12 Mai 2017
A psicologia cognitiva estuda o funcionamento da mente como processo e computação. Na sua confluência com o evolucionismo está gerando um dos desafios mais radicais para o fenômeno religioso.
O comentário é de Andrea Lavazza, especialista em ciências cognitivas e filósofo, pesquisador do Centro Universitário Internacional de Arezzo, Itália, em artigo publicado por Avvenire, 11-05- 2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Um diálogo Dirac-Lemaître
A relação entre fé (ou religião) e ciência é antiga e complexa, por vezes simplificada nos seus posicionamentos mais extremos: oposição irreconciliável ou sintonia na diversidade dos âmbitos. Portanto, toda contribuição que ultrapasse a superfície é bem-vinda. Uma oportunidade surgiu nestes dias durante uma conferência no Observatório do Vaticano dedicada ao padre e renomado físico Georges Lemaître (1894-1966), pai da teoria do Big Bang, a quem o famoso colega Carlo Rovelli dedicou, na terça-feira, um longo artigo no Corriere della Sera.
Rovelli, também conhecido do grande público por suas brilhantes obras de divulgação científica, lembrou de um pequeno artigo de Paul Dirac, em que o gigante da física do século XX, junto com Einstein, relata um lapidar diálogo com Lemaître.
Dirac afirma que a cosmologia é "o ramo da ciência que mais se aproxima da religião". Lemaître discorda e argumenta que é a psicologia. Rovelli conclui explicando que a ideia é "surpreendente" e "esclarecedora".
Como sempre, precisamos compreender primeiro do que estamos tratando. A psicologia mencionada pelo cientista italiano é algo mais parecido com a vertente da psicologia positiva pelo viés espiritualista, ou talvez da filosofia moral ou da antropologia filosófica. A psicologia científica é, hoje, essencialmente a psicologia cognitiva, que estuda o funcionamento da mente como processo e computação e trabalha com experimentos de laboratório. E, em sua confluência com a evolução darwiniana está gerando nas últimas décadas - certamente após a morte de Lemaître - um dos desafios mais radicais para o fenômeno religioso.
A partir do reconhecimento de que aquilo que chamamos religião tem se manifestado universalmente, com algumas características que se repetem em muitas das suas versões distantes tanto no tempo como no espaço, muitos pesquisadores têm especulado que ideias religiosas poderiam ser o resultado de predisposições inatas, surgidas no curso da evolução. Tratar-se-ia de tendências para ver agentes e intenções até mesmo no mundo inanimado e, consequentemente, ler a realidade como habitada por entidades que, voluntariamente, produzem efeitos específicos.
Observou-se, por exemplo, que as crianças tendem a atribuir propósito a objetos ("o martelo serve para pregar pregos"), a partes de seres vivos ("as pernas são usadas para andar") e a elementos naturais ("as árvores são usadas para sombra"). A partir desses mecanismos psicológicos básicos, úteis para sobreviver no ambiente em que viviam nossos antepassados (melhor ter medo de uma sombra do que terminar devorado por um animal), juntamente com as ideias igualmente inatas de almas imateriais e imortais, teriam surgidos os conceitos de divindade que substanciam muitas religiões. No contexto evolutivo, está aberto o debate sobre o caráter adaptativo da religião, ou seja, se é uma adaptação direta ou uma espécie de subproduto de outras adaptações, e se ela é, como um todo, útil ou prejudicial para os indivíduos e a sociedade.
Os processos culturais teriam mais tarde cooptado essas ideias dentro de sistemas mais complexos. Ara Norenzayan, em seu recente Big gods (“Deuses Grandes” em tradução livre), argumenta, por exemplo, que pode ter havido uma co-evolução entre as religiões que promovem a sociabilidade através da devoção a divindades oniscientes e a cooperação dentro de grandes grupos de estranhos. A crença em deuses grandes, que observam, prometem recompensas e punições, e assim incentivam o cumprimento das regras, permite que as pessoas confiem umas nas outras.
Toda a investigação desenvolve-se em um ambiente naturalista, o que geralmente supõe que os conteúdos das crenças religiosas sejam míticos (leia-se: falsos). As evidências produzidas, no entanto, parecem longe de ser conclusivas. Os problemas desta abordagem são essencialmente relacionados com a dificuldade de circunscrever o objeto de investigação – o que é a religião - e com a explicação dos muitos (se não todos) aspectos-chave do fenômeno religioso.
Trata-se, portanto, de uma linha de estudo que não pode mais ser ignorada na tentativa de uma compreensão geral do fenômeno religioso. Talvez Lemaître deixasse de ser um defensor da proximidade com uma psicologia deste tipo. A menos que a proximidade signifique que tanto a psicologia como a religião (na relação com Deus) insistem no ser humano. Mas isso é provavelmente muito pouco para grandes mentes como as desses físicos envolvidos no diálogo (e no seu comentário).
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Qual será a psicologia para a religião - Instituto Humanitas Unisinos - IHU