09 Novembro 2016
"Ser teólogo e fazer teologia é ter a coragem de dizer aquilo que outros não querem dizer, é ter a audácia de querer renovar a Igreja quando muitos não querem fazê-lo, é ter firmeza de afirmar que o Deus cristão está ao lado de todos, que ama a todos e quer o Reino com todos; ser teólogo e fazer teologia é inquietar-se com o mundo e não acomodar-se com aquilo que é dado e apresentado; ser teólogo e fazer teologia é seguir a Cristo e o seu Reino, é aventurar-se num mundo de possibilidades, numa aventura sempre nova, sempre cheia e que transborda e plenifica o nosso ser", escreve Cesar Kuzma, teólogo leigo, casado e pai de dois filhos, doutor em Teologia pela PUC-Rio, professor de Teologia da PUC-Rio, assessor de comunidades e pastorais e atual presidente da Sociedade de Teologia e Ciência da Religião - SOTER.
Eis o artigo.
Cesar Kuzma | Foto: Arquivo Pessoal
A tarefa de “fazer teologia” possui em si mesma muitas razões e muitos significados. Na busca e no empreendimento deste labor ainda encontramos aqueles que buscam este estudo apenas como uma obrigação para exercer o seu ministério eclesial; há também aqueles que fazem porque se encantaram com o mistério, com o sagrado e buscam na teologia respostas para as suas buscas, para este encontro; há outros que esperam da teologia um reconhecimento, uma diplomação, uma legalização; há outros que buscam a teologia por uma questão pessoal, por satisfação ou até mesmo por curiosidade, e nesta questão pessoal querem ter consolidadas as suas buscas da fé; ainda há outros e outros, outras e outras… Temos que contar ainda com os diversos caminhos de espiritualidade que se fazem hoje em dia, como também o campo social e político, o meio acadêmico, pastoral e popular…
É certo que, fazer teologia possui muitas razões e muitos significados… Podemos dizer que muitos são os motivos para esta busca teológica, mas afirmamos aqui que para quem decide pela teologia, de forma consciente e crítica, faz antes por uma experiência mística e pessoal, faz a partir de um encontro com Deus, ao qual se responde na fé, projeta-se na esperança e vive-se intensamente no amor. É daí que brota o discurso, que de forma racional se apresenta de forma livre e disposta para o encontro com outro e com todos aqueles que nos cercam e que compartilham conosco os tramas e os dramas da existência; na imanência-transcendência e na transcendência-imanência. A teologia surge como um serviço que nos leva a compromissos históricos concretos, mas também à ousadia de falar sobre o Transcendente. Falo aqui, certamente, de uma concepção cristã da teologia, entendendo que esta não é a única expressão que se pode ter (e nem deve ser!), mas que é de onde parte a minha reflexão, o meu horizonte reflexivo.
Fazer teologia em tempos de crise [!...] exige uma decisão! As crises são muitas: humanas, sociais, políticas, religiosas, muitas vezes, dentro das nossas próprias instituições. Quem decide por fazer teologia responde a Deus e ao mundo numa fé encarnada e passa a caminhar na direção do Reino prometido. Anseia pelo Reino, espera a sua vinda e inquieta-se na sua espera. Aquele ou aquela que decide por fazer teologia vive intensamente o advento de Deus e fala e escreve nesta intenção, pois apreende na fé a certeza do que foi revelado e trazido por Deus, de maneira concreta na pessoa de Jesus de Nazaré, o Cristo, o Senhor.
Nesta caminhada, na caminhada do fazer teológico, descobre-se também que este não é um trabalho que se faz sozinho, mas em comunidade, em sintonia, de mãos dadas, em comunhão e, principalmente, na luz do Espírito Santo de Deus.
Se, por ventura, pensássemos em buscar a teologia apenas para cumprir uma exigência da formação religiosa, ou para buscas pessoais, ou para obter um diploma, ou coisa assim, por certo que chegaríamos ao final de nosso percurso de maneira frustrada e incompleta, pois não é esta a função da teologia. A teologia é mais do que isso, a teologia tem uma alma própria, uma força capaz de dizer algo a si mesma, à instituição que a mantém e ao mundo que espera dela uma resposta coesa, firme, concreta e, por vezes, objetiva, uma resposta que seja autêntica e que tenha coerência com o mundo onde ela se encontra; que faça eco, que invada o nosso ser e diga aquilo que somente por meio dela podemos e “ousamos” dizer. Isto é fazer teologia! Falamos aqui de uma teologia que tenha a coragem de ser profética!
Passou-se o tempo de se ter uma teologia apenas como mera repetição de fórmulas e doutrinas, escritas em épocas passadas, apenas de base europeia e ocidental, que ainda são importantes pela riqueza de conteúdo e são repetidas e fomentadas hoje em dia na academia e no meio eclesial/pastoral, mas que se não forem atualizadas na sua mensagem, salvaguardando a essência, por certo que não causarão tanto impacto na vida cotidiana, caso fiquem presas apenas em si mesmas. Passou-se o tempo em que fazer teologia era trancar-se em um gabinete e discursar e escrever para si mesmo, sem olhar o mundo que gira a nossa volta, sem ouvir os choros e lamentos do dia a dia. A teologia que se faz hoje, como já nos advertiu o Concílio Vaticano II, quando falou da Igreja na Constituição Pastoral Gaudium et spes, deve ouvir o choro e o lamento do mundo, deve estar atenta aos sinais dos tempos (cf. GS 4), pois todas as angústias, tristezas, alegrias e esperanças do mundo são também angústias, tristezas, alegrias e esperanças da Igreja, o que o mundo sente, a Igreja sente (cf. GS 1); o que o mundo e a Igreja sentem a teologia deve sentir e fazer pulsar, deve transformar em discurso, de forma eloquente, firme, espirituosa, mais ao mesmo tempo profética e libertadora para com aquilo que se espera na fé e que se vive na esperança.
Só assim a construção teológica terá a sua eficácia e relevância e fará um autêntico discurso sobre Deus, para Deus e em favor de Deus, como o próprio nome sugere (Theo-logia). Se discursarmos sobre Deus, em favor de Deus e para Deus, no nosso caso específico (Teologia Cristã), é ao Deus cristão que devemos nos referir; um Deus que, conforme nos assegura o hino de Filipenses (cf. Fl 2,6-11), por amor despoja-se de si mesmo e que por amor nos atinge, toca-nos na graça e nos provoca na esperança da fé a seguir na sua direção. Este seguir e todo este viver só encontrarão em Deus o seu destino e a sua força, a sua razão e a sua ousadia, o seu ponto certo, o seu encontro e o seu éschaton. A teologia que se faz hoje em dia deve levar em conta as promessas e a vinda de Deus, mas, sobretudo, o caminhar que é feito e realizado pelo “povo” que acolhe esta experiência na fé, que vive na esperança e que se transfigura profeticamente na certeza do que virá, na confiança, no despertar, no agir e no amor. Assim, a teologia torna-se relevante e é assim que ela deve agir. Caso contrário, destina-se ao fracasso e ao anonimato, vai para a escuridão e não para a luz, que é o seu destino.
A teologia possui vários caminhos e se articula de várias formas. Saber percorrer este caminho com eficácia, com simplicidade e humildade, e saber articular as mediações que tecem o seu labor são habilidades do teólogo, daquele que pela fé decide por percorrer este caminho… Daquele que sente que tem algo a dizer e empresta a sua voz à fé que professa, diz algo a partir de dentro, transfigura-se, projeta-se na perspectiva de um Reino e age em favor deste: um Reino que irrompeu com Cristo e que ainda hoje se espera a sua realização no amor, na justiça e na paz. Um Reino que parte do homem de Nazaré, do Cristo-Senhor, e se destina ao futuro de Deus, aonde tudo será transformado e transfigurado no amor, onde tudo passará, mas o amor, que vem com este Deus e que é este Deus, estará presente, eternamente; quando a vida será sempre vida e o choro e o lamento não existirão mais… Sim, esta será a casa de Deus com a humanidade e com toda a criação (cf. Ap 21). Ele será o nosso Deus, e nós seremos os seus filhos. A certeza da fé e a inquietude da espera farão parte da luta do teólogo, uma luta que ele deverá travar com sua experiência de Deus, pois o fazer teológico se faz com aquilo que se acredita, com aquilo que dá sentido e razão no existir; o fazer teológico se faz na entrega e, principalmente, no serviço.
Discursar sobre Deus, teologicamente, é falar da realização última do ser humano com Deus, do encontro escatológico, da plenificação humana e da concreta ação de Deus que vem em nosso favor.
Fazer uma autêntica teologia exige do teólogo ousadia e eficácia, amor e sensibilidade, para trazer ao plano humano e diante de todas as suas questões (muitas delas merecedoras de extrema atenção!) aquilo que se projeta para o último do ser humano e do mundo. Fazer teologia é encarnar-se na história, com o mesmo sentimento de Cristo (cf. Fl 2,5), que é o que vai torná-la coerente.
Para articular este labor teológico, o teólogo e a teóloga devem saber nutrir todo o conhecimento acadêmico e todo o discurso atual com a vivência da fé e com a prática pastoral. Qualquer discurso ou ação teológica que não leve em conta a fé e que não leve em conta a vida comunitária e a ação pastoral (fé e prática) perde-se em seu conteúdo. A vivência pastoral – aqui entendida também como compromisso social – é um ponto de suma importância para o discurso teológico e aquele que percorre este caminho deve saber fazê-lo, deve estar envolvido, comprometido com esta causa, pois se a teologia que se quer fazer é uma teologia cristã, não existirá um cristão que se faça cristão sozinho, o cristão existe e só se faz junto com a comunidade onde vive e se alimenta na fé. Ali ele experimenta o afago e o carinho dos irmãos e faz a comunhão com Deus; um Deus que se faz presente em meio ao povo que canta e que chora, que ri e que vive, que vive na graça e na des-graça, que reparte o pão, que celebra e afirma que todos são iguais, e onde todos agem de acordo com o dom e carisma do Espírito; o mesmo Espírito que guiou a Cristo e que hoje conduz a comunidade, que é a Igreja, que sopra e a leva ao horizonte do Reino, ao horizonte da justiça, do amor e da paz. Cabe ao teólogo, aquele que faz teologia, discernir o caminho do Espírito, deixando-se guiar por ele.
Ainda neste articular, o teólogo e a teóloga devem estar inseridos no mundo de maneira ativa. Não se faz teologia e não se concebe uma Igreja que fuja do mundo, que vire as costas à realidade. Ao contrário, faz-se teologia para atuar no mundo, para transformá-lo, para revigorá-lo na força de um Deus que nos comove e que nos atrai. É no contato com o mundo, principalmente com o mundo que sofre, que o teólogo e a teóloga terão a experiência de Deus. É quando o amor que é filia transformar-se-á em ágape, é quando o Espírito nutrirá e nos encherá de vida, é quando sentiremos o calor da vida cristã que é capaz de transformar e a força da ressurreição nos acalentará e nos fará renascer. Ser teólogo ali, ser teólogo diante das estreitezas e dificuldades da vida é entender que Deus não quer o sofrimento, que ele não quer a morte, que ele não quer a lágrima, mas que ele quer a vida, e vida plena. Ser teólogo diante das mais sensíveis questões humanas é saber expressar que Deus não quer o sofrimento, mas está ao lado de quem sofre; que Deus não quer a morte, mas está junto de quem morre;… Assim ele liberta, assim ele salva, assim ele é Deus. Ser teólogo no mundo de hoje, num mundo que ri e que chora é ter coerência de discurso e autenticidade e prudência na resposta. Trazendo aqui uma expressão de Clodovis Boff, o teólogo deve-se perguntar: “como dizer ao pobre, aos que sofrem, que Deus o ama?”. Pensar esta resposta, em todas as suas possibilidades, mas também não apenas respondê-la, mas agir em prol da resposta, é uma questão que inquieta a teologia, e que a torna séria, compromissada, coerente e autêntica com aquele para o qual ela dirige o seu discurso, o Deus cristão.
Todo e qualquer discurso teológico, acadêmico ou pastoral, que não leve em conta a realidade das pessoas que mais sofrem, sobretudo, os mais pobres e necessitados, não encontra sintonia e relevância no homem de Nazaré, no Cristo e no seu Reino. Questiona-se se será teologia, talvez apenas um discurso sobre religião, nada mais. Pois se o discurso da teologia é sobre Deus, em favor de Deus e para Deus, é na natureza deste Deus que devemos conduzir o nosso discurso. E se a Igreja e a teologia fazem uma opção preferencial pelos pobres, por aqueles que mais sofrem, devemos sempre nos lembrar de que esta é uma opção de fé, é uma opção cristológica, pois Jesus, o Cristo, assim o fez.
Por fim, gostaria de dizer que ser teólogo e fazer teologia é ter a coragem de dizer aquilo que outros não querem dizer, é ter a audácia de querer renovar a Igreja quando muitos não querem fazê-lo, é ter firmeza de afirmar que o Deus cristão está ao lado de todos, que ama a todos e quer o Reino com todos; ser teólogo e fazer teologia é inquietar-se com o mundo e não acomodar-se com aquilo que é dado e apresentado; ser teólogo e fazer teologia é seguir a Cristo e o seu Reino, é aventurar-se num mundo de possibilidades, numa aventura sempre nova, sempre cheia e que transborda e plenifica o nosso ser. Ser teólogo e fazer teologia é continuar agindo, na esperança, firme na fé, mesmo que o mundo e a instituição te mandem calar; é levantar quando outros te fazem cair; é acordar quando o mundo te faz esquecer; é sentir a vida e o pulsar da Boa Nova que vem com Cristo e quer atingir a todos. Ser teólogo e fazer teologia é emprestar a sua voz como serviço, como ministério, como proposta do Reino que vem e inaugura um novo tempo, um novo ser.
Fazer teologia em tempos de crise é se deixar guiar pela força do Espírito que nos unge para evangelizar os pobres, para libertar os presos, para curar os doentes e para proclamar o tempo da graça do Senhor (cf. Lc 4,18-19). É ouvir o chamado do Senhor que nos convida para trabalhar na sua vinha.
Cabe ao teólogo e a teóloga ver o mundo com os olhos da fé, questionar-se com Deus e sentir o mundo que sofre, que clama e que espera. É ver o mundo e perceber que este mundo tem sede de Deus, que este mundo tem fome, de Deus e de pão. Ao fazer isso, basta acolher a proposta de Jesus que diz: “Dai-lhes vós mesmos de comer”! (Mt 14,16).
Fazer teologia em tempos de crise é ter esperança! Sempre!
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