que é um projeto político e econômico fundado para retomar a concentração de renda, abalada com as políticas do pós-segunda guerra.
Parte das pessoas pobres, desesperadas, sem poder, tendem a se agarrar a posições conservadoras, tradicionalistas, como um modo de proteção contra o desmoronamento da vida, a falta de oportunidades, de perspectivas. Portanto, eu vejo alguns aspectos das manifestações da ultradireita, sim, como um grito, mas não diante da redistribuição de forças no sistema geopolítico, e sim com a queda, de décadas, das políticas de bem-estar.
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As polarizações que virão: “Estamos vivendo as agonias de 40 anos de neoliberalismo”. Entrevista com Marina Basso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU