18 Janeiro 2016
Entre os dias 6 e 8 de dezembro de 2015, foi realizado em Munique (Alemanha) o congresso internacional "Inaugurar o Concílio. Teologia e Igreja sob o sinal exigente do Concílio Vaticano II". Os trabalhos- que reuniram cerca de 200 teólogos e teólogas – foram abertos por duas intervenções de orientação fundamental (Ch. M. Theobald e M. Faggioli), articulando-se, depois, em uma série de grupos de trabalho sobre os documentos e pontos-chave do Concílio.
Ao debate da assembleia, seguiu-se a redação de uma Declaração Comum final do congresso, que foi traduzida e publicada no último número de 2015 da revista Il Regno – Documenti. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Por ocasião do 50º aniversário da solene conclusão do Concílio Vaticano II, cerca de 200 teólogas e teólogos se reuniram em Munique (06 a 08-12-2015) para um congresso internacional.
Quis-se continuar a pensar e a refletir sobre os impulsos do Concílio na perspectiva daquelas que são as tarefas da teologia de língua alemã no século XXI. A teologia se sente interpelada a interpretar os sinais dos tempos. Ao fazer isso, segue o rastro do modo de trabalhar do Concílio, que foi sugerido por João XXIII: testemunhar o evangelho em forma pastoral, acolhendo aquelas que são as alegrias e as preocupações dos homens e das mulheres de hoje. Portanto, teologia como serviço ao homem e à mulher e ao mundo de hoje (aggiornamento).
1. Liberdade e fé
Com o reconhecimento da liberdade religiosa como direito humano, o Vaticano II assume pela primeira vez de modo positiva a exigência de liberdade da modernidade. Porém, enquanto liberdade de consciência e de opinião, assim como os direitos de uma participação ativa dos fiéis não forem plenamente reconhecidos na Igreja, não se conseguirá fazer plena justiça ao caráter da fé como ato de liberdade. Os direitos humanos, que se baseiam na sua dignidade, devem encontrar uma concreta aplicação e realização dentro da Igreja por amor à sua própria credibilidade.
A teologia se encontra diante da tarefa de formular a exigência de liberdade a partir do centro da sua compreensão da fé para a vida da Igreja e para a realidade social e política no plano global, por um lado, e de se comprometer de maneira argumentativa nos contextos concretos de vida para a sua realização, por outro. Compreender a fé como gesto de liberdade exige que a teologia, como forma científica de reflexão da fé, possa advogar para si a liberdade necessária para fazer isso.
Empenhamo-nos em assumir seriamente a relação de condição recíproca que flui entre fé e liberdade. Dadas as condições globais atuais, as confissões, as religiões e as visões de mundo, isso requer que se tente e se leve adiante com decisão amplas alianças em favor de condições liberais de vida – incluindo a liberdade religiosa e de consciência. Ao fazer isso, a teologia toma parte na responsabilidade da Igreja para o mundo.
2. Teologia como ciência
O Concílio foi preparado pelos desenvolvimentos teológicos que o precederam no século XX e, ele mesmo, se fez portador de impulsos centrais para a teologia. A teologia se compreende no sentido da tradição, ao lado do magistério dos bispos, como irrenunciável magistério científico na Igreja e como um espaço importante na dimensão pública do viver humano de um discurso orientado ao acordo e à compreensão.
Por amor a um conhecimento mais profundo da verdade, empenhamo-nos em buscar um discurso interdisciplinar com todas as ciências e um intercâmbio com as tradições sapienciais das diversas culturas e da práxis vivida da fé. Nisso, a própria teologia deve começar um intenso trabalho para esclarecer a sua autocompreensão como ciência, preocupando-se em realizar um intercâmbio e uma comunicação profunda entre as suas disciplinas individuais.
3. Teologia e magistério episcopal
O Vaticano II pôs em prática de modo exemplar a tarefa de um magistério dos bispos em sentido pastoral: ou seja, o de moderar o processo de interpretação da tradição e da experiência da fé. Nesse processo, que envolve uma autorrelativização, incluindo a coragem de rever afirmações magisteriais, a teologia desempenha um papel importante. O Congresso pede que aqueles que têm responsabilidade na Igreja deem uma ênfase particular à teologia, justamente levando em conta as atuais sociedades da informação.
Apesar de tensões recorrentes e inevitáveis na relação entre magistério teológico e episcopal, o discurso sobre a interpretação da fé deve ser conduzido de forma que os resultados possam permanecer abertos. Só assim pode ser garantida a liberdade da teologia como ciência. Nessa ótica, apoiar a teologia científica dentro das universidades estatais deve ser uma atenção especial da Igreja.
Para nós, é importante desenvolver mais esse modo de proceder, segundo o modelo do Vaticano II. Sobre isso, no futuro, será preciso prestar atenção para que o povo de Deus possa se expressar em toda a pluralidade das suas vozes.
4. Reforma das estruturas eclesiais
O Concílio chega a uma renovada autocompreensão da Igreja: tanto colocando novamente no centro a colegialidade e a imagem da Igreja como povo de Deus, quanto se empenhando com uma hermenêutica orientada pelos direitos humanos. A teologia, recuperando a compreensão dialógica da revelação inscrita na Dei Verbum, deve trabalhar pela superação das tensões que surgem entre eclesiologia hierárquica e de comunhão do Concílio Vaticano II. A sinodalidade deve voltar a ser o princípio estrutural na Igreja. Ela é, de fato, consequência de uma eclesiologia pneumática e encontra a sua expressão no discernimento dos espíritos. A sinodalidade deve encontrar uma realização também em nível de direito e deve poder ser, assim, reivindicável; além disso, deve ser exercida concretamente em todos os níveis eclesiais.
Comprometemo-nos a colaborar ativamente na edificação de uma estrutura sinodal da Igreja. A urgente e necessária reforma da Cúria Romana, na qual se está tentando trabalhar, deve conduzir a uma reforma da Igreja inteira e do ministério eclesial. Decisões importantes da Igreja, que levantam a pretensão de uma validade pública, não devem ser tomadas a portas fechadas. "O que diz respeito a todos deve ser tratado por todos", lembrou-nos o Papa Francisco no seu discurso sobre o tema da sinodalidade da Igreja proferido no dia 17 de outubro de 2015.
5. Ecumenismo dentro do cristianismo
O Concílio tornou possíveis desenvolvimentos surpreendentes em nível ecumênico. Em retrospectiva, porém, podem se captadas tendências divergentes. A Igreja Católica se abriu ao movimento ecumênico e começou a dialogar com outras Igrejas depois de abandonar a forma exclusivista da sua autocompreensão. A Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação representa o auge desse desenvolvimento. Para muitos fiéis, o estar-juntos ecumênico se tornou uma normalidade. Impôs-se a consciência de que não é da unidade que se deve dar razão, mas da manutenção da divisão. No entanto, há afirmações em nível de liderança da Igreja que parecem implicar um retorno a um compreensão superada da própria Igreja. Muitos católicos e católicas não sofrem mais por causa de uma situação de separação, mas a veem como algo dado – as diferenças confessionais, aliás, já não desempenham um papel tão importante.
Sentimos como importante nos comprometermos para apoiar e levar adiante uma reflexão metodológica no diálogo ecumênico e uma pastoral ecumênica. Dentre outros, são temas importantes: os critérios para a comunhão eclesial e os seus limites; expressões de abertura ecumênica em outros âmbitos da atuação da Igreja, como a liturgia ou o direito canônico; o desenvolvimento de modelos de unidade que não se encontram nos documentos conciliares.
6. Igreja e Israel
O Concílio formula afirmações fundamentais sobre a relação entre Igreja e Israel que abrem novos horizontes. Orientações e resultados do diálogo judaico-cristão até hoje são aprovados e reconhecidos completamente pelo Congresso. Diante da história da culpa na Igreja e na teologia, trata-se de uma obrigação e dever permanentes.
Comprometemo-nos a receber em profundidade e a observar esse dever em todas as disciplinas teológicas. Será nosso cuidado, no que diz respeito à tradução e à interpretação de textos bíblicos e litúrgicos, levar em consideração o contexto judeu e evitar todas as formas de antijudaísmo. Na sociedade, a teologia se faz presente como uma voz contra todas as formas de antissemitismo e de hostilidade contra os estrangeiros. No indispensável diálogo entre cristianismo e Islã, a teologia se encarrega de manter a relação entre judeus e cristãos como base fundamental do diálogo cristão-muçulmano.
7. Pretensão de revelação e pluralidade das religiões
O Concílio ensina uma compreensão teológica da revelação como autocomunicação de Deus. Quanto aos textos decisivos a respeito, no entanto, falta até hoje um profundo esclarecimento das implicações filosóficas que possam assegurar a capacidade de uma interlocução interna com os discursos seculares. Além disso, uma leitura adequada desses textos requer uma atenta consideração das recepções internacionais que são caracterizadas por uma elevada taxa de diferenciação.
Para nós, é importante trabalhar em uma pesquisa e estudo das diferenças inter-religiosas em torno do conceito de revelação e aprofundar a compreensão do conceito de religião e de tradição. Isso levará a uma decisiva reconfiguração da dogmática e da teologia fundamental. A relação entre revelação e religiões deve ser ampliado para a dimensão da humanidade do homem e da mulher, com o seu centro na questão do sujeito religioso.
8. Diálogo inter-religioso e missão
O Concílio reconhece as religiões não cristãs e apoia o diálogo inter-religioso. Ainda não foi identificado até o fim, pela teologia ao longo do pós-Concílio, como esse diálogo pode ter sucesso entre pares. Nisso, o Congresso vê uma importante tarefa teológica para o futuro. Também se expressa contra toda forma de fundamentalismo e de autoisolamento religioso.
Comprometemo-nos a praticar e a apoiar uma abordagem discursiva e sem preconceitos em relação às outras religiões. Embora reconheçamos aquilo que as missionárias e missionários contribuíram no anúncio, bem como em nível social e formativo, devemos elaborar coerentemente a história da culpa que se produziu nos séculos passados através da missão e da colonização. A missão é parte da Igreja: ela é comunicação recíproca do Evangelho e se expressa na diaconia, na opção pelos pobres e no diálogo com as culturas e as religiões.
9. Liturgia e inculturação
O Concílio pôs em marcha uma reforma abrangente da liturgia. O Congresso reconhece o mérito dessa reforma para a vida da fé e a participação dos fiéis. Ele se expressa favoravelmente à sua continuação, com uma participação mais acentuada das Igrejas locais. Uma liturgia vital requer uma contínua reflexão através de uma teologia inculturada, que deve ser desenvolvida em diálogo com as ciências sociais e culturais. O Congresso reconhece tanto a unidade da Igreja Católica quanto a pluralidade de ritos como uma oportunidade para uma fé dinâmica.
Para nós, é importante continuar na pesquisa e no estudo do rico patrimônio das liturgias da história da fé e das Igrejas locais de todos os continentes. Hoje, sentimo-nos interpelados, de forma particular, pelas mutáveis realidades de vida de culturas religiosamente marcadas, pelo desaparecimento do vínculo confessional e pelo ateísmo.
10. Fé e formação
O Concílio vê na formação teológica dos fiéis uma tarefa central para a Igreja. Isso vale do mesmo modo para os leigos e para os padres. Para o Congresso, a formação religiosa deve fazer parte de um cânone formativo iluminado dentro da sociedade secular. Levando-se em conta as condições constitucionais de base, deve ser concedido a todas as comunidades religiosas o fato de levar adiante um trabalho formativo que promova a autonomia do sujeito e influencie positivamente o processo de integração dentro de uma sociedade pluralista.
Consideramos ser nossa tarefa destacar a irrenunciabilidade aos recursos religiosos de sentido para o discurso sociocivil e apoiar uma formação religiosa que esteja a serviço da resposta para a questão do sentido em uma sociedade livre – sem, com isso, querer capturar ou forçar as pessoas.
11. Igreja e espaço público midiático
Com o Concílio, a Igreja entrou em diálogo, de modo novo, com o espaço público secular. A urgência desse diálogo aumentou dramaticamente. A explosão de uma sociedade da informação e da comunicação digital, baseada na técnica, não podia ser ainda imaginado pelos Padres conciliares há 50 anos. A Igreja e a teologia se abrem a essa mudança técnica e social tentando participar de maneira produtiva e crítica à sua configuração. Por isso, tentam desenvolver formas específicas de comunicação midiática para a transmissão da fé.
Consideramos importante explorar teologicamente de maneira mais adequada a dinâmica própria dessa realidade midiática, torná-la pastoralmente frutuosa, intensificar o diálogo com o espaço público secular e dar forma, de modo mais ativo do que até agora, tanto aos processos de formação da opinião dentro da Igreja e em nível teológico, quanto à edificação da formação das posições da fé.
12. Criação e ecologia
O Concílio saúda favoravelmente a ampliação do domínio do ser humano sobre a criação terrestre, mas afirma claramente, ao mesmo tempo, que o ser humano é parte da natureza e deve se comportar responsavelmente diante da natureza fora do homem. A crise ecológico-social, que começa a se anunciar atualmente na sua catastrófica desmedida, é um fato do qual se começou a ter consciência somente a partir do fim dos anos 1960. No Antropoceno, o homem se tornou um poder de destino para toda a biosfera. Do ponto de vista societário mundial, trata-se de reconquistar uma série de equilíbrios perdidos: entre Estado e mercado, indivíduo e sociedade, mulheres e homens, pensamento de curto e longo prazo, lentidão e aceleração.
Comprometemo-nos a colocar no centro do trabalho teológico a preservação da criação e as questões ecológicas. A teologia é chamada a entrar na fase de um debate e intercâmbio intensos com as ciências da natureza e de se distanciar de formas ideológicas de unilateralidade (tanto de um naturalismo secularista, quanto de um criacionismo fundamentalista). Nesse processo, a teologia deve reformular os conceitos fundamentais da sua doutrina da criação. Um potencial de grande interesse pode ser encontrado nas tradições sapienciais cristãs e nas teologias indígenas. A teologia pode e deve apoiar os urgentes processos de transformação necessários na direção da "sustentabilidade".
A Declaração final conjunta foi promulgada no dia 7 de dezembro de 2015. Há 50 anos, a recíproca excomunhão entre Oriente e Ocidente foi entregue ao esquecimento. Neste mesmo dia, foram promulgados os dois últimos documentos do Vaticano II: a constituição pastoral Gaudium et Spes e a declaração sobre a liberdade religiosa Dignitatis Humanae. Em memória desses eventos e em união com teólogas e teólogos de todas as partes da Igreja universal, a teologia se vê chamada ao dever da unidade das Igrejas e do diálogo das religiões, da defesa da dignidade e dos direitos de cada ser humano e da integridade de toda a criação. É nesses âmbitos que o nosso discurso sobre Deus deve dar prova de si no século XXI.
Munique, 8 de dezembro de 2015.
A Presidência do Congresso:
F.X. Bischof (Munique)
Ch. Böttigheimer (Eichstätt)
R. Dausner (Eichstätt)
P. Hünermann (Tübingen)
M. Heimbach-Steins (Münster)
B. Kranemann (Erfurt)
J. Rahner (Tübingen)
J. Schmiedl (Vallander)
J. Wohlmuth (Bonn)
* Às assinaturas da presidência, responsável pela Declaração, seguem-se as assinaturas dos participantes do Congresso que a ela aderiram (aqui omitidas).
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Por uma teologia à altura dos tempos. Uma declaração de teólogos e teólogas alemães - Instituto Humanitas Unisinos - IHU