"A Bíblia precisa ser mesmo um vidro transparente que nos ajuda a enxergar melhor, mesmo cientes de que cada olhar é um olhar. Cada pessoa tem sua ótica, marcada por contextos de suas vivências. Nas igrejas, por exemplo, aprendemos a ver a vida em comunidade e isto é muito bom"
O artigo é de Rosi Schwantes, doutora em Ciências da Religião e pós-doutora em Psicologia. Luterana, professora universitária do Centro Universitário São Camilo em São Paulo.
Rosi Schwantes | Foto: Arquivo Pessoal
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
Sempre que falamos sobre a Bíblia, logo alguém diz: suas palavras são difíceis. Quase não a leio, não a entendo. Ou ainda, prefiro ler os Salmos, são mais fáceis. De fato, a Bíblia tem lá suas dificuldades. Ao mesmo tempo que é a luz no nosso dia a dia, é também crise. Explico: a Bíblia é crise no coração da gente, e ao mesmo tempo é crise na igreja. E para autoridades e autoritarismos então, é crise sem fim.
Muitos de nós temos ou tivemos acesso à Bíblia muito cedo, por meio de nossas práticas religiosas que, em geral, acontecem em uma paróquia, ou em pequenos grupos, em missas ou em cultos nas igrejas evangélicas. Algumas pessoas desde muito pequenas foram introduzidas à leitura bíblica. Outras, mais tarde, por curiosidade e ou busca de conhecimento.
Sim, a Bíblia e a experiência religiosa ficam próximas. Não são totalmente dependentes, mas, a meu ver, esse diálogo facilita o processo de amadurecimento pessoal e na fé.
A Bíblia nos orienta para algumas regras de fé e de prática, como uma espécie de óculos diante da vida. A leitura bíblica pede óculos bem adaptados aos nossos olhos, ao nosso contexto pessoal e espiritual. Se essa leitura estiver mal adaptada aos nossos olhos, corremos o risco, e muitos já sucumbiram a esse risco, de acreditar, por exemplo, que os poderosos sempre vencerão. Uma leitura mais criteriosa e cuidadosa, vai nos conduzir justamente ao contrário.
A Bíblia nos alerta sobre a natureza efêmera e até ingênua dos poderosos da terra. Nela o poder exercido de forma injusta e opressiva não é sinal de fortaleza, e sim de fragilidade. Pode parecer uma grande contradição: um poderoso ser frágil. Mas confira o que está escrito em Isaías 1:31, “o poderoso se tornará como estopa, e a sua obra como fagulha”. E o alerta ainda continua nos Salmos: “Não há rei que se salve com a grandeza dum exército, nem o homem valente se livra pela muita força” (Salmos, 33: 16). Nas Escrituras ainda somos aconselhados a ficar calmos e confiantes (apesar das ameaças) porque “o anjo do Senhor acampa-se ao redor dos que o temem, e os livra. E, [segue escrito] provai e vede que o Senhor é bom; bem-aventurado o homem (e a mulher_) que Nele confiam”._ (Salmos, 34: 7 e 8).
A Bíblia é mesmo desafiadora. Temos visto poderosos injustos, opressores, com características sociopáticas, tomando decisões indizíveis que atingem todo o povo, especialmente contra pessoas indefesas, mulheres e crianças. E, ainda assim, confiamos no texto bíblico que diz que o Senhor virá em nosso socorro.
Sem que minhas ideias pareçam moralistas, me pergunto se quando muitos leem sobre o amor, cantam letras em nossos hinos sobre o amor, estão mesmo refletindo sobre suas práticas em amor... Sabemos que um dos desafios bíblicos é a transformação de comportamento, a mudança de vida. A pessoa não amava, agora aprenderá a amar, como? Praticando os ensinamentos e reflexões a partir da Bíblia. Aprende a ver a vida, as pessoas, suas relações e escolhas de modo novo. “As coisas velhas se passaram; eis que tudo se fez novo” (2 Coríntios 5:17). As experiências e hábitos anteriores são superados, e esta assume novo comportamento, novo caminho, marcado por nova perspectiva e propósito.
A Bíblia precisa ser mesmo um vidro transparente que nos ajuda a enxergar melhor, mesmo cientes de que cada olhar é um olhar. Cada pessoa tem sua ótica, marcada por contextos de suas vivências. Nas igrejas, por exemplo, aprendemos a ver a vida em comunidade e isto é muito bom. Nelas temos a oportunidade de aprimorar o olhar pessoal para um jeito coletivo de ver as coisas. Nas comunidades de fé uma das coisas mais lindas que acontecem são os encontros para se ler a Bíblia.
Esses encontros são chamados círculos bíblicos ou grupos bíblicos, e atualmente, em muitas comunidades, são chamados de “células” - que são pequenos grupos de encontros semanais para se ler e refletir a Bíblia, cantar e conviver. A partir desses processos vemos o encanto da participação em uma comunidade. Um grupo bíblico atrai, acolhe pessoas interessadas e motiva tantas outras. É lugar de descoberta da beleza que é a Bíblia e de diálogos que ajudam a escutas diferenciadas e novas construções, muitas vezes desconstruindo ideias e crenças anteriores. Na maioria das comunidades, todos são convidados a participar e podem falar nesses encontros.
Penso que vivemos tempos novos, de algumas décadas para cá lê-se mais a Bíblia. A redescoberta da Bíblia entre os católicos e a leitura da Bíblia entre os pentecostais e entre os evangélicos, de modo geral, contribui para que o acesso à Bíblia seja mais popular. Além disso, vivemos tempos de muita informação também, aplicativos, cultos e missas on line etc. Ou seja, podemos ver avanços.
Mas ainda me preocupo como estamos lendo a Bíblia, ou melhor, como fazemos uso do que lemos. Somos desafiados a entendê-la e a colocá-la em prática. Ao mesmo tempo em que isso não é uma grande novidade, é o nosso maior desafio. Pois, um livro em si, não ‘salva’, isso é óbvio. É Deus quem nos salva. E nos liberta da escravidão (confira no livro de Êxodo). A Bíblia abre nossos olhos. E assim nossa vida é construída em e pela liberdade (confira no livro de Carta aos Gálatas). Mas como tem sido esta leitura?
Sei que concordamos que o conteúdo bíblico ultrapassa o papel, nos orienta, além de nos animar a servir. Se ler a Bíblia nos provoca tudo isso, por que estamos agindo, muitas vezes, como se não víssemos os absurdos que estão diante de nós? Sim, nós cristãos, muitas vezes, ignoramos o que vemos!
Em minha tradição de fé, ensinamos nossas crianças a ler os textos sagrados. Tentamos, fielmente, cumprir o texto bíblico que diz: “ensina a criança no caminho que deve andar e ainda quando for velho não se desviará dele” (Provérbios 22:6 – Tradução de João Ferreira de Almeida). Nas escolas dominicais estudamos a Bíblia; decoramos e declamamos versos, trechos bíblicos e salmos; escolhemos versos que nos encantam; adotamos alguns como ‘mote’ para nossas meditações; recebemos em nosso batismo um verso como referencial, como se fosse um verso de orientação para nossa vida toda. Tudo isso, nos anima a dar importância à leitura bíblica contínua e cuidadosa.
Atualmente, apesar dos círculos bíblicos e das reuniões em células bíblicas, muitos parecem não entender o que leem, ou só querem ler o que lhes convém. Triste isso! Anunciam-se como cristãs, e envaidecem-se de conhecer a Bíblia, mas defendem governantes sanguinários, opressores, preferem optar pelo ódio na linguagem e no comportamento. O que é isso? Isto nem é só triste, é lamentável. É antibíblico!
Considero que os textos podem não ser muito fáceis; as palavras podem ser difíceis de entender, mas a comunidade e o convívio ajudam. No entanto, usar a Bíblia como amuleto, como objeto de manipulação, controle, medo ou para imposição e domínio, me preocupa.
Penso assim, a Bíblia se observada como sugere, lança para fora o medo, mas, sobretudo, ensina-nos misericórdia, porque Deus é rico dela.
Imaginem, quando queremos ver uma paisagem vamos para um lugar específico, não é? Por exemplo, aqui em São Paulo, quando queremos ver toda a cidade de modo panorâmico, o melhor lugar é o Pico do Jaraguá. A vista é impressionante! No Rio de Janeiro, é o Corcovado que nos deixa sem fôlego, com estonteante beleza. Então, penso que o ponto de vista é uma questão. Nos círculos bíblicos com uma leitura cuidadosa, podemos ter um ponto de vista. Uma torre de observação, usando a Bíblia como guia. As escrituras nos extasiam, é fato. Mas também nos desafiam a sermos cumpridores, a praticar a justiça e o bem comum.
Que a nossa oração seja para Deus abrir nossos olhos e nossa compreensão para a Palavra de Dele contida na Bíblia. E que cada comunidade, cada círculo bíblico nos estimule e nos ensine a sermos mais justos, acolhedores e misericordiosos.