Por: André | 08 Setembro 2015
Na vídeo-mensagem de Francisco ao Congresso Internacional de Teologia de Buenos Aires, diz: “A oposição entre doutrina e pastoral é falsa. Os grandes padres da Igreja foram grandes teólogos porque foram grandes pastores”. A doutrina “não é um sistema fechado, privado de dinâmicas capazes de provocar interrogações, dúvidas e questionamentos”.
A vídeo-mensagem é publicada por Vatican Insider, 04-09-2015. A tradução é de André Langer.
Eis a íntegra do texto.
Alegro-me por poder comunicar-me com vocês neste evento tão importante para a nossa Igreja na Argentina. Obrigado por me darem esta oportunidade de me unir nesta ação de graças pela celebração dos 100 anos da Faculdade de Teologia da UCA, vinculando-os com os 50 anos do Concílio Vaticano II.
Vocês estiveram reunidos durante três dias fazendo desta festa uma oportunidade para fazer a memória, para recuperar a memória da passagem de Deus por nossa vida eclesial e fazer desta passagem um motivo de agradecimento. A memória nos permite recordar de onde viemos e, desta maneira, nos unimos a tantos que foram tecendo esta história, esta vida eclesial em suas vicissitudes e que, certamente, não foram poucas. Memória que nos leva a descobrir, em meio à caminhada, que o Povo de Deus não esteve sozinho.
Este povo a caminho sempre contou com o Espírito que o guiava, apoiava, impulsionava de dentro e de fora. Esta memória agradecida que hoje se torna reflexão, anima o nosso coração. Reacende a nossa esperança para suscitar hoje a pergunta, que nossos pais se fizeram ontem: Igreja, o que diz de si mesma?
Não celebramos e refletimos dois acontecimentos menores, mas estamos diante de dois momentos de forte consciência eclesial. Cem anos da Faculdade de Teologia é celebrar o processo de amadurecimento de uma Igreja particular. É celebrar a vida, a história, a fé do Povo de Deus que caminha nessa terra e que procurou “entender-se” e “decidir-se” a partir das próprias coordenadas. É celebrar o centenário de uma fé que tenta refletir de cara com as peculiaridades do Povo de Deus que vive, crê, espera e ama em terra argentina. Uma fé que busca enraizar-se, encarnar-se, representar-se, interpretar-se de cara com a vida de seu povo e não à margem dele.
Parece-me de grande importância e lúcida acentuação unir este acontecimento com os 50 anos do encerramento do Vaticano II. Não existe uma Igreja particular isolada, que possa dizer-se sozinha, como pretendendo ser dona e única intérprete da realidade e da ação do Espírito. Não existe uma comunidade que tenha o monopólio da interpretação ou da inculturação. Como, pelo contrário, não existe uma Igreja universal que dê as costas, ignore, se desinteresse pela realidade local. A catolicidade exige, pede, essa polaridade tensional entre o particular e o universal, entre o uno e o múltiplo, entre o simples e o complexo. Aniquilar esta tensão vai contra a vida do Espírito. Toda tentativa, toda busca de reduzir a comunicação, de romper a relação entre a tradição recebida e a realidade concreta, coloca em risco a fé do Povo de Deus.
Considerar insignificante uma das duas instâncias é meter-se num labirinto que não será portador de vida para a nossa gente. Romper esta comunicação nos levará facilmente a fazer do nosso olhar, da nossa teologia uma ideologia. Por isso, alegro-me pelo fato de que a celebração do centenário da Faculdade de Teologia coincida com a celebração dos 50 anos do Concílio. O local e o universal encontram-se para se alimentar, para se estimular no caráter profético do qual toda Faculdade de Teologia é portador. Recordemos as palavras do Papa João a um mês do começo do Concílio:
“Pela primeira vez na história os padres do Concílio pertencerão, na realidade, a todos os povos e nações, e cada um deles trará a contribuição de sua inteligência e de sua experiência para curar e sanar as cicatrizes dos dois grandes conflitos que mudaram profundamente a fé de todas as nações” (João XXIII. Discorsi-Messaggi-Colloqui do Santo Padre João XXIII, AAS 54 (1962) 520-528).
E em seguida destaca que uma das principais contribuições dos países em desenvolvimento neste contexto universal é a visão de Igreja que eles trazem; e continua dessa maneira: “a Igreja se apresenta como é e como quer ser, como Igreja de todos, em particular como a Igreja dos pobres”.
Há uma imagem proposta por Bento XVI de que eu gosto muito. Referindo-se à Tradição da Igreja afirma que “não é uma transmissão de coisas ou de palavras, uma coleção de coisas mortas (mas) é o rio vivo que remonta às origens, o rio no qual as origens estão sempre presentes” (Bento XVI, Audiência Geral 26-06-2006). Este rio vai regando diversas terras, vai alimentando diversas geografias, fazendo germinar o melhor dessa terra, o melhor dessa cultura. Desta maneira, o Evangelho continua se encarnando em todas as partes do mundo de maneira sempre nova (cf. EG 115).
E isto nos leva a refletir sobre o fato de que não se é cristão da mesma maneira na Argentina de hoje do que na Argentina de 100 anos atrás. Não se é cristão da mesma maneira na Índia, no Canadá, do que em Roma. Por isso, uma das principais tarefas do teólogo é discernir, refletir: o que significa ser cristão hoje, “no aqui e agora”? Como esse rio das origens consegue regar hoje estas terras e torná-las visível e habitável? Como fazer viva a justa expressão de São Vicente de Lérins – “ut annis consolidétur, dilatetur tempore, sublimétur aetate?” (São Vicente de Lérins. Commonitório primo, cap. XXIII)
Nesta Argentina, de cara com os múltiplos desafios e situações que a multiplicidade existente nos apresenta, a interculturalidade e os efeitos de uma globalização uniformizante que relativiza a dignidade das pessoas transformando-as em um bem de troca. Nesta Argentina nos é pedido para repensar como o cristianismo se faz carne; como o rio vivo do Evangelho continua a estar presente para saciar a sede do nosso povo.
E para encarar este desafio, devemos superar duas possíveis tentações: condenar tudo, confirmando a frase já conhecida “o passado é sempre melhor” e refugiando-nos em conservadorismos ou fundamentalismos; ou, ao contrário, consagrar tudo, negando autoridade a tudo o que não tiver “gosto de novidade”, relativizando toda a sabedoria acumulada pelo rico patrimônio eclesial.
Para superar estas tentações, o caminho é a reflexão, o discernimento, levar muito a sério a Tradição Eclesial e muito a sério a realidade, fazê-las dialogar.
Neste contexto, penso que o estudo da teologia adquire um valor de suma importância. Um serviço insubstituível na vida eclesial.
Não são poucas as vezes em que se produz uma oposição entre teologia e pastoral, como se fossem duas realidades opostas, separadas, que nada tem a ver uma com a outra. Não são poucas as vezes em que identificamos o doutrinal com conservador, retrógrado; e, pelo contrário, pensamos a pastoral a partir da adaptação, da redução e da acomodação. Como se nada tivessem a ver entre si. Cria-se deste modo uma falsa oposição entre os assim chamados “pastoralistas” e os “academicistas”, entre aqueles que estão do lado do povo e aqueles que estão do lado da doutrina. Produz-se uma falsa oposição entre a teologia e a pastoral; entre a reflexão cristã e a vida cristã; a vida, então, não tem espaço para a reflexão e a reflexão não encontra espaço na vida. Os grandes padres da Igreja – Irineu, Agostinho, Basílio, Ambrósio, apenas para citar alguns – foram grandes teólogos porque eram grandes pastores.
Uma das principais contribuições do Concílio Vaticano II foi justamente tentar superar este divórcio entre teologia e pastoral, entre fé e vida. Animo-me a dizer que revolucionou em certa medida o estatuto da teologia, a modo de fazer e de pensar cristão.
Não posso esquecer as palavras de João XXIII no discurso de abertura do Concílio, quando dizia: “Uma coisa é a substância da antiga doutrina, do ‘depositum fidei’, e outra é a maneira de formular sua expressão”.
Devemos enfrentar o trabalho, o árduo trabalho de distinguir a mensagem de Vida da sua forma de transmissão, de seus elementos culturais nos quais em um determinado tempo foi decodificada. Uma teologia “responde às interrogações de um tempo e nunca o faz de outra maneira senão nos próprios termos, uma vez que são os termos vividos e falados pelos homens de uma sociedade” (Michel de Certeau. La debilidad del creer, 51).
Não fazer este exercício de discernimento leva inevitavelmente a trair o conteúdo da mensagem. Faz com que a Boa Nova deixe de ser nova e especialmente boa, tornando-se uma palavra estéril, vazia de toda sua força criadora, curadora, ressuscitadora, colocando assim em perigo a fé das pessoas de nosso tempo. A falta deste exercício teológico eclesial é uma mutilação da missão que estamos convidados a realizar.
A doutrina não é um sistema fechado, privado de dinâmicas capazes de gerar interrogações, dúvidas e questionamentos. Pelo contrário, a doutrina cristã tem rosto, tem corpo, tem carne: chama-se Jesus Cristo e é sua Vida que é oferecida de geração em geração a todos os homens e em todas as partes do mundo. Guardar a doutrina exige fidelidade ao que foi recebido e – ao mesmo tempo – levar em conta o interlocutor, seu destinatário, conhecê-lo e amá-lo.
Este encontro entre doutrina e pastoral não é opcional; é constitutivo de uma teologia que queira ser eclesial.
As perguntas do nosso povo, suas angústias, suas batalhas, seus sonhos, suas lutas, suas preocupações, possuem valor hermenêutico que não podemos ignorar se queremos levar a sério o princípio da Encarnação. Suas perguntas nos ajudam a nos perguntar, seus questionamentos a nos questionar. Tudo isto nos ajuda a aprofundar o mistério da Palavra de Deus, Palavra que exige e pede que se dialogue, que se entre em comunicação. Por isso, não podemos ignorar a nossa gente na hora de fazer teologia. O nosso Deus escolheu este caminho. Ele se encarnou neste mundo, atravessado por conflitos, injustiças, violências; atravessado por esperanças e sonhos. Por essa razão, não nos resta outro lugar para buscá-lo senão neste mundo concreto, nesta Argentina concreta, em suas ruas, em seus bairros, em sua gente. Ali Ele já está salvando.
Nossas formulações de fé nasceram do diálogo, do encontro, da confrontação, do contato com as diversas culturas, comunidades, nações, situações que pediam uma maior reflexão perante o que não foi explicitado antes. Por isso, os acontecimentos pastorais têm um valor relevante. E nossas formulações de fé são a expressão de uma vida vivida e refletida eclesialmente.
Em um cristão, algo se torna suspeitoso quando deixa de admitir a necessidade de ser criticado por outros interlocutores. As pessoas e seus diversos conflitos, as periferias, não são opcionais, mas necessárias para uma maior compreensão da fé. Por isso, é importante perguntar: em quem estamos pensando quando fazemos teologia? Que pessoas temos diante de nós? Sem esse encontro com a família, com o Povo de Deus, a teologia corre o grande risco de tornar-se ideologia. Não nos esqueçamos, o Espírito Santo no povo orante é o sujeito da teologia. Uma teologia que não nasce em seu interior, tem o aspecto de uma proposta que pode ser bonita, mas não é real.
Isto nos revela o quão desafiante é a vocação do teólogo, quão estimulante é o estudo da teologia e a grande responsabilidade que se tem ao fazê-lo. A esse respeito me permito explicitar três características da identidade do teólogo:
1. O teólogo é, em primeiro lugar, um filho do seu povo. Não pode e não quer ignorá-lo. Conhece sua gente, sua língua, suas raízes, suas histórias, sua tradição. É o homem que aprende a valorizar o que recebeu, como sinal da presença de Deus, já que sabe que a fé não lhe pertence. Recebeu-a gratuitamente da Tradição da Igreja, graças ao testemunho, à catequese e à generosidade de tantas pessoas. Isto o leva a reconhecer que o Povo cristão no qual nasceu, tem um sentido teológico que não pode ignorar. Sabe-se “enxertado” em uma consciência eclesial e imerso nessas águas.
2. O teólogo é um homem de fé. O teólogo é alguém que fez a experiência de Jesus Cristo, e descobriu que sem Ele já não pode viver. Sabe que Deus se torna presente, como palavra, como silêncio, como ferida, como cura, como morte e como ressurreição. O teólogo é aquele que sabe que sua vida está marcada por essa marca que deixou aberta sua sede, sua ansiedade, sua curiosidade, seu viver. O teólogo é aquele que sabe que não pode viver sem o objeto/sujeito de seu amor e consagra sua vida para poder compartilhá-lo com seus irmãos. Não é um teólogo quem não pode dizer: “eu não posso viver sem Cristo” e, portanto, quem não quer tentar desenvolver em si mesmo os mesmos sentimentos do Filho.
3. O teólogo é um profeta. Um dos grandes desafios colocados no mundo contemporâneo não é apenas a facilidade com que se pode prescindir de Deus. Mas, socialmentes se deu um passo a mais. A crise atual centra-se na incapacidade que as pessoas têm para crer em qualquer coisa além de si mesmas. A consciência individual tornou-se a medida de todas as coisas. Isso provoca uma fenda nas identidades pessoais e sociais. Esta nova realidade provoca todo um processo de alienação devido à carência de passado e, portanto, de futuro. Por isso, o teólogo é o profeta, porque mantém viva a consciência do passado e o convite que vem do futuro. É o homem capaz de denunciar toda forma alienante porque intui e reflete no rio da Tradição que recebeu da Igreja, a esperança a que somos chamados. E desde esta perspectiva, convida a despertar a consciência adormecida. Não é o homem que se conforma, que se acostuma. Pelo contrário, é o homem atento a tudo aquilo que pode prejudicar e destruir os seus.
Portanto, há uma única forma de fazer teologia: de joelhos. Não é apenas um ato piedoso de oração para depois pensar a teologia. Trata-se de uma realidade dinâmica entre pensamento e oração. Uma teologia de joelhos é ousar pensar rezando e rezar pensando. Comporta um jogo entre o passado e o presente, entre o presente e o futuro. Entre o já e o ainda não. É uma reciprocidade entre a Páscoa e tantas vidas não realizadas que se perguntam: onde está Deus?
É santidade de pensamento e lucidez orante. É, acima de tudo, a humildade que nos permite colocar o nosso coração, a nossa mente em sintonia com o “Deus semper maior”.
Não tenhamos medo de ficar de joelhos no altar da reflexão e fazê-lo com “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e dos que sofrem” (GS 1) diante do olhar d’Aquele que faz novas todas as coisas (Ap 21, 5).
Então nos inserimos cada vez mais nesse povo cristão que profetiza, povo cristão que anuncia a beleza do Evangelho, povo cristão que “não maldiz, mas que é acolhedor e sabe realizar a vida abençoando-a. Assim busca uma correspondência criadora com os problemas do nosso tempo” (O. Clement. Un ensayo de lectura ortodoxa de la Constitución, 651).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Sem povo, a teologia torna-se ideologia”, diz o Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU