23 Novembro 2024
"A resiliência humana - capaz de ativar o poder empático daquelas cordas de simpatias com as quais o homem toca as melodias 'divinas' da amizade, dos afetos, da fraternidade e da solidariedade - não será bem-sucedida apenas porque o homem amadurece na 'conscientização', na consciência de conseguir dar conta, cresce 'na sabedoria', 'no conhecimento': não se pode ser tanto 'pelagianos', paradoxalmente, quanto 'gnósticos' depois de dois mil anos de cristianismo", escreve dom Antonio Staglianò, bispo emérito de Noto e presidente da Pontifícia Academia de Teologia, em artigo publicado por Settimana News, 21-11-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
A pergunta feita pelo jovem niilista Hipólito ao Príncipe Mychkin - o protagonista de O Idiota, de Dostoievski - é intrigante: “é verdade, Príncipe, que certa vez você disse que o mundo será salvo pela beleza? [...] Que beleza salvará o mundo?”. Na verdade, não existe beleza autêntica que não acerte as contas com o sério drama da imensa dor do homem na história, do escândalo do sofrimento do inocente, do fato incontestável de que o homem está condenado à morte. A beleza pode resplendecer no mal, na desordem, na indiferença? Que possibilidade o esplendor da beleza tem de ser percebido nas formas históricas do negativo e do mal?
Toda filosofia da beleza deve enfrentar esse questionamento perturbador que surge das profundezas da ambiguidade radical da beleza, na condição trágica do homem. A filosofia da beleza (mas também toda sabedoria humana, antiga e nova) deverá, sem negligência, deixar-se interpelar pela sabedoria da resposta dada pela fé cristã à pergunta de Hipólito - “que beleza?”: “a beleza do ressuscitado não é a beleza sedutora, mas não madura da inocência inviolada, da virgindade inocente. Ela passou pela paixão da fidelidade e pelo fogo da prova” (P.A. Sequeri). E a prova de uma solidariedade “a alto preço”. Passou pelas dores de parto: aquelas do segundo nascimento, com a morte como parteira.
Jesus de Nazaré, crucificado e ressuscitado, é a beleza que já salvou o mundo inteiro, “de uma vez por todas”. Sem confessar isso, como se poderia continuar sendo “cristãos”? Ele é o Verbum abbreviatum, o Todo no fragmento. Ele também é a manifestação da Glória de Deus, na história paradoxal daquele que, para dar testemunho da verdade, cumpre todo o “seu” bem e é crucificado por “seu” amor, mostrando assim, desfigurado (sem decoro, nem beleza, como o Servo de JHWH de Isaías), a beleza do Deus-ágape que o torna “o mais belo dos filhos do homem”. Sem uma mediação cultural (= crítica) desse conhecimento, como se poderia continuar sendo “teólogos” (católicos)?
Hipólito deve entender que a beleza que salva tudo e todos (e também salva a beleza de toda mistificação superficial) está precisamente no gesto de amor com que o príncipe Mychkin o recebeu em sua casa: é a hospitalidade generosa (idiotamente expressa, ou seja, na genuinidade humana que não pensa tanto em si mesma, mas na dor dos outros) que manifesta o amor. “Esse” amor é a beleza que salva, tornando-se como a ‘matriz’ de qualquer outro amor que possa conter em si a salvação para os seres humanos. Por isso, Mychkin, o idiota, é uma figura de Cristo que age levando o dom da vida até a morte, a fim de libertar, tirar da miséria existencial e livrar do medo da morte. O príncipe é a figura enigmática do Inocente que sofre por amor de todos (cf. R. Guardini). A hospitalidade cristã é então o “onde” Deus sempre ressuscita, na caridade que se faz carne.
“O que realizamos na vida ecoa na eternidade”, é uma bela frase que o comandante, no filme - Gladiador -, grita solenemente a seus soldados, prontos para entrar em batalha e talvez perder a vida. Sem problema! Eles se encontrarão felizes caminhando nos Campos Elíseos. Quase como os vikings que desejavam morrer em batalha para chegar ao Valhalla. No entanto, nós sabemos que a guerra é desumana, porque destrói e mata seres humanos. E também porque é “contranatural”: “agir com violência é contrário à natureza da alma e de Deus”, disse Bento XVI na tragicamente famosa palestra de Regensburg. Os seres humanos - criados à imagem e semelhança de Deus - são “imbuídos de amor”, as informações originais que constituem o homem e o determinam são “pacíficas”, “solidárias”, “fraternas”.
As cordas esticadas no corpo dos seres humanos pelo criador são cordas de simpatia e, no entanto, eles se odeiam, guerreiam e se transformam em mercadoria. Foi o latino Horácio quem estabeleceu: video meliora proboque, deterioria sequor (vejo as coisas boas e as aprovo, sigo as piores). Há uma fenda aviltante, uma rachadura mortificante, um fundo de dor, de conflito que obscurece a luz, quase um “nada que engole as coisas” ou um buraco negro que devora tudo que se aproxima. E, no entanto, como Leonardo Cohen argumenta em seu Hino: “Há uma rachadura em tudo, e é por ali que entra a luz”.
A resiliência humana - capaz de ativar o poder empático daquelas cordas de simpatias com as quais o homem toca as melodias “divinas” da amizade, dos afetos, da fraternidade e da solidariedade - não será bem-sucedida apenas porque o homem amadurece na “conscientização”, na consciência de conseguir dar conta, cresce “na sabedoria”, “no conhecimento”: não se pode ser tanto “pelagianos”, paradoxalmente, quanto “gnósticos” depois de dois mil anos de cristianismo. Portanto, Gaudete et exsultate adverte contra os dois perigos, até mesmo chamados de “inimigos” da santidade: primeiro o gnosticismo e depois o pelagianismo. A espiritualidade cristã é a raiz última de toda ação caritativa: ela não se define em termos de um emocionalismo inconcludente ou de uma busca subjetiva de interioridade e de profundidade do humano. Muito pelo contrário, a espiritualidade cristã é a “vida segundo o Espírito”.
O saber da fé cristã - aquele da Revelação de Deus em Cristo, o eterno Filho de Deus em carne humana, a eterna sabedoria do Pai que age no amor do Ressuscitado, enviando, junto com o Filho, o Espírito Santo (Filioque) para redimir todos os seres humanos do mal (“livrai-nos do mal”, como rezamos) - fala da existência humana como luta e agonia e fala de um necessário “auxílio da graça” para que o cristão vença suas batalhas contra o egoísmo, a soberba da vida, a avareza e o apego ao dinheiro (“a cobiça das coisas”, que é a raiz de todos os males, como diz Jesus, e a razão de todas as guerras, como Emanuele Severino afirma ao reelaborar o ditado heraclitiano - “a guerra é a origem de todas as coisas” - em “as coisas são a origem de todas as guerras”).
Ora, a “graça” não é uma espécie de modelo externo ao qual se referir (como afirmavam os pelagianos) ou uma admoestação autoritária, quase um conselho externo para ajudar o homem em sua luta contra o pecado (pessoal e estrutural). O poder de identificação - de empatia, no sentido fenomenológico de Edith Stein - inscrito nas fibras mais profundas dos seres humanos, é reativado com a ajuda da “graça incriada”, o Espírito Santo, “amor derramado” no coração humano, segundo São Paulo, que age na essência da alma humana e a converte à caridade. É essa existência no Espírito que é o fundamento da espiritualidade cristã, que vive, agora e aqui (hic et nunc) da fé operante na caridade, porque corresponde livremente (isto é, responde em liberdade) à caridade que grita de dentro do coração, para que “se alarguem os espaços do amor” (=dilatentur spatia caritatis, Santo Agostinho).
Não é por outra razão que, na Igreja Católica, os santos são canonizados: eles são a “prova provada” de que a graça de Cristo está à obra, de que Deus não é uma vaga ideia de infinito que envolve tudo em expansão, mas é um Pai que fala e age, que entra na história dos seres humanos, nos eventos históricos. A vida do santo testemunha isso para qualquer pessoa que tenha olhos para olhar sem preconceitos. É esse “positivismo teológico” (J. Ratzinger) que faz a diferença entre a espiritualidade cristã e qualquer outra espiritualidade.
Se isso não é uma “falácia teológica” (e não é), por menos do que isso não poderíamos nos chamar de “cristãos católicos”: seguir Cristo “na carne” supera a possível deriva do intimismo e da alienação religiosa. João Paulo II, na Novo millennio ineunte, havia afirmado peremptoriamente isso: “há que rejeitar a tentação duma espiritualidade intimista e individualista, que dificilmente se coaduna com as exigências da caridade, com a lógica da encarnação” (n. 52).
O fato de ter inventado uma fé em si mesma, consistente e autônoma - como adesão intelectual às doutrinas - sem as obras da caridade, fez com que o catolicismo perdesse o “esplendor da graça cristã”, esvaziando-o de cristianismo e, portanto, tornando-o espiritualmente não mais interessante. É esse “catolicismo convencional” que é espiritualmente inadmissível, como o bilhete devolvido ao remetente de Ivan Karamazov. A obra que ecoa pela eternidade e destina à alegria do paraíso é a da misericórdia corporal (dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, vestir os nus...) investindo - como bons samaritanos - toda a sensibilidade participante “naturalmente humana” na dor e no sofrimento dos outros.
O ato de caridade é interior e não extrínseco ao ato de fé. A fé católica é testemunhal, caso contrário, seria “fé morta” (São Tiago). E, no entanto, também é “verdade teológica” que “se pode dar todos os bens aos pobres ou até mesmo entregar o corpo para ser queimado” sem ter a caridade. Parece até que se possa fazer milagres, mas sem a caridade nada ecoa na eternidade, para o Paraíso, palavra de Jesus. Isso também pertence ao conhecimento cristão da fé, que a teologia como “ciência” deve saber mostrar em sua inteligência e sensatez humana. Menos do que isso, como se poderia continuar sendo teólogos (católicos)?
A consciência crente acolhe o conhecimento da Revelação de Deus sobre o mundo, o homem e Deus: com relação a esse conhecimento, a consciência não cria nada, mas é receptiva, em toda liberdade. Trata-se de uma liberdade “ativa” da consciência, porque ela se coloca no ato de conversão para acolher a Palavra de Deus tal como ela é, “Palavra de Deus e não palavra de homens”. A fé é dogmática, haure seu conhecimento do crer, porque a autocomunicação de Deus ocorre dentro das “palavras e fatos” de homens. Portanto, o cristão católico “sabe o que crê” e “crendo sabe”: há uma longa tradição filosófica à qual podemos nos referir, até a Katholische Weltanschauung de R. Guardini (concepção global católica da realidade). É claro que não se deve ceder à armadilha iluminista que, forjando a própria razão como única fonte de conhecimento, relega a fé à mitologia antiga, depois de ter julgado toda a sabedoria do mito como se fosse uma fábula.
Portanto, existem muitos teólogos por aí - que se autodenominam teólogos por possuírem títulos de doutorado das universidades eclesiásticas católicas e não católicas (basta pensar na Alemanha, onde a teologia está presente nas universidades estatais) - que permaneceram (talvez até conscientemente) presos no metaverso iluminista que opõe preconceituosamente “crer e saber”, separa violentamente “fé e razão”, acreditando (como cientistas) ter o dever com a própria razão de desconstruir e manipular ou até mesmo eliminar - como se fossem um legado do passado antigo ou de uma linguagem tradicional obsoleta - os dogmas da fé: e então, Jesus de Nazaré é ou não é “Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado e não criado da mesma substância do Pai”? É Jesus de Nazaré - o encarnado há dois mil anos no ventre de Maria (Theotokos) - “antes de Abraão, antes de Adão, antes que o mundo existisse”? E como a afirmação de Pedro sobre a singularidade da salvação em Cristo poderia ser uma “falácia teológica” sem pular ao mesmo tempo a fé em Jesus, a Palavra do Pai, Deus com Deus?
A fé cristã sabe muito bem que “Deus ninguém o viu e ninguém pode vê-lo, mas Jesus de Nazaré, o Filho unigênito de Deus, veio para nos dar a explicação”. A singularidade da exegese sobre Deus - a revelação da face de ágape, somente e sempre amor, como mistério escondido nos séculos e agora “esclarecido” - é feita com “palavras e gestos” intrinsecamente conectados. Portanto, não é comparável a nenhuma sabedoria que a mente de um homem tenha podido conceber. Como o Evangelho é a pessoa de Jesus, a revelação cristã não pode sofrer uma interpretação intelectualista, como se fosse um ensinamento doutrinário de sabedoria, semelhante à de Buda ou Gandhi. É o evento do impacto “corpo a corpo” com o Logos de Deus, a Sabedoria do Pai.
Sem pensar criticamente sobre isso, como se pode continuar sendo teólogos (católicos)? E se, ao dizer isso - dado o contexto cultural de secularização e de exculturação do catolicismo - alguém se sentir ofendido ou escandalizado, então pode-se, com toda a humildade, “pedir desculpas ou perdão”, ou usar a frase ritual Absit iniura verbis. O teólogo católico não pode ficar calado, mesmo que o clima cultural seja adverso e hostil. Seu testemunho não negligente do conhecimento da fé está em jogo, enquanto ele permanece aberto ao diálogo com todos e está pronto para um confronto dialético com toda sabedoria, seja filosófica ou científica, religiosa ou mitológica.
Esse conhecimento - que é um sàpere sapido, gostoso e fecundo na vida, todo sabor - não pode ser diluído ou reduzido, deitado como se estivesse no leito de Procusto das instâncias legítimas da cultura (como fez Ário) ou de exigências inquestionáveis da razão (como fizeram Abelardo ou Berengário) ou de uma aculturação do especialista em teologia que considera - por exemplo, com F. Nietzsche e outros - São Paulo responsável pela invenção do cristianismo, com uma falsificação substancial da mensagem de Jesus, que depois, em vez disso, extrapolada do contexto neotestamentário, se descobriria “papale papale” já nas antigas sabedorias gregas e romanas, ou nas religiões orientais. Aqui está o veredicto dos sofiólogos: o que Jesus teria dito de novo? Nada! Um teólogo católico que não focaliza a “singularidade de Jesus Cristo” e a “diferença cristã” (entendida também como differAnce, à la Derrida), como poderia continuar sendo “teólogo”? E isso não é exclusivismo de forma alguma! Porque um saudável “cristocentrismo teológico” dispõe a espiritualidade cristã a ser capaz de discernir e examinar os “bens” e as “riquezas” ou tesouros do Logos em todas as tradições religiosas e até mesmo nas teosóficas. O verdadeiro teólogo, porém, que pratica uma “teologia teológica” (W. Kasper) “julga” tudo na sabedoria de Cristo, o ágape que revela o verdadeiro rosto de Deus-amor, cuja beleza brilha nas ações do homem, se é verdade que “a Glória de Deus é o homem vivo” (Santo Irineu). O cristocentrismo, de fato, não é cristomonismo, e a teologia conciliar deixou isso bem claro. A mensagem da fé é destinada aos seres humanos, para que o humano do homem possa ser libertado e salvo. A espiritualidade do crente “conhece” o potencial de renovação antropológica própria da experiência de fé. A verdade liberta, a adesão ao Evangelho é redenção dentro da história: a sequela Christi permite o renascimento do homem em sua verdade e beleza últimas. Assim, o homem verdadeiro - ou seja, o homem novo de São Paulo, portanto, o cristão - mostra a qualidade bela de ser humano, verificando-a diante da morte, aceita em absoluta liberdade por amor: a têmpera do homem é essa solidariedade participante à dor e ao sofrimento dos outros que leva o dom da vida até morrer por amor.
Menos do que isso , a teologia católica não serve à missão da Igreja, cuja evangelização tem o objetivo de sempre. Aquele de recriar uma “mentalidade cristã” em todos os âmbitos da vida, superando o drama contemporâneo da separação entre Evangelho e vivência cotidiana, entre fé e cultura (cf. Evangelii gaudium, que retoma diretamente a Evangelii nuntiandi). O pressuposto subjacente é a convicção crente de que o conteúdo de verdade do cristianismo, manifestado no testemunho do amor, é existencialmente capaz de promover e fazer avançar a cultura da liberdade do homem, de cada homem, estimulando a sua criatividade.
Menos do que isso, o teólogo não serve como “teólogo” para a anunciação do Evangelho e talvez continue a se chamar de “teólogo” como até mesmo Platão era chamado por sua teoria sobre a Ideia do Bem, ou Aristóteles pelo Motor Imóvel, ou também os físicos naturalistas (conhecidos como pré-socráticos) que investigam o Arqué de todas as coisas. Hoje em dia, até mesmo um Cacciari que, como filósofo, investiga o Princípio ou concebe o fundamento de sua “Metafísica concreta” como “abertura abissal” poderia ser chamado de “teólogo”. Ainda mais Cacciari que, de acordo com o Cardeal Martini, fala “como um Padre da Igreja” e trabalha filosoficamente sobre a Encarnação como evento, melhor do que alguns que se denominam teólogos. No entanto, se a fenomenologia de Hegel não parece se encaixar no campo da teologia - dada a atual consciência epistemológica da teologia católica - então nem mesmo os filósofos acima mencionados são “teólogos”, no máximo são “teiólogos” (eu preferiria no lugar de “sofiólogos”), investigadores do mistério, do Theiòn, do “divino”.
De fato, a Teologia poderia, no futuro, desenvolver-se como uma disciplina “ponte” para um diálogo interdisciplinar, multidisciplinar e transdisciplinar entre a teologia e todos os outros conhecimentos críticos, como almejava a Carta Apostólica do Papa Francisco de 1º de novembro de 2023 Ad Theologiam promovendam: “A transdisciplinaridade enquanto colocação e fermentação de todos os saberes dentro do espaço de Luz e Vida oferecido pela Sabedoria que dimana da Revelação de Deus” (Constituição Apostólica Veritatis gaudium, Proem, 4c).
Deriva disso a árdua tarefa para a teologia de ser capaz de valer-se de novas categorias elaboradas por outras formas de conhecimento, a fim de penetrar e comunicar as verdades da fé e transmitir o ensinamento de Jesus nas linguagens de hoje, com originalidade e consciência crítica” (AThP n. 5).
É um serviço que a boa teologia deve oferecer à proclamação do Evangelho para que todos possam experimentar a alegria de sua beleza que salvou o mundo.
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A espiritualidade cristã ente teologia e teiologia. Artigo de Antonio Staglianò - Instituto Humanitas Unisinos - IHU