"A Teologia não esconde a dor de terem matado nosso Senhor Jesus. Mas na teologia infantil, se posso chamar assim, não há lugar para violência! A história de Jesus Cristo é história de graça e de amor. História de Aleluias!!! Até crianças aos 7 aninhos sabem disso!!! Por que razão alguns religiosos (evangélicos ou não) deixam-se levar pelo ódio e pela consumação de ideias não cristãs?"
O artigo é de Rosi Schwantes.
Rosi Schwantes é doutora em Ciências da Religião e pós-doutora em Psicologia. Luterana, professora universitária do Centro Universitário São Camilo em São Paulo.
Tenho muito interesse em estudos de comportamento religioso. Ele pode ser visto como: atitude (ato), coletiva ou individual, pública ou privada, que busque específica relação com o divino e ou com o que é sagrado para uma pessoa. Atualmente já evoluímos nessa análise, conceituamos religiosidade e, separadamente, conceituamos espiritualidade. Me atrai o conceito de religiosidade da totalidade do indivíduo, e melhor dizendo, de uma pessoa.
Professora Dr.ª Rosi Schwantes | Foto: Arquivo Pessoal
É fundamental compreender que esta pessoa faz parte, em geral, de um grupo e, provavelmente, viva sua religiosidade individualmente e coletivamente. A universalidade dos fenômenos religiosos reside na dinâmica dessa experiência religiosa pessoal, independente das escolhas doutrinárias que faz ou é levada a fazer.
Os estudos brasileiros de Psicologia da Religião são recentes, tanto quanto o advento da Psicologia científica nacional. E, quase sempre, a perspectiva científica está atrelada à Psicologia Geral ou Psicologia Social. Embora o comportamento religioso seja considerado complexo e de difícil conclusão, merece rigor científico para que as generalizações não sejam simplistas e ou inconsistentes.
A partir do fim do século XIX é que toda a conjuntura europeia levou estudiosos de saúde mental a organizarem suas teorias a respeito de fatores influentes de adoecimento psíquico, naquele período. Estudos sobre a grande expansão do cristianismo junto à cultura europeia contribuíram para formação de um saber mundial associado entre religiosidade e comprometimento mental. Surgiram nessa época estudiosos questionadores das estruturas religiosas vigentes. Como se tratava também de uma época de muita pobreza e de grandes explorações, a Psicologia moderna tentava compreender a religiosidade e sua função na saúde mental. Começam assim estudos sobre os efeitos da religião nas grandes massas e a necessidade humana por experiência religiosa. Nesta linha, já como filhos tardios, aparecem Sigmund Freud e Carl Gustav Jung. Naquele momento, a religião passa por profundos questionamentos científicos, e mesmo uma crítica da religião aburguesada em contraponto aos estudos relacionados à saúde mental.
As igrejas cristãs (católicas e protestantes) da primeira metade do século XX passam a ter novos interlocutores no mundo moderno com seus muitos problemas, tanto de angústia e melancolia quanto de enfrentamento da fome. Freud e Jung começam a traçar perfis religiosos das pessoas que compunham seus ambientes hospitalares. E assim, descreviam, investigavam e até destacavam esses perfis religiosos como adoecidos, e alguns causados por temas próprios do campo religioso.
Estudar as fontes das crenças e da vulnerabilidade humana estava no centro das explicações, primeiramente, de Freud (e depois, mais amplamente, de Jung) sobre religião. “Os seres humanos moldam Deus em sua psique à imagem de seu pai de carne e osso. ‘O próprio Deus’ é apenas um exagero desse retrato de um pai conforme representado na mente na tenra infância” (Freud, 1914).
A religião passa a ser entendida como o resultado de sentimentos de contemplação e encantamento, visando aplacar o medo que teríamos do desconhecido, como apenas ilusões, fantasias, forma infantil de pensar o impensável.
Jung, por sua vez, mais otimista com o campo religioso, considera a religião como salvífica. Para Jung as experiências religiosas resultam do inconsciente coletivo [1]. Quando Jung fala de alma, por exemplo, não se refere a alma individual, mas sim alma com componentes coletivos, ou seja, fala do inconsciente coletivo da raça humana. Jung diz que as confissões de fé são formas codificadas e dogmatizadas de experiências religiosas originárias. Como forma de valorizar o fenômeno, Jung o categoriza como psicológico, assim podemos estudá-lo de forma científica, verificando-o, tendo como referência certos fatos e dados da experiência das pessoas. Conclui que é da energia psíquica do inconsciente coletivo que são extraídas as respostas para todos os problemas, em especial, para as questões religiosas.
Segundo Jung, na teologia cristã, católicos e protestantes apresentam diferenças básicas em termos psíquicos, por exemplo: a Igreja Católica por sua rigidez particular admite que o dogma [2] é vivo, e o exercício e a repetição da experiência original transformam-se em rito e em instituição imutável. Ou seja, os dogmas possuem força em si mesmos para combater as forças psíquicas. Já o protestantismo libertou-se quase que totalmente desta tradição dogmática e do ritual codificado. Para os protestantes, da época em que Jung escreveu, os pastores não eram vistos como confessores. Segundo Jung, os pastores passavam por treinamentos em faculdades de teologia que, com seu espírito crítico, minava a ingenuidade da fé. Ou seja, há diferenças entre as práticas, mas a prevalência é do coletivo.
Na perspectiva da Psicologia Profunda de Jung há componentes dessas práticas comuns que são fundamentais, mas especialmente a identificação com o que é coletivo, revela a força do inconsciente coletivo exerce sobre as pessoas.
Nos nossos dias, há práticas discutíveis no comportamento religioso do universo cristão no Brasil. Por exemplo, vídeos feitos por cristãos ou pessoas ditas cristãs, usando linguagem e ação obscenas e com exposição de armas, dizendo serem necessárias para proteção e ou para contrapor ação de pessoas com ideias divergentes. Prática discutível, a meu ver, deplorável e contraditória ao evangelho, para dizer o mínimo. Como é possível concordância com ideias anticristãs como a de combate à violência com a incitação clara e apelativa de pegar em armas para proteger-se?
No Brasil, de história recente, vimos em abundância repetirem essas cenas nas redes digitais, envolvendo o campo religioso. E pior, considerando serem práticas cristãs ou com o consentimento de líderes religiosos, nem sempre exemplares em suas atitudes éticas. Também podemos identificar práticas “de alguns evangélicos”, que concordam com tais ideias e até as consideram como verdades cristãs absolutas. Estas ideias alimentam o inconsciente coletivo de parte da população, e pior, são consideradas como ideias verdadeiras.
É oportuno dizer que no Brasil atual, os protestantes são identificados por evangélicos. E com generalizações, este conceito “evangélicos” imprime uma identidade limitada e por vezes equivocada sobre os evangélicos contemporâneos. Segundo Magali Cunha “evangélicos não têm representantes, diferentemente dos católicos que têm uma igreja centralizada. Evangélicos são fragmentados e plurais”.
Proponho discussão sobre o tema de nossas práticas religiosas e nossos comportamentos. Algumas das perguntas que eu faria, baseada em pilares da Psicologia Profunda, seriam essas: Por que, muitos de nós, nos identificamos com o ódio ou com combate às diferenças? Somos mesmos avessos à empatia sendo cristãos? Conhecemos as propostas cristãs, mas na prática fazemos o oposto? É isso? Vejamos o que diz o Apóstolo Paulo em Romanos 7:19, “Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço”. O inconsciente coletivo sugere que nossas ações sejam influenciadas por modelos. Somos tão frágeis assim, que pessoas com a intenção duvidosa, de escárnio e de mentiras, nos influenciem? Agimos ignorando o sofrimento humano e a mensagem da cruz? Ignoramos os desvalidos e sofridos desse sistema?
Freud afirma que nossa religiosidade é infantil, fantasiosa e, por vezes, manipulável. Ou seja, nós agimos e cremos em fantásticas e fantasiosas histórias, contados por textos antigos e por vezes, mitológicas, para lidarmos com tudo o que se mostra misterioso ou desconhecido. Por exemplo, por medo e até pânico da morte.
Pensando assim, gosto de me lembrar de um episódio que aconteceu com minha filha caçula – Priscila – ela estava com 7 aninhos, quando na escola dominical da igreja que frequentávamos, ela recebeu uma revistinha que deveria ser colorida naquela semana, semana santa daquele ano. E lá foi ela, alegremente, cumprir as sugestões da professora: pinte um dia de cada vez, segunda santa, terça santa, e assim por diante. E ela foi pintando. Chegando na quinta-feira santa, ela veio me perguntar: mamãe, posso não pintar a sexta-feira santa? Não gostei! Ao que eu argumentei: Mas filha, estão tão bonitas tuas pinturas, por que você não quer pintar a sexta-feira santa? E ela me explicou: Mamãe, é muito triste! Pintar Jesus (tão querido) na cruz, com pregos, coroa de espinhos e muitos ferimentos, é muito feio. Se ainda fosse um colar de “hula, hula” ou uma corda amarrando a mão dele na cruz, tudo bem, eu pintaria. Mas assim não quero! Vou pintar só a aleluia do sábado e do domingo! E assim ela fez.
A Teologia não esconde a dor de terem matado nosso Senhor Jesus. Mas na teologia infantil, se posso chamar assim, não há lugar para violência! A história de Jesus Cristo é história de graça e de amor. História de Aleluias!!! Até crianças aos 7 aninhos sabem disso!!! Por que razão alguns religiosos (evangélicos ou não) deixam-se levar pelo ódio e pela consumação de ideias não cristãs?
Eu prefiro o pensamento religioso infantil, a despeito das ideias de Freud. Prefiro assim, soluções mirabolantes sobre fatos – bem à moda infantil –, e não com discórdia violenta e ou veladas. Se cremos e agimos de forma infantil, como nas constatações psicanalíticas, certamente é porque tentamos evitar o universo doentio. Se cedemos às influências que nos propõem caminhos de violência, acepção de pessoas e de ideias falsas e oportunistas corremos o risco de estarmos em condições doentias e com ausência total de saúde mental.
CROATTO, Severino. As linguagens da experiência religiosa. São Paulo: Paulinas, 2009.
BARBOSA JR. Zé. Conhecendo os Evangélicos Progressistas: Entrevista a Magali Cunha. Revista Fórum, 2021. Disponível em: https://revistaforum.com.br/opiniao/2021/11/5/conhecendo-os-evangelicos-progressistas-magali-cunha-por-pastor-ze-barbosa-jr-105738.html. Acesso 28 abril 2025
FREUD, Sigmund. Obras completas, São Paulo, Imago,1914.
JUNG, Carl Gustav. Estudos psiquiátricos. Petrópolis: Vozes, 1994.
JUNG, Carl Gustav. Eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2008.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 2009.
[1] Inconsciente coletivo é composto de energias dinâmicas e de símbolos de significação universal.
[2] Segundo Aurélio – dicionário da língua portuguesa, dogma é um ponto fundamental e indiscutível de uma doutrina religiosa. Para Croatto (2009), dogma é o que se pensa, acredita, aparece como verdadeiro.