Agora que o corpo esfriou e a história começa a endurecer em mármore, o historiador Thiago Gama (Doutorando em História Comparada pela UFRJ) disseca o abismo que Francisco deixou no mundo. Ele não foi apenas um Papa; foi a última barricada humana contra a barbárie tecnocrática. Neste réquiem urgente, Gama revela a anatomia de um homem que governou através da própria ferida: o Pontífice que teve a audácia de recusar a patente de capelão da OTAN para morrer como o profeta solitário de uma paz impossível na Ucrânia.
Do choro que fraturou o protocolo na Praça de Espanha ao abraço que parou a segurança para resgatar um amigo do passado, este texto expõe como a fragilidade se tornou a arma política mais letal de Bergoglio. Aqui jaz a Rocha que sangrou. Você entenderá por que ele preferiu o escândalo da misericórdia à segurança do dogma, desafiando impérios e abraçando o caos com a ternura final de uma Pietà.
Prepare-se para o golpe: num século de gestores de aço, o “erro” apaixonado desse velho jesuíta foi, talvez, a única coisa que nos manteve vivos.
O artigo é de Thiago Gama, doutorando em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGHC/UFRJ).
“E Jesus Chorou”. Jo 11:35.
A frase acima é o menor versículo da Bíblia. Duas palavras no original grego, três na nossa língua. Um hiato terrível onde a divindade suspende sua onipotência para se render à dor da perda. Ali, diante do túmulo de Lázaro, a teologia sistemática colapsa diante da biologia do luto. E foi exatamente essa exegese do corpo, visceral e descontrolada, que vimos na Praça de Espanha, em Roma.
Era a Solenidade da Imaculada Conceição. O Papa Francisco (2013 – 2025), diante da coluna mariana, iniciou a oração tradicional. Tudo seguia o script litúrgico, aquela coreografia milenar que o Vaticano executava com a solenidade de um império imóvel — até que a engrenagem quebrou. Ao mencionar a Ucrânia, a voz do Pontífice não apenas embargou; ela fraturou. O silêncio que se seguiu não foi um silêncio de pausa retórica, mas um vácuo. O corpo do Papa sacudiu. Não foi uma lágrima estética, daquelas que escorrem limpas em pinturas barrocas. Foi um choro feio, convulsivo, de quem perde o ar.
Para o observador cínico — e sei que você, leitor, é bombardeado pelo cinismo midiático diariamente —, aquilo poderia parecer teatro. Mas precisamos ler Francisco com as lentes que ele mesmo forjou: as lentes de Inácio de Loyola (1491 – 1556). Nas Constituições e nos Exercícios Espirituais, as lágrimas não são sinal de fraqueza histérica; são um locus teológico. Inácio valorizava o “dom das lágrimas” como uma confirmação física de que a alma estava vibrando em consonância com a dor de Cristo ou com a consolação divina.
Quando Francisco chora em praça pública, ele está operando uma manobra política de altíssimo risco. Ele subverte a auctoritas romana, que historicamente exige a imperturbabilidade estoica do soberano. Um rei não chora; um rei decide. Mas Bergoglio, jesuíta até a medula, sabe que a indiferença é o verdadeiro pecado mortal da nossa era geopolítica. Naquele choro, ele recusou o papel de estadista asséptico. Ele se tornou, para usar uma metáfora bíblica, a Rocha que sangra.
Isso deve nos fazer pensar na Fratelli Tutti. Muitos leram essa Encíclica como um apanhado de boas intenções, um “vamos dar as mãos” global. Ledo engano. O documento é um tratado de guerra contra a fragmentação. Francisco escreve: “A política não deve submeter-se à economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista da tecnocracia”. O choro na Praça de Espanha foi a encarnação física desse texto. Foi a política com “P” maiúsculo rasgando o véu da diplomacia.
Ali, ele não era o “Capelão da OTAN”, abençoando as armas enviadas pelo Ocidente sob o pretexto da defesa da liberdade. Tampouco era o aliado silencioso de Putin. Ele era o profeta de uma terceira margem, uma margem impossível onde a única vitória aceitável não é a conquista territorial, mas a cessação do massacre. O choro dele dizia o que seus discursos diplomáticos, amarrados pela Realpolitik da Secretaria de Estado, muitas vezes não podiam dizer com todas as letras: que a guerra é sempre, inevitavelmente, uma derrota da humanidade.
Essa fragilidade exposta não é acidental. É uma ferramenta de governo. Francisco governa através de suas feridas. E é curioso notar como isso irrita certos setores da Cúria e da intelectualidade conservadora. Eles querem um Papa trovejante de dogmas, não um velho que soluça por um país bombardeado. Mas é exatamente aqui que Bergoglio captura o imaginário global. Ele entende que, na economia da atenção do século XXI, um dogma pode ser ignorado, mas uma lágrima autêntica atravessa a blindagem e, mais importante, desarma.
“No século dos gestores de aço, Francisco governou através de suas feridas: preferiu o escândalo da misericórdia à segurança fria do dogma.”
Mas não se enganem. Por trás das lágrimas, existe uma mente enxadrística que soube exatamente onde cada peça do tabuleiro estava se movendo. O mesmo homem que chorou pela “martirizada Ucrânia” é aquele que se recusou a simplificar o conflito numa narrativa de Hollywood de “mocinhos versus bandidos”. E é nessa tensão, entre o pastor que chorou e o chefe de Estado que calculou, que vamos mergulhar agora.
Aqui entramos no campo minado. Se o choro de Francisco na Praça de Espanha foi a paixão (o sofrimento), sua postura sobre a Ucrânia foi o escândalo (a pedra de tropeço).
O Ocidente, embriagado por uma narrativa maniqueísta, esperou de Francisco o que sempre esperou dos Papas desde a Guerra Fria: que ele fosse o capelão moral do Atlântico Norte. Queriam que ele subisse ao púlpito de São Pedro, apontasse o dedo para Moscou e abençoasse os mísseis Javelin como instrumentos da justiça divina. Mas Francisco recusou o roteiro.
Em uma entrevista corrosiva ao Corriere della Sera, ele soltou a frase que fez os diplomatas de Washington e Bruxelas se engasgarem com seus cafés expressos: sugeriu que a “irritação” do Kremlin poderia ter sido facilitada pelos “latidos da OTAN à porta da Rússia”.
Não foi um lapso. Foi um diagnóstico. Francisco não estava justificando a invasão — ele condenou a “brutalidade e ferocidade” das tropas russas repetidas vezes. O que ele estava fazendo era recusar a infantilização da história. Aos editores das revistas jesuítas, ele foi ainda mais longe, afirmando que o conflito poderia ter sido, de alguma forma, “provocado ou não impedido”.
Para a mídia hegemônica, isso soou como heresia. Como o Papa ousa não chamar Putin de monstro? A crítica foi feroz. Membros da Igreja Greco-Católica Ucraniana sentiram-se traídos. Mas Francisco estava operando em outra frequência, a frequência da Fratelli Tutti. Nesta encíclica, ele praticamente dinamitou os últimos vestígios da teoria da “Guerra Justa”. Para ele, a guerra é sempre a falência da política.
Ao não nomear Putin como o “agressor absoluto” nos primeiros meses, Francisco não estava sendo covarde; estava mantendo a única porta do mundo aberta. O Vaticano sabe que, quando as armas calarem, alguém precisará mediar a paz. E ninguém aceita a mediação de um juiz que já proferiu a sentença. Ele aceitou pagar o preço da impopularidade no Ocidente para preservar a possibilidade — ainda que remota — do diálogo.
Francisco entendeu que não existe “Império do Bem”. Ele viu de perto o que o imperialismo (de todas as cores) fez na América Latina. Por isso, ele se recusou a ser o Capelão da OTAN. Ele soube que a indústria armamentista é quem mais lucra com a dicotomia “bem contra o mal”. Na Fratelli Tutti, ele clamou por uma “política melhor”, uma política que não fosse serva da economia nem da tecnocracia militarista.
Essa postura custou caro. Ele foi chamado de “putinista” por uns e de “ingênuo” por outros. Mas a história, essa senhora implacável, talvez lhe dê razão. Enquanto a Europa se rearmava num sonambulismo bélico, apenas um homem de branco e sapatos pretos gastos, em Roma, ousava dizer que a paz não se constrói sobre a humilhação do inimigo, mas sobre o reconhecimento de sua humanidade — por mais distorcida que ela esteja. Ele escolheu a solidão profética em vez do aplauso da multidão armada.
Ao recusar a patente de 'Capelão da OTAN', Francisco escolheu a solidão profética em vez do aplauso fácil da multidão armada.”
Se Francisco se recusou a ser o capelão da OTAN, foi porque ele já havia escolhido sua trincheira muito antes da Ucrânia: ele é o Capelão dos Afogados. Não é coincidência que sua primeira viagem fora de Roma, em 2013, não tenha sido para uma capital europeia ou para a Casa Branca, mas para Lampedusa. Uma ilha de pescadores e cadáveres.
Ali, diante de um mar que se tornou cemitério, ele cunhou a frase que define a patologia do nosso século: a “globalização da indiferença”. Ao lançar uma coroa de flores nas águas do Mediterrâneo, Francisco inverteu o mapa-múndi. Para a Cúria Romana, habituada a olhar para o mundo a partir das cúpulas douradas, aquilo foi um choque estético. O centro da Igreja não era mais a Basílica; era a fronteira, o arame farpado, o bote inflável furado.
Essa escolha tem um custo político brutal. Ao abraçar o migrante, ele se tornou o inimigo número um da direita populista europeia e norte-americana. Foi chamado de marxista, de peronista, de demagogo. Mas Francisco, com a teimosia dos profetas do Antigo Testamento, entende que a verdadeira guerra mundial não é apenas por territórios, mas por dignidade. Na Fratelli Tutti, ele não pede apenas “abertura”; ele exige que a propriedade privada seja subordinada ao destino universal dos bens.
Ele sabia que não poderia abençoar os canhões do Norte enquanto o Sul estava sendo saqueado ou deixado para morrer no mar. Sua neutralidade na guerra entre impérios é a consequência direta de sua parcialidade radical em favor das vítimas desses impérios.
Na narrativa que estamos construindo, a tensão política da Ucrânia poderia levar o texto para uma aridez diplomática. Mas é aqui que Francisco opera o que a escritora Lygia Fagundes Telles (1918 – 2022) chamaria de “virada de conto”. Ele rompe a lógica do poder com a lógica do afeto.
A cena é o Hospital Gemelli, esse “terceiro Vaticano” onde os pontífices conhecem a vulnerabilidade da carne. Março de 2025. Francisco acaba de sair de uma internação de 38 dias. Uma pneumonia, o corpo cansado, os boatos de conclave já circulando nos corredores da Cúria como abutres elegantes.
Quando ele aparece na janela, não faz um discurso teológico sobre o sofrimento redentor. Ele aponta para a multidão. Seus olhos, habituados a ler relatórios de nunciaturas, fixam-se numa senhora com um buquê de flores amarelas. — “Vejo essa senhora... É uma boa pessoa, é brava.”
A palavra italiana brava aqui não tem tradução simples. É uma mistura de “valente”, “competente”, “boa de briga”. A mulher é Carmela Mancuso.
Ela esteve ali fora, rezando, durante toda a internação. Por que isso importa? Porque Francisco inverte a pirâmide. Naquele momento, a mulher anônima com flores amarelas é mais importante que o Secretário de Estado. Ele reconhece nela a “santidade ao pé da porta” de que falou na exortação Gaudete et Exsultate. Carmela não é uma estatística; é um rosto. Ao chamá-la de brava, o Papa sussurrou para o mundo que a verdadeira coragem não está nos gabinetes que decidem guerras, mas na fidelidade de quem espera, na chuva ou no sol, apenas para ver o outro vivo. É a política do cuidado, a antítese da tecnocracia fria que ele condena na Fratelli Tutti.
É um Papa que governou olhando para baixo, não do alto do trono, mas da janela de um hospital, nivelado pela doença, reconhecendo a dignidade de quem está na calçada.
Francisco foi humano, e nada que é humano lhe foi estranho — nem mesmo o “ópio das massas”. Perguntado sobre o maior de todos, o Papa escolheu Pelé. A resposta revela a tensão entre o Pastor que preza a ordem e o Homem que conhece a lama. Ele elogiou a fidalguia do brasileiro.
Mas o historiador precisa fazer uma nota de rodapé: Pelé foi o “Rei”, a instituição perfeita que sorria para o poder enquanto escondia as sombras. Pelé operou na lógica da assepsia; foi o ídolo que o sistema amava porque nunca desafiava a etiqueta.
Já Maradona... Maradona foi a carne exposta. Diego não teve a prudência de esconder seus demônios; ele dançou com eles. Foi o pecador que não conheceu a hipocrisia, assumindo vícios e filhos ilegítimos com uma sinceridade suicida. Mas foi no México, em 1986, que ele se tornou uma entidade metafísica.
Imagine a cena: um mestiço de 1,65m, com sangue Guarani correndo nas veias, recebe a bola na sua própria intermediária. À sua frente, o Império Britânico. O que se segue não é futebol; é reparação histórica. Diego arranca. Ele não corre; ele flutua sobre a grama, costurando os adversários como quem costura uma mortalha para o orgulho europeu. Um, dois, três, o goleiro... Gol. O “barrilete cósmico” tinha acabado de vingar um continente inteiro com os pés.
Gosto de especular onde estava o Padre Jorge Bergoglio naquele instante. Provavelmente na Alemanha, imerso em teses doutorais. Mas ouso imaginar que, ao ver aquele milagre profano, o jesuíta austero morreu por dez segundos e o menino Jorge renasceu, gritando um palavrão sagrado, explodindo de alegria.
Ali, um ciclo de quatro séculos se fechava. Os mesmos Guaranis que foram protegidos e amados pelos jesuítas Roque González de Santa Cruz e Antonio Ruiz de Montoya nas florestas do Prata, agora viam um de seus filhos, “El Diego”, ser celebrado pelo primeiro Papa jesuíta da história. Foi o reencontro místico entre a Companhia de Jesus e o povo da terra, não mais na catequese, mas na celebração da arte pura.
“Pelé foi a 'Lei' e a assepsia institucional; Maradona foi a 'Graça' suja e necessária. O altar de Diego é mais alto porque ele nunca teve a arrogância de se fingir santo.”
Talvez Francisco tenha escolhido Pelé por dever litúrgico, mas é em Maradona que sua teologia encarna. O altar de Diego no céu dos tortos é mais alto, porque ele nunca cometeu o pecado da soberba de se fingir santo. Ele foi, até o fim, o barro Guarani que Deus soprou e fez voar.
No Gemelli ele viu a fidelidade anônima, na Praça de São Pedro ele viu a memória afetiva. Estamos acostumados com a imagem do Papamóvel como uma vitrine blindada, uma bolha de segurança que separa o Santo Padre do “santo povo”. Mas Francisco odeia o vidro. Ele precisa do cheiro das ovelhas, como disse tantas vezes aos padres.
Numa audiência geral, no meio daquele mar de turistas e fiéis, os olhos de Bergoglio — esses olhos de lince que não perderam a vivacidade portenha — capturam um rosto familiar. Não é um cardeal, não é um chefe de estado. É o Padre Fabián Báez, um velho amigo dos tempos de Buenos Aires, um pároco simples que nem ingresso tinha para a área VIP.
O que acontece a seguir é o pesadelo da Gendarmeria Vaticana e o êxtase da teologia jesuíta. Francisco manda parar tudo. — “O que você faz aqui?” — ele grita, provavelmente em espanhol, quebrando a barreira da língua oficial. — “Vim te ver!” — responde o padre.
Francisco não acena polidamente. Ele o convida a subir. “Venga!”. Aqui, precisamos visualizar a cena sem a pompa do Papamóvel blindado que distancia. O Papa puxa o amigo para dentro do seu círculo, para o “carro” da sua vida pública. O abraço que se segue não é litúrgico; é humano. É carne com carne. É o abraço de dois homens que compartilharam mate, ônibus e as dores da pastoral nas villas miserias da Argentina. Tenho 45 anos de idade, e já vi João Paulo II, Bento XVI, Francisco e agora Leão XIV, e jamais vi cena mais bela do que aquela. Francisco leva as mãos ao coração. O rosto é de incredulidade pura. Ele mira o amigo uma segunda vez. E então o abraço. Ali não havia mais Papa e um súdito. Estavam dois amigos, sem quaisquer barreiras de autoridade ou de protocolo. Nem o Capitão da Guarda Suíça, se quisesse, poderia desfazer aquele abraço.
Ao fazer isso, Francisco diz ao mundo: “Eu não deixei de ser Jorge”. O papado não apagou a pessoa. A instituição não devorou o homem. Para a Cúria, que vive de precedentes e hierarquias, isso talvez tenha sido um escândalo. Um pároco qualquer subindo no veículo pontifício? Sem verificação de antecedentes? Sim. Porque para Francisco, a amizade é um sacramento não escrito. Naquele momento, a Praça de São Pedro deixou de ser o centro do poder católico e virou um bairro de Buenos Aires. Era a própria Villa 31 de Buenos Aires, que por tantas vezes o jesuíta caminhou em mangas de camisa.
Ele nos lembrou que a Igreja não é uma estrutura de poder, mas uma “comunidade de pecadores perdoados” que se encontram e se abraçam. É a Fratelli Tutti encenada ao vivo: somos todos irmãos, e nenhum protocolo é maior que o encontro. Foi reconfortante aquele pontificado, e é justamente por isso que deixa uma saudade difícil de ser preenchida, justamente porque o mundo não perdeu um Papa.
Há uma dissonância cognitiva que precisamos enfrentar: Francisco foi um mau administrador? Se olharmos para as planilhas do IOR (o Banco do Vaticano) ou para os escândalos imobiliários que teimaram em manchar seu pontificado, a resposta tende ao “sim”. As reformas da Cúria foram lentas, sabotadas por um “ninho de víboras”, como o próprio Cardeal Tarcisio Bertone.
O embate silencioso entre Bertone e Francisco é o epítome desse conflito. O antigo Secretário de Estado, salesiano de temperamento principesco, representava tudo o que Bergoglio desprezava esteticamente: o príncipe da Igreja que se retira para uma cobertura de 700 m² enquanto o Papa escolhe viver num quarto de hotel em Santa Marta. Francisco, num ato de transparência desarmante, revelou que sua carta de renúncia (em caso de incapacidade médica) estava nas mãos de Bertone desde 2013. Havia respeito institucional, sim, mas havia também um abismo intransponível de estilo. Francisco não sabia — ou não queria — jogar o xadrez financeiro com a destreza maquiavélica que Roma exige.
Esquecem-se de que o Cristianismo não é uma religião de sucesso; é uma religião de fracasso aparente.
“Julgar Francisco pelo PIB do Vaticano é um erro teológico: a Cruz foi, aos olhos do Império Romano, uma falha de gestão absoluta.”
Seu “erro” administrativo é o preço de seu acerto pastoral. Veja a cena com o menino Emanuele. O garoto chora no ombro do Papa. O pai, ateu, tinha morrido. A pergunta que queimava na garganta da criança era: “Meu pai está no céu?”. Um teólogo dogmático abriria o Código de Direito Canônico e diria: “Bem, extra ecclesiam nulla salus...”. Francisco não. Francisco perguntou à multidão: “Deus abandona seus filhos?”. E sussurrou ao menino que Deus tinha orgulho daquele pai, porque ele teve a coragem de batizar os filhos mesmo sem ter fé.
Ali, naquele abraço, Francisco implodiu séculos de rigidez doutrinária não mudando uma vírgula da lei, mas mudando toda a tônica da lei. Ele preferiu o risco da misericórdia à segurança da norma. Ele pode ter perdido a batalha contra a burocracia romana, mas ganhou a guerra pela alma de Emanuele — e de milhões de outros “órfãos” espirituais. 10 milhões de Euros mal administrados por estafetas do IOR (desde Paul Marcinkus 1922 – 2006) não valem uma alma que Francisco conduziu a Deus, e incluo a minha própria, que ele encheu de ardor por Cristo novamente.
Falamos de suas falhas administrativas, mas precisamos falar do custo pessoal dessas batalhas. A tradição vaticana diz que os Papas sofrem o “martírio vermelho” (o sangue) ou o “martírio branco” (a incompreensão e a solidão). Francisco viveu o segundo com uma intensidade shakespeariana.
Quando ele decidiu não morar no Palácio Apostólico, isolando-se nos apartamentos pontifícios onde seus antecessores viveram como monarcas, a Cúria entendeu o recado: ele recusava a corte. Ele preferiu o quarto 201 da Casa Santa Marta, onde podia comer no refeitório comum. Mas essa proximidade física trouxe uma solidão institucional terrível.
Os “lobos” de que Bento XVI (2005 – 2013) falava não desapareceram; eles apenas mudaram de tática. Os vazamentos de documentos, os livros lançados por cardeais conservadores atacando suas reformas, a resistência passiva-agressiva dos monsenhores que engavetavam suas ordens... tudo isso foi um veneno lento. Francisco sabia. Certa vez, brincou sobre o medo de ser envenenado, mas o veneno real era a traição dos seus.
Aquele homem que sorria na janela do Gemelli muitas vezes jantava sozinho, cercado de processos judiciais do IOR e de resistências ideológicas. Sua gestão pode ter sido caótica, sim, mas foi o caos de quem tenta manobrar um transatlântico enferrujado enquanto a tripulação tenta furar o casco. Sua resiliência não vinha de uma estratégia de management, mas de uma vida de oração que começava às 4 da manhã. Ele governou a Igreja de joelhos, porque em pé, muitas vezes, não o deixavam caminhar.
Para entender Francisco, é preciso voltar a Inácio de Loyola. Nas Constituições, o objetivo da Companhia de Jesus é claro: “ajudar as almas”. Não é gerir estruturas, é salvar pessoas. E nos Exercícios Espirituais, Inácio nos ensina a “contemplação na ação” — ver Deus não apenas no silêncio do mosteiro, mas na sujeira da história.
É aqui que entra a Fratelli Tutti. Esta encíclica não é um documento religioso; é um manifesto político. Francisco resgata o conceito de “Caridade Política” ou “Política com P Maiúsculo”. Ele escreve: “Diante de tantas formas de fazer política mesquinhas e fixadas no interesse imediato... a grandeza política mostra-se quando, em momentos difíceis, se atua com base em grandes princípios e pensando no bem comum a longo prazo”. Francisco foi, talvez, o Papa mais político da era moderna porque entendeu que o “amor político” é superior à caridade privada. Dar um prato de comida é caridade; lutar por estruturas que impeçam a fome é Política. Quando ele critica o paradigma tecnocrático ou se recusa a abençoar o status quo da OTAN, ele está exercendo essa caridade macroscópica. Ele está aplicando o discernimento inaciano à geopolítica: onde está o “mau espírito” disfarçado de “anjo de luz” (segurança nacional, defesa da liberdade) que, no fundo, só gera morte?
Ele pagou o preço. Foi incompreendido por conservadores que acham que religião não se mistura com política (esquecendo-se de que Cristo foi crucificado pelo Império Romano sob uma acusação política). Mas Francisco, fiel ao voto jesuíta de obediência ao Papa (que ironicamente, agora era ele mesmo), obedeceu à realidade. Ele abraçou a política como a forma mais alta de caridade, sujando as mãos para tentar limpar o mundo. Forçoso lembrar da frase sutil de D. Hélder Câmara (1909 – 1999): “Quando dou pão aos pobres, sou chamado de santo. Quando pergunto as causas da pobreza, me chamam de comunista!”
Não podemos fechar o arco político de Francisco sem tocar na ferida da Amazônia. Antes da Fratelli Tutti, houve a Laudato Si’. E se a primeira irritou os capitalistas, a segunda enfureceu os extrativistas. Francisco foi o primeiro Papa a colocar a ecologia no centro do dogma, não como um adendo “verde”, mas como uma questão de sobrevivência moral.
No Sínodo para a Amazônia, vimos a fúria conservadora atingir o paroxismo quando estátuas indígenas (a “Pachamama”) foram roubadas de uma igreja e jogadas no Rio Tibre. Francisco, num gesto de reparação histórica, pediu perdão. Ele entendeu que o desprezo pela cultura indígena é o mesmo desprezo que queima a floresta.
Ao defender a Amazônia, Francisco não estava sendo um ativista de ONG; ele estava sendo jesuíta. Ele estava sendo Manuel da Nóbrega (1517 – 1570); José de Anchieta (1534 – 1597); João Azpilcueta Navarro, Antônio Vieira (1608 – 1697); Pedro Claver (1580 – 1654); Roque González de Santa Cruz (1576 – 1628); Antonio Ruiz de Montoya (1585 – 1652); Ele estava vendo Deus em todas as coisas — inclusive na biodiversidade ameaçada. Sua política não se limita à polis humana; ela abraça a oikos (casa) comum. Ele percebeu que não haverá “justiça social” num planeta morto.
Esse é o legado intelectual mais robusto que ele deixa: a interconexão. O choro pela Ucrânia, o abraço no migrante de Lampedusa e a defesa da floresta amazônica são a mesma luta. É a luta contra a cultura do descarte, onde tudo — fetos, idosos, migrantes, árvores — é convertido em mercadoria ou lixo. Francisco foi a voz que gritou no deserto (ou na floresta queimada) que tudo está interligado. E que, se não aprendermos a chorar pela terra, não teremos onde chorar pelos nossos mortos.
A imagem definitiva deste pontificado não será um documento assinado, mas um corpo molhado. Março de 2020, o mundo trancado pelo medo da peste. A Praça de São Pedro vazia, azulada pela noite e pela chuva incessante. Francisco, mancando, sobe a rampa. Ele está sozinho. Aquele ato Urbi et Orbi foi o seu Getsêmani. Há quem diga que aquela chuva infiltrou não apenas nas vestes, mas nos pulmões já fragilizados do velho pontífice. Ali, ele ofereceu sua saúde física em troca da saúde espiritual do mundo. Foi o início do fim, o prelúdio da pneumonia que, anos depois, cobraria seu preço fatal.
E então, o ato final. Aquele vídeo que vazou e correu o mundo como um testamento visual. Francisco na Basílica, já sem as vestes litúrgicas pesadas, vestindo um pijama branco, coberto por uma manta, empurrado numa cadeira de rodas por um guarda suíço. Ele parecia pequeno. O gigante que enfrentou a Cúria, o homem que peitou a OTAN, reduzido a um ancião frágil, acenando com uma mão trêmula para uma basílica vazia. Não havia pompa. Não havia ouro. Havia apenas um homem.
Ele morreu como viveu: teimosamente humano. E, ao dar o último suspiro, apagado pela Virgem a quem tanto amou, imagino que ele tenha sido recebido não com um tribunal, mas com um colo — uma Pietà divina acolhendo seu filho cansado.
Pedro Arrupe (1907 – 1991), o Geral dos Jesuítas que Francisco venerava, disse uma vez: “Prefiro uma Companhia de Jesus que erra por fazer demais a uma Companhia de Jesus que erra por fazer de menos”. Francisco errou muito. Errou por falar demais, por confiar demais, por amar demais. Mas, num século de líderes que erram por omissão e covardia, o erro de Francisco foi a nossa salvação. Ele se consumiu como uma vela. E agora que a chama se apagou, percebemos que a escuridão do mundo ficou um pouco mais densa.
Ad maiorem Dei gloriam!
BÍBLIA SAGRADA. Evangelho segundo João. In: BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
COMPANHIA DE JESUS. Constituições da Companhia de Jesus. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Fratelli Tutti: sobre a fraternidade e a amizade social. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2020.
LOYOLA, Inácio de. Exercícios Espirituais. São Paulo: Edições Loyola, 1990.
ACI DIGITAL. Papa Francisco reaparece na Praça São Pedro para o Jubileu dos Enfermos. 2025. Disponível em: https://www.acidigital.com/noticia/62039/papa-francisco-reaparece-na-praca-sao-pedro-para-o-jubileu-dos-enfermos. Acesso em: 22 nov. 2025.
AGÊNCIA BRASIL. Papa Francisco faz 1ª aparição no Vaticano depois de internação. 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2025-04/papa-francisco-faz-1a-aparicao-no-vaticano-depois-de-internacao. Acesso em: 22 nov. 2025.
AMERICA MAGAZINE. Was Pope Francis right to tell a child his atheist dad may be in heaven? 2018. Disponível em: https://www.americamagazine.org/faith/2018/04/19/was-pope-francis-right-tell-child-his-atheist-dad-may-be-heaven/. Acesso em: 22 nov. 2025.
AP NEWS. A weak Pope Francis thanks people for their prayers in audio message. 2025. Disponível em: https://apnews.com/article/pope-francis-hospitalization-pneumonia-vatican-6a63ef6cc34c27307bf2e54f64c94014. Acesso em: 22 nov. 2025.
CNN BRASIL. Contava piadas e pegava ônibus mesmo como arcebispo, relatam amigos do papa. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/contava-piadas-e-pegava-onibus-mesmo-como-arcebispo-relatam-amigos-do-papa/. Acesso em: 22 nov. 2025.
CREMAOGGI. Papa Francesco ha lasciato il Gemelli. Prima il saluto dalla finestra: “Grazie a tutti”. 2025. Disponível em: https://www.cremaoggi.it/2025/03/23/papa-francesco-ha-lasciato-il-gemelli-prima-il-saluto-dalla-finestra-grazie-a-tutti/. Acesso em: 22 nov. 2025.
ESTADÃO. Papa Francisco surpreendeu em resposta sobre escolha por Maradona ou Messi: 'Pelé'. 2025. Disponível em: https://www.estadao.com.br/esportes/futebol/faliu-cavalheiro-e-grande-humanidade-o-que-papa-francisco-pensava-de-maradona-messi-e-pele-npres/. Acesso em: 22 nov. 2025.
FANPAGE. Chi è Carmela, la signora con i fiori gialli che il Papa ha salutato. 2025. Disponível em: https://www.fanpage.it/attualita/chi-e-carmela-la-signora-con-i-fiori-gialli-che-il-papa-ha-salutato-ha-guardato-solo-me-non-sono-degna/. Acesso em: 22 nov. 2025.
HUFFPOST UK. Heartsick Boy Asks If Atheist Dad Is In Heaven. Pope Francis Reveals The Answer With A Hug. 2018. Disponível em: https://www.huffingtonpost.co.uk/entry/how-pope-francis-comforted-a-boy-who-wondered-if-his-dad-a-non-believer-was-in-heaven_uk_5c7e90c9e4b06e0d4c23cf82. Acesso em: 22 nov. 2025.
Instituto Humanitas Unisinos - IHU. A Guerra Fria do Papa. 2023. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/631958-a-guerra-fria-do-papa. Acesso em: 22 nov. 2025.
Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Francisco aos jesuítas: “O sonho de Deus para Inácio não se centrava em Inácio. Tratava-se de ajudar as pessoas”. 2022. Disponível em: https://ihu.unisinos.br/categorias/609533-francisco-aos-jesuitas-o-sonho-de-deus-para-inacio-nao-se-centrava-em-inacio-tratava-se-de-ajudar-as-almas.
Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Padre diz que carona no papamóvel foi convite para pegar a estrada para Deus. 2014. Disponível em: https://www.ihu.unisinos.br/noticias/527247-padre-diz-que-carona-no-papamovel-foi-convite-para-pegar-a-estrada-para-deus. Acesso em: 22 nov. 2025.
Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Por que Francisco não será capelão do BRICS, assim como Pio XII não foi da OTAN. Artigo de John L. Allen Jr. 2023. Disponível em: https://ihu.unisinos.br/categorias/629044-por-que-francisco-nao-sera-capelao-do-brics-assim-como-pio-xii-nao-foi-da-otan-artigo-de-john-l-allen-jr. Acesso em: 22 nov. 2025.
LANCE! Nem Messi, nem Maradona: Papa Francisco considerou Pelé o maior de todos. 2025. Disponível em: https://www.lance.com.br/fora-de-campo/nem-messi-nem-maradona-papa-francisco-considerou-pele-o-maior-de-todos.html. Acesso em: 22 nov. 2025.
NATIONAL CATHOLIC REPORTER (NCR). ‘Is my dad in heaven?’ little boy asks pope. 2018. Disponível em: https://www.ncronline.org/vatican/francis-comic-strip/francis-chronicles/my-dad-heaven-little-boy-asks-pope. Acesso em: 22 nov. 2025.
OPEN ONLINE. Carmela Mancuso, la signora con i fiori gialli di Papa Francesco e la cromoterapia. 2025. Disponível em: https://www.open.online/2025/03/24/carmela-mancuso-signora-fiori-gialli-papa-francesco/. Acesso em: 22 nov. 2025.
PBS NEWSHOUR. Pope’s health crisis sparks prayers from thousands gathered in St. Peter’s Square. 2025. Disponível em: https://www.pbs.org/newshour/world/popes-health-crisis-sparks-prayers-from-thousands-gathered-in-st-peters-square. Acesso em: 22 nov. 2025.
ROME REPORTS. Pope Francis consoles a boy who asked if his non-believing father is in Heaven. 2018. Disponível em: https://www.romereports.com/en/2018/04/16/pope-francis-consoles-a-boy-who-asked-if-his-non-believing-father-is-in-heaven/. Acesso em: 22 nov. 2025.
TNT SPORTS. Em 2023, Papa Francisco elegeu Pelé ao invés de Maradona ou Messi como maior do futebol. 2025. Disponível em: https://tntsports.com.br/futebolinternacional/Em-2023-Papa-Francisco-elegeu-Pele-ao-inves-de-Maradona-ou-Messi-como-maior-do-futebol-20250421-0016.html. Acesso em: 22 nov. 2025.
YOUTUBE. Papa Francisco faz aparição surpresa na basílica São Pedro após crise de saúde. Publicado pelo canal Top Talent. 2025. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yubvT782PIM. Acesso em: 22 nov. 2025.