O livro do Êxodo. Artigo de Roberto Mela

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27 Agosto 2022

 

"O livro do Êxodo é fascinante por seu tema. Fundamental para o status histórico e teológico do povo de Israel, é um texto de imensa importância para a fé cristã e potencialmente capaz de suscitar atualizações de tipo litúrgico, teológico, social e político", escreve Roberto Mela, padre dehoniano, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 11-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Professor no PIB em Roma e palestrante requisitado, setenta e seis anos de idade, o exegeta belga Jean-Louis Ska, dedicou sua vida acadêmica a ensinar Exegese do AT. Entre outros numerosos textos, é autor de uma introdução ao AT em dois volumes (2017 e 2018) e de uma introdução à hermenêutica bíblica (2017), ambas as obras publicadas pela EDB de Bolonha.

 

Jean-Louis Ska, Il libro dell’Esodo (Collana Biblica),
EDB, Bologna 2021, pp. 160, € 16,00, ISBN 9788810221914.

 

Uma polifonia sobre a libertação

 

O livro do Êxodo é fascinante por seu tema. Fundamental para o status histórico e teológico do povo de Israel, é um texto de imensa importância para a fé cristã e potencialmente capaz de suscitar atualizações de tipo litúrgico, teológico, social e político.

 

Ska primeiro descreve as realidades fundamentais a serem conhecidas para ler o livro do Êxodo. O texto não pretende informar (dados históricos, culturais, geográficos, etc.), mas formar para a fé. As fontes do livro são diferentes e o texto mostra a presença de tradições diferentes por interesses, linguagem, etc. A linha sacerdotal está entrelaçada com a linha deuteronomista.

 

No segundo capítulo, Ska resume o conteúdo do Êxodo, que parte das margens do Nilo para chegar ao povo liberto acampado no monte Sinai, pronto para partir para a Terra Prometida (viagem contada no livro de Números). Narra-se a vida de Moisés, as famosas "pragas", a passagem do Mar Vermelho, as provações no deserto, a teofania no Monte Sinai com o dom da Torá, o pecado do bezerro de ouro e a reconfirmação da aliança celebrada pouco antes.

 

A inserção posterior do Decálogo é colocada no início de uma série de leis que pretendem estruturar a vida de liberdade do povo fugido da escravidão para entrar ao serviço de YHWH. Em hebraico os dois termos coincidem. YHWH está no meio do povo e o livro termina com a descrição detalhada da construção do santuário móvel onde desce e de onde sobe a Glória de YHWH.

 

O fio condutor do livro é responder à pergunta de quem é o Senhor de Israel. O faraó ou YHWH? Não pode haver dúvida, e livro mostra como o senhorio de YHWH também se estende aos poderosos da terra e sobre todo o universo, incluindo a natureza.

 

O livro do Êxodo não é um canto plano, mas uma canção para várias vozes. Ska fornece exemplos de textos compostos e mostra qual é o estilo dos contos populares (por exemplo, o encontro da filha do faraó com a irmã de Moisés salvo das águas) e o do escritor sacerdotal. Mais do que um único autor, esta escola sacerdotal releu toda a história de Israel no período pós-exílico, desde a criação até às margens do Jordão, para devolver a esperança ao seu povo e convencê-lo de que Deus lhe reserva um futuro na sua terra.

 

O texto de Êx 6,2-8 mostra o estilo do escritor sacerdotal, com atenção para o fato de que YHWH é o Deus de Israel pois será reconhecido como tal no momento da libertação e do serviço litúrgico no Sinai. Está atento à linguagem litúrgica e jurídica. YHWH entra em aliança com Israel como sua noiva. A história do êxodo está firmemente ligada à do Gênesis pela dupla repetição dos nomes dos patriarcas.

 

O estilo dos contos populares, por outro lado, faz com que os personagens apareçam quando estão ativos, e deixa de segui-los uma vez terminado o seu papel. Há uma atenção para as ações e nada é revelado sobre as intenções e sentimentos dos personagens (exceto a filha do faraó). O estilo é conciso e sintético, desprovido de detalhes, elíptico. Em todo caso, o estilo polifônico do Êxodo canta o evento fundamental da experiência histórica e teológica de Israel: a libertação da escravidão e a primeira conquista da liberdade.

 

O mundo das leis

 

No cap. IV Ska analisa o mundo das leis e seu estilo. Existem aquelas apodícticas que enunciam princípios muito simples sem descrever as circunstâncias. Aquelas casuísticas as prevêem, adaptando a pena aplicada ao crime. Leis desprovidas de sanções são exortações para se comportar bem, mais que verdadeiras leis. Muitas vezes a justificação da lei é de ordem teológica: "Porque sou misericordioso" (cf. Êx 22,25-27). As leis cultuais (cf. Êx 25-31 e 35-40) - muito tediosas para o leitor moderno, admite Ska - insistem na conformidade entre as ordens divinas e a execução destas por Moisés e pelos artesãos que o auxiliam.

 

O santuário e o culto não são um projeto humano, mas uma instituição de origem divina. Mostra-se que o culto autêntico de Israel é aquele instituído durante o êxodo, aos pés do Monte Sinai; tal culto remonta ao próprio Moisés; Moisés se conformou em tudo com o que Deus lhe ordenou. Assim se explicam as repetições entre os cap. 25-31 e 35-40.

 

O direito de Israel é um direito mais próximo e mais humano do que parece. Ela "trata principalmente da educação de um povo, porque procura persuadir em vez de obrigar, e é por isso que contém tão poucas sanções" (p. 44). "Deus está nos detalhes", afirma um provérbio alemão. Os capítulos sobre o culto mostram como o povo de Israel levou a sério o serviço ao seu Senhor, nos mínimos detalhes.

 

O corpo central da obra de Ska é dedicado à análise sintética de nove temas que inervam o livro do Êxodo.

 

Nove temáticas fundamentais

 

O primeiro tema é constituído pela pergunta sobre quem é o Senhor. Êxodo trata da soberania de YHWH sobre seu povo. Para que seja afirmada, ele deve vencer dois adversários: o faraó e o bezerro de ouro.

 

O Êxodo mostra como o Deus de Israel se revela ao seu povo. O faraó afirma que não conhece o Senhor e trata os judeus com dureza. De acordo com as leis bíblicas, a liberdade de um indivíduo é sagrada. Por isso, quando Israel invoca YHWH, ele vê, conhece, ouve e desce para libertar, como aliado do seu povo (cf. Êx 3,7-8).

 

YHWH envia Moisés ao Faraó afirmando que seu nome é "Eu sou aquele que serei" Deus liga seu nome à libertação de Israel e ao sucesso da missão de Moisés. Deus quer libertar seu povo da escravidão e fazer mudar de política o Faraó.

 

Após uma primeira missão malsucedida, seguir-se-á a série das “pragas” e depois a partida de Israel.

 

As "pragas" são "sinais e prodígios" (alguns talvez devidos a causas naturais), advertências dadas ao faraó, que não as leva em conta e que, por isso, enfrentará o inelutável juízo final (morte dos primogênitos).

 

São duas fases bem distintas (cf. Êx 7, 3-4). Em Êx 15,18 é cantado: "o Senhor reinará eterna e perpetuamente". Deus libertou seu povo e derrotou o faraó, convenceu-o de sua soberania sobre a natureza e a criação, "demonstrando que nem mesmo um faraó pode transgredir impunemente as mais elementares regras de justiça" (p. 52).

 

O segundo tema estudado é o do endurecimento do coração e das pragas do Egito. Em um mundo teocêntrico, o Êxodo não se preocupa tanto com a liberdade e a responsabilidade do Faraó, mas com a demonstração de que o poder de YHWH se estende também ao Egito. O Faraó não pode decidir nada sem que Deus saiba e controle suas decisões. São as consequências das decisões divinas. O faraó reage, a iniciativa nunca é dele.

 

"Endurecer o coração" significa, neste contexto, "obrigar a reagir", "forçar a responder", "provocar", "suscitar uma resposta", mesmo que seja uma resposta negativa. A palavra de Deus é eficaz, sempre, e o poder do Faraó não é absoluto, mas limitado, porque não pode comandar a natureza e, portanto, não tem o direito de privar o povo de Israel de sua liberdade.

 

Ska analisa brevemente a construção do relato das pragas, identificando um agrupamento de nove, divididas em três grupos, com certa progressão. É seguido pela última, a décima. É dado a entender que o faraó recebeu todos os avisos de que precisava. O tema do endurecimento do coração continua sendo um tema difícil. À luz da mentalidade bíblica, entende-se que o principal problema “é saber se o Deus de Israel pode se fazer entender pelo soberano mais poderoso da época e se ele pode agir com total autonomia, independentemente do Deus de Israel e de suas exigências: "para isto te mantive, para mostrar meu poder em ti, e para que o meu nome seja anunciado em toda a terra" (Êx 9,16). Nada escapa ao poder e influência do Deus de Israel” (p. 59).

 

Algumas características particulares do relato das pragas deixam claro que elas têm uma lógica e uma coesão que se limita a cada história. "A mensagem está na música e não nas notas individuais da melodia", observa o estudioso (p. 60).

 

O terceiro tema examinado é o relato da sarça ardente e da fonte da rocha, portanto, a relação entre Deus e Moisés. Deus é o protagonista do todo o conjunto, mas Moisés é o diretor do êxodo. Não haveria êxodo sem a cena da sarça ardente e sem a intercessão de Moisés que também obtém a teofania de Êx 33 e 34.

 

Êx 3.1-4.18 narra a vocação de Moisés com suas cinco objeções. Portanto, não se narra a vida de um santo, mas o fato de que Moisés conquistou aquele papel não por sua vontade. O êxodo é obra de Deus, mas seu único instrumento é Moisés. Deus revela em parte a sua identidade a Moisés, como Deus dos patriarcas, Deus da história, Deus ligado à libertação do seu povo.

 

Êx 32-34 mostram que Israel recebe uma lei de YHWH, um conjunto de instruções e um estilo de vida. A palavra de Deus será o verdadeiro alimento do povo. Os governantes de Israel não poderão ignorar a Lei de Moisés. YHWH é o deus dos Patriarcas, o deus das promessas feitas aos antigos. A história tem uma continuidade, embora com pontos de cesura.

 

A teofania de Êx 33 completa aquela da sarça ardente. Deus se deixará entrever apenas de costas, porque "Ver Deus é seguir a Deus" (Gregório de Nissa). Deus está no caminho, precede Moisés e o povo e é caminhando atrás dele no caminho traçado por Deus que é possível "vê-lo pelas costas". A contemplação de Deus não pode ser separada da caminhada nas trilhas do deserto.

 

O Deus que passa à frente e precede é um Deus que perdoa (Êx 34,6-7). Só se pode ver Deus seguindo-o no caminho, sabendo que o perdão é parte constitutiva da relação estabelecida entre Deus e o seu povo.

 

O Novo Testamento recordará que o Deus de misericórdia e do perdão, lento na ira e rico em graça e fidelidade, é o Deus que enviou seu Filho ao mundo não para condenar o mundo, mas para salvá-lo por meio dele.

 

O quarto tema analisado diz respeito ao milagre do mar (Êx 14,1-31), que foi tema da tese de doutorado de Ska. São três as etapas do relato. Êx 14,1-14 acontece no palácio do faraó (discurso divino a Moisés, perseguição, reação assustada dos israelitas).

 

Êx 14, 15-25 narra o segundo discurso divino a Moisés com a ordem de estender a mão sobre o mar para separar as águas e convida os israelitas a entrar no mar. Os israelitas executam e os egípcios correm para a mesma passagem, mas ao amanhecer fogem.

 

Êx 14, 26-31 é a conclusão do episódio com a chegada do povo na outra margem do mar, a ordem dada a Moisés para estender a mão sobre as ondas para que o mar cubra o exército dos egípcios ainda no meio do mar. Todos morrem afogados. A passagem termina com os israelitas professando fé na obra de Deus em seu favor.

 

Ska se pergunta se o mar se abriu ou secou, dependendo das tradições literárias subjacentes. A versão do vento é a mais natural, enquanto a outra tem caráter milagroso, talvez inspirado na travessia do Jordão (Js 3, 16; cf. 4, 22-23). As duas versões concordam que Deus tem poder sobre a criação e que o poder do Faraó é limitado, e ele não pode vencer as forças da natureza. "O egípcio é um homem e não um deus, seus cavalos são carne e não espírito" (Is 31, 3). E é exatamente isso que se queria demonstrar” (p. 77).

 

Um tema recorrente no texto é também o do "medo/temor" (Êx 14,10.13.31). O povo está com medo, mas, no final, "temeu o povo ao Senhor, e creu no Senhor e em Moisés, seu servo" (14,31).

 

Êx 14, em última análise, descreve “uma experiência de fé. Mostra como o povo de Israel se liberta da escravidão libertando-se do medo de seus opressores egípcios e observando o poder do Deus criador, muito mais poderoso do que todos os faraós do Egito e seus exércitos. Mostra que é um caminho de ressurreição, atravessando o mar, à noite, de oeste a leste, passando da margem da morte e da escravidão para descobrir a margem da liberdade ao amanhecer” (pp. 78-79).

 

O quinto tema examinado debruça-se sobre os episódios do maná e das codornas, do pão e da carne, com a pergunta crucial feita pelo povo: "O Senhor está entre nós, sim ou não?" (cf. Êx 17,7).

 

Auxiliado por versos dos Salmos e o Deuteronômio, Ska destaca o fato de que Deus é capaz de alimentar seu povo no deserto, com ênfase na lei do shabbat. O relato visa mostrar como Israel "descobre" o shabbat no deserto. Algumas leis importantes são primeiro descobertas e testadas e depois decretadas. A experiência precede a legislação.

 

O Salmo 114,8 fala de um "Deus que transforma o penhasco em lago, a rocha em fontes de água". Ska aponta como a experiência de Moisés sobre a vida no deserto pode ter contribuído a encontrar água em lugares oportunos.

 

No deserto há também o inimigo a ser derrotado, Amaleque, que será lembrado em muitos textos bíblicos. Em Êx 17,14, Moisés é ordenado a escrever o evento da batalha e da vitória. É uma das primeiras alusões à escrita no Antigo Testamento.

 

É interessante o fato que Ska interprete o gesto das mãos levantadas de Moisés (cf. Êx 17, 11-12) não como expressão de oração - não há nenhuma invocação - mas como gesto de autoridade. O verbo usado em Êx 17,11 encontra-se em contextos onde se quer acima de tudo afirmar o próprio poder e liberdade (Êx 14,8, Nm 33,3; Is 26,11; Sl 89,14; cf. Nm 15, 30 onde agir "com a mão levantada" significa "agir com deliberação").

 

A construção do altar sela o evento vitorioso mais como um fato religioso do que como resultado de uma estratégia militar.

 

Nm 1–3 (cf. 9–10) narra outras peripécias da permanência de Israel no deserto. A intenção não é fornecer um relato rigoroso e detalhado dos acontecimentos, mas inscrever na memória de um povo uma série de lições baseadas no passado (cf. 1Cor 10, 6). As histórias têm caráter paradigmático e respondem às perguntas: quem pode fornecer água no deserto? Quem pode dar a vitória ao povo de Israel? Como agir em caso de necessidade? A quem recorrer em tais circunstâncias?

 

A tenda de Deus e a sua Lei

 

O sexto tema aprofunda a afirmação de YHWH de querer armar sua tenda entre os israelitas (cf. Êx 29,45). O estudioso lembra a escolha de Jerusalém como o lugar onde YHWH faz residir seu nome no templo (2Cr 6,6). Esta é uma certeza cantada em todo o Saltério (cf. Sl 27,4-5; 18,6-7; Sl 42.2-3 etc.). O Senhor ouve quem se dirige a este lugar – assim escreve Ska, que traduz literalmente, e não tanto neste lugar, CEI 2008 - é a segurança que anima a oração de Salomão. Se o nome de YHWH mora no templo de Jerusalém, conforme Ez 11,16 YHWH acompanha seu povo também no exílio: “Nas terras para onde foram serei por pouco tempo um santuário para eles”. YHWH não é apenas uma "divindade local" ligada a um templo. Segundo Ezequiel, Deus pode mover-se (cf. os capítulos sobre o carro do Senhor e sobre a Glória que se move para o exílio e depois volta para Jerusalém). A Davi, que quer construir-lhe um templo, YHWH recorda: "Andei em tenda e em tabernáculo" (2Sm 7,6).

 

O sétimo tema centra-se na lei, seja ela prescritiva ou descritiva. Ska se reporta ao que foi mencionado anteriormente e afirma que a lei do AT é mais descritiva do que prescritiva. Encontra sua plenitude e a mesma coerência no NT. Os códigos de AT não são exaustivos ou sistemáticos e não correspondem a julgamentos emitidos pelos juízes.

 

O propósito das leis é para o Ska teológico, isto é, para mostrar que uma verdadeira nação vive de acordo com suas próprias leis e não aquelas de outra nação. "Israel é uma nação, uma verdadeira nação e isso desde o início de sua existência, porque possui leis próprias que remontam à sua permanência no deserto, no monte Sinai" (p. 100).

 

Ter leis, e leis muito antigas, era uma prioridade para o antigo Israel, que precisava provar isso para si mesmo e para outras nações (cf. Dt 4, 8). O exemplo concreto da lei sobre o manto do devedor (cf. Êx 22,25-26) mostra o viés pedagógico da lei, mais que o jurídico.

 

As leis do Antigo Testamento estão imbuídas de grande sensibilidade humana. Dirigimo-nos para a consciência das pessoas, fazemos referência aos usos e costumes e o conjunto mostra como se quer educar para a justiça e para a solidariedade, inculcando em cada membro do povo os valores fundamentais de uma vida em sociedade.

 

Estamos no mundo da sabedoria, mais do que em um palácio da justiça. Muitas leis assemelham-se aos conselhos sapienciais (cf. Ec 4, 1-6) e Mt 5,25 se coloca na linha do AT quando convida a chegar a um acordo com o adversário antes de buscar um tribunal.

 

As leis do AT mostram um mundo mais privado do que público, onde vigorava o direito consuetudinário, que constituía a base concreta da justiça e servia para reprimir crimes ou resolver conflitos. O Código da Aliança fala dos problemas de agricultores e de criadores, enquanto a área de comércio está completamente ausente. As leis são reflexo da prática, e da prática de pequenos grupos que buscavam administrar a justiça no local, antes de recorrer à justiça oficial que dependia do rei.

 

As leis fornecem indicações, casos concretos resolvidos no passado e informações úteis para a resolução de casos semelhantes. "Fica, portanto, muito claro que o direito bíblico é mais descritivo do que prescritivo, pois apresenta casos concretos que servem de paradigma para a jurisprudência" (p. 105).

 

A teofania de Deus e o povo sacerdotal

 

O oitavo tema é constituído pela teofania do Sinai (Êx 19-20). Ne 9,13 lembra: "Você desceu ao Monte Sinai e falou com eles do céu". A teofania é apresentada através de elementos de uma tempestade de montanha muito impressionante (sons/trovões, relâmpagos, nuvem densa, fumaça, tremor, etc.). Não há referência a uma erupção, pois é afirmado que Deus desce no fogo (Êx 19,18). A descrição da tempestade tem sido muitas vezes ligada à manifestação de Deus (Sl 18,8-15; 68,8; 77,18-19; 97,3-5).

 

A teofania do Sinai utiliza o imaginário bíblico e oriental ligado à manifestação da divindade no temporal para introduzir a ideia de um Deus cuja "voz" - o mesmo termo usado para "trovão" em hebraico - comunica suas vontades ao seu povo. YHWH não apenas demonstra seu poder como o Baal de Ugarit (mundo natural), mas revela sua vontade (mundo cultural) falando com Moisés e depois com seu povo.

 

A teofania do Sinai é um texto que foi revisado várias vezes. A teofania sela com sua autoridade toda a legislação fundamental de Israel. O texto foi reelaborado, em especial para introduzir o Decálogo, que originalmente não fazia parte dessa perícope.

 

Os escribas tiveram a tendência a combinar os relatos do Êxodo com a versão dada pelo Deuteronômio. O Pentateuco Samaritano acentua essa tendência.

 

Os escribas supõem que, no Deuteronômio, Moisés tenha relatado exatamente o que aconteceu nos quarenta anos passados no deserto. A legislação de Israel é introduzida pelo Decálogo. Deve ser lembrado que o Decálogo é comunicado diretamente ao povo pelo próprio Deus. Em Israel, portanto, o direito tem um fundamento divino e não humano/régio, ainda que passe pela mediação de Moisés. "A justiça e o direito são a base do teu trono" recorda Sl 89,15 e Sl 97,2 em referência a YHWH. Isso remove o direito à instituição fundamental no antigo Oriente Próximo, aquela da monarquia.

 

O Decálogo, com seus imperativos, é também precedido pela lembrança do evento histórico da libertação de YHWH da escravidão no Egito (Êx 20,2). A autoridade de YHWH sobre seu povo decorre dessa ação salvífica que se torna a pedra angular da existência de Israel. "A experiência do êxodo, da liberdade, precede todos os preceitos da Lei e sem ela as exigências da Lei perdem o sentido" (p. 113).

 

O Decálogo lembra também que a existência de Israel não depende de uma instituição como a monarquia ou o culto do templo ou muito menos de alianças com outras potências, ou do apoio de um forte exército. A existência de Israel depende sobretudo de uma lei de origem divina e não humana. Por isso as exigências de Deus precedem os mandamentos sociais. O verdadeiro garantidor da lei em Israel é o próprio Deus.

 

O Decálogo protege muitos valores humanos, fundados, porém, no absoluto: o direito ao shabbat, o respeito pelos pais, a sacralidade da vida e da liberdade da pessoa, a sacralidade do casamento, o respeito por tudo o que diz respeito à dignidade da pessoa e às condições de uma vida digna. Segundo Ska, o mandamento “Não roubarás” seria melhor traduzido como “Não cometas sequestros”, ou seja, não se aposse de uma pessoa para vendê-la como escrava.

 

A teofania do Sinai - em conclusão - “lança os alicerces da existência de Israel. Esses alicerces são o direito e a justiça e são colocados pelo próprio Deus. Estamos então no mundo do absoluto e não do relativo. A teofania do Sinai, que serve de enquadramento a essa proclamação, descreve, segundo a tradição, uma tempestade que permite a Deus fazer ouvir a sua voz e proclamar as suas “palavras”, as suas vontades, ao seu povo” (p. 115).

 

A aliança

 

O último tema tratado é o da aliança. A perícope examinada é a de Êx 24, 1-11, com dois relatos interligados. Os v. 1-2 e 9-11 narram a ascensão ao Sinai de Moisés, Aarão e seus dois filhos e setenta anciãos. Eles comem uma refeição na presença de YHWH, sem morrer. É uma cena da investidura de duas instituições fundamentais do antigo Israel: o sacerdócio de Aarão e os chamados "anciãos".

 

Ver a Deus” aqui significa fazer parte da corte celestial. Um verdadeiro profeta é alguém que pode "ver a Deus", aparecer à sua presença e assistir ao conselho divino. São Paulo menciona aqueles a quem Cristo ressuscitado apareceu (cf. 1Cor 15, 3-8). A refeição tem a mesma função, que é poder participar do círculo dos íntimos (de um rei, de Deus, etc.).

 

Êx 24.1-2.9-11 mostra, portanto, uma cena de investidura, o momento solene em que os grandes dignitários são admitidos à presença do Senhor, o único verdadeiro soberano de Israel. Deste modo são legitimamente investidos do poder que o leitor conhece bem e que também é atestado no NT (o Sinédrio é composto pelos sumos sacerdotes e pelos anciãos: Mt 21,23; 26, 3.47; 27,1.12.20; Atos 4, 23; 23,14; 25.,5). A autoridade suprema de Israel é assim apresentada aqui como datando da época da fundação de Israel no deserto do Sinai.

 

Em Êx 24, 3-8 todo o povo está presente e assiste a uma "liturgia da aliança" em dois tempos. Primeiro há uma "liturgia da palavra", onde Moisés lê a palavra que Deus lhe transmitiu, a põe por escrito e é aprovada pelo povo. Moisés coloca as "palavras" por escrito.

 

A segunda parte da cerimônia é constituída pela "liturgia do sangue". O Altar, que representa Deus, é aspergido com o sangue dos touros sacrificados. Moisés lê o pergaminho onde alguém confiou todas as "palavras" do Senhor. O povo se compromete a colocá-las em prática e ouvi-las. As "palavras do Senhor" são agora encontradas no livro escrito pelo próprio Moisés. O povo se compromete a ouvir as palavras do Senhor escritas no livro, toda vez que ele for lido. Uma segunda aspersão de sangue, desta vez sobre o povo, sela a aliança entre Deus e o seu povo, com base nas "palavras do Senhor" escritas no livro (Êx 24,8).

 

A liturgia da palavra ou do livro coloca o leitor diante de sua própria situação. Ele deve formular diante do livro que tem nas mãos a mesma resposta que o povo deu no Sinai, no início de sua história.

 

A liturgia do sangue pareceria ter a consagração dos sacerdotes como paralelo mais imediato (cf. Êx 29,12, 16.20-21; Lv 8,15.19.23-24.30: Arão e seus filhos).

 

O sangue é sagrado e serve para consagrar. Em Êx 24,8 todo o povo é consagrado e assim se torna "um reino de sacerdotes e uma nação santa" como prometido por Deus em Êx 19,6. As duas expressões definem Israel com muita precisão. Como para os sacerdotes, também Israel é a nação escolhida por Deus entre todas as outras para estar ao seu serviço particular (cf. Êx 19,5). Deus é soberano sobre toda a terra, mas tem pessoas e entidades a seu serviço particular e pessoal, como o rei possui uma "propriedade real" e um conselho de ministros, além do pessoal em serviço no palácio.

 

Com o rito do sangue, Deus estabelece uma relação vital, existencial, entre ele e seu povo. "A vida está no sangue" afirma de forma lapidar Lv 17,11. “Deus faz de Israel uma nação consagrada ao seu serviço, uma 'nação santa'. A existência de Israel como povo de Deus agora depende dessa relação. Disso deriva a condição sine qua non dessa relação: observar a Lei entregue por escrito por Moisés” (pp. 121-122).

 

Êx 24, 3-8 une assim dois elementos fundamentais da religião de Israel, um ritual ligado ao sangue e outro ligado ao livro. O livro contém o ensinamento que permitirá a Israel ser fiel à sua vocação como "propriedade particular" (Êx 19,5), de reino de sacerdotes e de nação santa (Êx 19,6) ao serviço do seu Deus.

 

O sangue, ao contrário, é o elemento de culto que consagra o povo para torná-lo um povo sacerdotal, cuja primeira função é "o serviço de Deus". Isso “significa que todos os membros do povo de Israel participam desse sacerdócio e que todas as atividades do povo fazem parte da liturgia, do serviço divino. Grande parte disso será exposta de maneira detalhada nos livros posteriores, especialmente no de Levítico” (p. 122).

 

Ao final de sua obra (pp. 123-134) Ska analisa a recepção do livro do Êxodo, no AT, no NT, no judaísmo, na exegese cristã, no Alcorão e sintetiza a relação entre o livro do Êxodo e a cultura ocidental (literatura, pintura e escultura, música e cinema) – atenta particularmente ao nascimento de Moisés, ao Decálogo e à passagem do Mar Vermelho.

 

A bibliografia (pp. 151-154), separada por temáticas e períodos históricos, conclui o volume, que resume num tom fácil e documentado um livro bíblico fundamental para a fé judaica e cristã. O autor guia o leitor com mão segura e linguagem simples e concisa ao longo de um texto que profundamente ele estudou, ensinou e difundiu em nível internacional.

 

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