09 Setembro 2023
"Não se tratou de um processo teórico, mas da visível composição, tema por tema, da agenda-mãe do nosso tempo. De caráter universal, como todos os pronunciamentos dos Papas, a Fratelli tutti angariou no campo o título de encíclica do tempo global, porque ela mesma é global, no sentido de uma amplitude de questões que nunca foi tão evidente e nunca tão presente nos tempos", escreve Angelo Scelzo, vaticanista italiano, em artigo publicado por Avvenire, 07-09-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nenhum outro lugar como a Mongólia, a terra sobre a qual Guilherme de Rubruk escreveu que a atravessou “não vendo nada além do céu e da terra”, apareceu como a pátria natural da encíclica Fratelli tutti. No encontro ecumênico e inter-religioso, no fim da viagem, o Papa nem sequer a mencionou, mas nem foi preciso o fazer, tanto estava presente e viva num encontro que na realidade não falava de outra coisa. E não falava de outra coisa, num sentido amplo, toda a paisagem e a própria arquitetura de um país modelado, mesmo entre os seus enormes espaços, no valor da harmonia que fez pensar a uma espécie de cópia perfeita de toda a trama da encíclica papal.
Pode-se dizer que depois do encontro de Ulan Bator, a Fratelli tutti assumiu definitivamente a função de um verdadeiro “manifesto de época”. De fato, não existe nenhum “título” que se repita com tanta frequência para indicar as grandes questões que atravessam este primeiro, trágico e complexo quarto de século. Não é, como qualquer outra, uma encíclica temática.
Mas a singularidade é que não exclui nenhum dos muitos que abalam uma época marcada por duas ruinosas epidemias: uma biológica, a Covid-19, a outra desencadeada, na Ucrânia, no coração da Europa, pela enésima deriva de ódio e subjugação.
Não há ocasião em que o “título”, nestes três anos de vida, não tenha surgido como uma espécie de denominador comum capaz de reconduzir tudo de volta a si; e também do lado oposto, como aconteceu na mensagem que o Papa enviou ao Encontro de Rimini, na qual se evocava uma espécie de “epidemia de inimizade” face às guerras que semeiam divisão e medo nos corações.
Apenas poucos dias antes, e noutro contexto, precisamente da Encíclica de Francisco tinha surgido a sugestão – de maneira talvez inesperada – de atualizar, e eventualmente relançar, sessenta anos depois do Código de Camaldoli, o empenho dos católicos na política. É claro que se trata de uma situação limitada à realidade italiana.
Mas mesmo essa “cota interna” contribuiu, à sua maneira, para conferir à Fratelli tutti o aval de um documento diferenciado na história do magistério pontifício. O que está emergindo é o fato extraordinário de uma encíclica lida como voz estável e essencial na agenda, não virtual, das grandes questões com que a humanidade, em todos os níveis, se vê confrontada. Quase não há mais necessidade agora de recorrer aos arquivos para consulta, pois não existe documento não somente mais citado, mas mais inserido e mais vitalmente ativo em todas os âmbitos de debate que a complexidade dos tempos produz. E a forma como o documento conseguiu transformar-se gradualmente numa ponte permanente de diálogo entre a Igreja e a comunidade civil – em todos os níveis e em todas as latitudes – representa por sua vez um valor em si mesmo.
Não se tratou de um processo teórico, mas da visível composição, tema por tema, da agenda-mãe do nosso tempo. De caráter universal, como todos os pronunciamentos dos Papas, a Fratelli tutti angariou no campo o título de encíclica do tempo global, porque ela mesma é global, no sentido de uma amplitude de questões que nunca foi tão evidente e nunca tão presente nos tempos. Portanto – e este é o ponto central – é de fato a Fratelli tutti que marca agora o ponto de passagem de um documento de sucesso para um manifesto de época propriamente dito.
Não se trata de uma diferença trivial, mas do testemunho vivo, não só e não tanto da atualidade, mas da real incidência de um documento do Papa. A Fratelli tutti pode hoje ser identificada como a encíclica em saída que fincou os pés na realidade de um mundo inquieto e sempre à espera. Não precisou abrir caminho, porque o espaço ao seu redor se abriu naturalmente. Havia necessidade de tal “título” para tornar mais credível todo tipo de narração.
Como o capítulo inicial de um novo mundo, o retorno a um humanismo básico de onde recomeçar para qualquer etapa subsequente. E é por essa razão que a encíclica foi evocada várias vezes como base de diálogo nas missões de paz que o Cardeal Zuppi conduziu primeiro em Kiev, depois em Moscou e posteriormente em Washington, enquanto se prepara a delicadíssima etapa de Pequim. E nunca foi viável colocar de lado o documento nascido do prólogo de Abu Dhabi sobre a fraternidade universal, quando ao fenômeno da migração foi dada a única dimensão possível, a de uma verdadeira questão de época.
E a Fratelli tutti continua sendo mais do que nunca importante na visão do Mediterrâneo como fronteira de paz que, depois da cúpula do Papa com os bispos de todas as Igrejas à beira daquele grande mar, no final do mês levará Francisco a Marselha. E já no seu nome, a encíclica vale como uma escolha irrevogável para os pobres. E pela justiça, pelo progresso dos povos, pela luta contra todas as formas de subjugação. Pode-se entender como a Fratelli tutti não foi simplesmente acolhida, mas assumida como visão de um mundo no qual agir. Não apenas um documento, portanto, mas um autêntico manifesto de uma nova fraternidade. E ver como a esperança presente ao título da encíclica já consegue manter os faróis acesos – a começar pelas missões de paz – é certamente um conforto.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Fratelli tutti”, mais que um documento. O manifesto de uma época - Instituto Humanitas Unisinos - IHU