Vozes de Emaús: os documentos de Santa Fé e o perfil religioso da América Latina. Artigo de Frei Betto

09 Abril 2025

Os Documentos de Santa Fé I e II foram mais do que simples relatórios de análise política; foram instrumentos estratégicos que ajudaram a moldar o panorama religioso e ideológico da América Latina nas últimas décadas do século XX e neste início do século XXI. Ao identificarem a Teologia da Libertação como inimiga e defenderem uma reorientação cultural na região, contribuíram diretamente para a ascensão das Igrejas evangélicas como alternativa ideológica e espiritual.

O artigo é de Frei Betto, escritor, autor de Jesus revolucionário (Vozes), entre outros livros.

Frei Betto (Foto: MST)

O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui

Eis o artigo. 

A América Latina passou por profundas transformações religiosas ao longo das últimas décadas do século XX. Um dos fenômenos mais notáveis foi o crescimento expressivo das Igrejas evangélicas, especialmente as de orientação pentecostal e neopentecostal. Embora diversos fatores internos — como crises sociais, esvaziamento da Igreja Católica, e a busca por experiências religiosas mais pessoais — tenham contribuído para esse processo, há também influências externas, políticas e estratégicas, que desempenharam papel crucial.

Nesse contexto, destacam-se os Documentos Santa Fé I (1980) e Santa Fé II (1988), produzidos por setores conservadores da política e dos serviços de inteligência dos Estados Unidos, com o objetivo de orientar a política externa do país frente à América Latina durante a Guerra Fria. Esses documentos foram elaborados em reuniões da cidade de Santa Fé, no Novo México (EUA) e não apenas formulam uma crítica contundente à Teologia da Libertação, mas também defendem ações práticas que acabaram contribuindo para o fortalecimento de movimentos evangélicos na região. (Os documentos podem ser encontrados aqui.)

Santa Fé I e Santa Fé II

Em maio de 1980 o governo dos EUA, então presidido por Carter, emitiu o Documento Santa Fé I, denominado “Uma nova política interamericana para os anos 80”. E no governo Ronald Reagan foi publicado o Documento Santa Fé II, intitulado “Uma estratégia para a América Latina nos anos 90”.

Os signatários destes dois documentos consideravam “o regime democrático é aquele no qual o governo tem a responsabilidade de preservar a sociedade vigente de ataques externos ou da intromissão do aparato estatal permanente.” Ou seja, reduzir ao máximo a intervenção do Estado na economia. Na prática, privatizar, privatizar, privatizar. O que o capitalismo tenta esconder é que a maioria das privatizações são financiadas por dinheiro público!

No contexto da Guerra Fria, os documentos alertavam para a “ofensiva cultural marxista”: “Para os teóricos marxistas, o método mais promissor para a criação de um regime estatista em um ambiente democrático se obtém mediante a conquista da cultura da nação. De acordo com este modelo, todos os movimentos marxistas na América Latina têm sido encabeçados por intelectuais e estudantes, e não por trabalhadores”. Isso explica o horror que a direita tem de intelectuais e cientistas. Ela prefere gente analfabeta ou semianalfabeta, mais fácil de ser manipulada.

O Documento Santa Fé II assinala que nesse contexto “deve ser entendida a Teologia da Libertação, uma doutrina política disfarçada como crença religiosa com uma significação antipapal e contrária à livre empresa, com o propósito de debilitar a independência da sociedade”.

Na época, o papa era João Paulo II, polonês anticomunista, aliado de Reagan. Hoje, com certeza, a alusão à “significação antipapal” não constaria, já que o papa Francisco é considerado “comunista” até mesmo por bispos estadunidenses.

Contexto da Guerra Fria e a preocupação ianque

Durante a Guerra Fria, os EUA viam a América Latina como região estratégica na contenção da expansão do socialismo. Após a Revolução Cubana em 1959, aumentaram os temores de que outros países latino-americanos seguissem pelo mesmo caminho, abraçando regimes socialistas.

A ascensão da Teologia da Libertação nas décadas de 1960 e 1970 — um movimento dentro do catolicismo que combinava fé cristã com análises marxistas da sociedade, defendendo a luta contra a opressão e a injustiça social — passou a ser vista com crescente preocupação pelos setores conservadores dos EUA, tanto no governo quanto em think tanks e setores religiosos.

O primeiro documento, conhecido como Santa Fé I, foi elaborado em 1980 por um grupo de assessores de política externa conservadores ligados a Ronald Reagan. Seu objetivo era fornecer diretrizes para a ação americana na América Latina diante do avanço do marxismo e de movimentos revolucionários. O texto trazia uma crítica direta à Teologia da Libertação, classificando-a como uma ferramenta ideológica do marxismo que havia se infiltrado na Igreja Católica. Os autores alegavam que padres e bispos progressistas, inspirados por essa teologia, estavam incentivando a luta de classes, a desobediência civil e a revolução armada. Em resposta, o documento defendia a necessidade de conter essa influência teológica por meio de uma “reorientação cultural” que envolvia o incentivo a formas alternativas de cristianismo.

Embora o texto não mencionasse explicitamente o apoio a igrejas evangélicas, a lógica subjacente era clara: a necessidade de promover formas de religiosidade que fossem anticomunistas, individualistas, “apolíticas” e alinhadas aos valores do “mundo livre” capitalista. Igrejas evangélicas pentecostais se encaixavam perfeitamente nesse perfil, pois enfatizavam a salvação pessoal, a prosperidade individual, a autoridade bíblica e a rejeição de ideologias políticas consideradas subversivas.

O Santa Fé II, publicado em 1988, em pleno governo Reagan, reafirmava e aprofundava essas diretrizes. O novo documento voltava a criticar a Teologia da Libertação, classificando-a como uma ameaça à estabilidade política e à influência dos EUA na América Latina. Além disso, alertava para o papel das universidades católicas, ONGs e outras instituições ligadas à Igreja na difusão de ideias “marxistas”. A solução proposta seguia na mesma linha: enfraquecer a influência dessas correntes através de um reforço da “guerra cultural”, promovendo valores tradicionais, religiosos e pró-Ocidente.

Embora os Documentos Santa Fé não defendessem explicitamente o financiamento ou a implantação de igrejas evangélicas, na prática, suas diretrizes foram interpretadas e operacionalizadas por diversas agências e grupos com atuação direta na região. Missões evangélicas norte-americanas, como a Summer Institute of Linguistics (SIL) e organizações pentecostais como as Assembleias de Deus, receberam incentivos diretos e indiretos para expandirem sua atuação na América Latina, especialmente em regiões indígenas e pobres, tradicionalmente negligenciadas pela Igreja Católica.

O apoio envolvia desde isenções fiscais e vistos facilitados para missionários, até financiamentos por parte de fundações conservadoras estadunidenses. Essas Igrejas e missões foram encaradas como aliadas ideológicas por promoverem valores como disciplina, obediência, moralidade conservadora e anticomunismo. E sua penetração em comunidades carentes contribuía para desmobilizar movimentos de base influenciados pela Teologia da Libertação, desviando o foco da luta política para questões espirituais e individuais.

O ataque à Teologia da Libertação

A estratégia delineada nos documentos Santa Fé mostrou-se eficaz a médio e longo prazo. A partir da década de 1980, diversos fatores contribuíram para o enfraquecimento da Teologia da Libertação: a repressão por regimes autoritários, a censura do Vaticano sob o pontificado de João Paulo II, e a ascensão de lideranças eclesiásticas conservadoras em várias dioceses. A pressão estadunidense, tanto direta quanto indireta, também desempenhou papel importante. Ao mesmo tempo, o crescimento exponencial das igrejas evangélicas transformava o panorama religioso latino-americano.

O discurso dessas Igrejas, centrado na experiência pessoal de conversão, na promessa de prosperidade e na rejeição de ideologias políticas, contrastava com a proposta de transformação estrutural da Teologia da Libertação. Muitos fiéis encontraram nelas uma alternativa mais imediata e emocional às suas angústias, ao mesmo tempo em que se afastavam dos discursos de luta de classes e mobilização política.

O impacto dos Documentos de Santa Fé e da estratégia que inspiraram continua a ser sentido. A América Latina, que até meados do século XX era majoritariamente católica, passou a ter uma presença evangélica cada vez mais forte. Muitos países assistiram à ascensão de lideranças políticas vinculadas a Igrejas evangélicas, e que expressam uma visão de mundo fortemente conservadora e alinhada a valores tradicionais.

Além disso, o declínio da Teologia da Libertação abriu espaço para uma nova configuração religiosa e política, marcada por uma menor presença das Comunidades Eclesiais de Base e maior protagonismo de igrejas com discursos centrados na prosperidade, no combate a “inimigos espirituais” e na negação da política como instrumento de transformação social.

Conclusão

Os Documentos de Santa Fé I e II foram mais do que simples relatórios de análise política; foram instrumentos estratégicos que ajudaram a moldar o panorama religioso e ideológico da América Latina nas últimas décadas do século XX e neste início do século XXI. Ao identificarem a Teologia da Libertação como inimiga e defenderem uma reorientação cultural na região, contribuíram diretamente para a ascensão das Igrejas evangélicas como alternativa ideológica e espiritual. Embora não sejam a única causa desse fenômeno, desempenharam papel decisivo ao alinhar interesses geopolíticos, religiosos e culturais em uma frente comum contra o que era percebido como a ameaça do “marxismo teológico”. O resultado foi uma profunda transformação no tecido religioso latino-americano — cujos efeitos continuam a reverberar até hoje.

Leia mais