Teologia e traição: historicismo anti-historicista

Foto: Pixabay

10 Setembro 2024

Os teólogos e as teólogas "realmente se dão conta do potencial crítico que se adensa as proposta do Papa Francisco quando se refere à importância da inter e transdisciplinaridade. O papa está prospectando aqui uma reescrita “epistemológica” da teologia, e não uma remodelação de fachada", escreve Giuseppe Guglielmi,  presbítero e professor de Teologia Fundamental na Faculdade de Teologia da Itália Meridional, seção San Luigi, em Nápoles, em artigo publicado por Settimana News, 07-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.

Segundo ele, "com referência ao debate epistemológico e ao trabalho interdisciplinar, digamos desde já que a teologia, se não quiser viver na e de sua “miséria”, deve entrar em verdadeiro diálogo não só com a metodologia histórica contemporânea, mas também com as pesquisas da linguística e da semiótica no que diz respeito ao estudo das regras que presidem as formações discursivas".

 "Reconhecer o próprio historicismo - afirma o teólogo - seria um ato de honestidade: significaria evitar a tentação do poder, para acolher o convite de viver o Evangelho em companhia das mulheres e dos homens de hoje".

Eis o artigo.

Entro no diálogo suscitado pelos interessantes artigos de Dianich, Neri e Grillo publicados em SettimanaNews. Acredito que esses colegas colocam duas questões no centro do debate teológico: a historicidade do fato cristão em relação a uma concepção metafísica/objetivista do mesmo (geralmente combinada com uma pretensa linearidade de seu desenvolvimento); a historicidade de seus traidores, incluindo o magistério hierárquico. Essas são questões que trazem implicações epistemológicas de base e que, em minha opinião, devem ser discutidas e aprofundadas se não quisermos fazer da teologia “a pior coisa imaginável, a caricatura de si mesma”, para retomar uma citação de K. Barth, que Grillo traz no final de seu artigo.

Não me parece exagerado dizer que essas questões se cruzam com as solicitações que o Papa Francisco dirigiu aos teólogos por ocasião da aprovação dos novos estatutos da Pontifícia Academia de Teologia. O papa escreve: “A abertura ao mundo, ao homem na concretude da sua situação existencial, com os suas problemáticas, as suas feridas, os seus desafios, as suas potencialidades, não pode, no entanto, reduzir-se a uma atitude ‘tática’, adaptando extrinsecamente conteúdos já cristalizados a novas situações, mas deve impulsionar a teologia a um repensamento epistemológico e metodológico” [1].

Diante dessas palavras, pergunto-me francamente se os próprios teólogos, além de exaltarem como slogans algumas citações do Papa Francisco (uma das quais é a importância da inter e transdisciplinaridade [2]), realmente se dão conta do potencial crítico que se adensa nessas expressões. O papa está prospectando aqui uma reescrita “epistemológica” da teologia, e não uma remodelação de fachada. De minha parte, tentarei aqui apenas tocar brevemente nas duas questões agora mencionadas, acolhendo assim o convite que o Papa Francisco dirigiu aos teólogos quando falou da tarefa de “revisitar e requestionar continuamente a tradição” [3].

A semente e a espiga?

A primeira questão diz respeito ao status do fato cristão ou Evangelho[4] e de sua transmissão. A esse respeito, as ciências sociais nos lembram que a tradição deve ser questionada a partir da consciência de que estamos lidando com um fenômeno entrelaçado com uma construção cultural e social (mesmo quando é referida a ela um sentido polêmico) e que, por essa mesma razão, é pode colocar em circulação ambições, projetos e impulsos. Infelizmente, como Grillo escreve em seu artigo, “uma autocompreensão rigidamente antimodernista da Igreja Católica gera paralisia da tradição e traição de sua própria identidade”.

Entre as várias formas de paralisia está aquele dispositivo que eu denomino com a expressão essentia involvit existentiam, ou seja, quando o Evangelho se dá como aquela verdade que, pelo menos em sua essência e/ou significado primordial, resulta agora definida e absoluta (separada).

Em coerência com essa abordagem, poderíamos dizer que a semente (verdade) de fato precisa do solo (história), mas simplesmente para se tornar o que já é. Na prática, a vida humana (cultura, sociedade) é o palco onde é encenada uma verdade de outra forma conhecida; portanto, ela nunca pode se tornar o lugar por meio do qual algo “acontece”. Nesse ponto, entretanto, é preciso fazer a pergunta: por que devemos nos colocar à escuta do que o Espírito sugere aos crentes na história? O que devemos discernir? Não seria mais coerente visar à aplicação de um conjunto de doutrinas, de modo que a experiência do crente se encaixe em um sistema pré-pronto?

Por outro lado, é nesse dispositivo que se constrói uma certa concepção da tradição cristã [5] (admiravelmente expressa em alguns documentos magisteriais), que, graças a essa premissa, pode pular a tarefa (para usar a expressão de R. Koselleck) de elaborar uma “semântica dos tempos históricos”.

E assim, conceitos como desenvolvimento e evolução do dogma, progresso doutrinário, etc., tomam o viés de um “continuísmo” a todo custo (inclusive o de ocultar as descontinuidades e de deslocar, por meio de artifícios retóricos, determinados nós centrais para o futuro da vida da Igreja). Eu acrescentaria que, se essa abordagem for usada, o método teológico a ser empregado só poderá ser aquele simplesmente sistemático. Para esse fim, o tratado ou o manual teológico se revelarão os aliados mais eficazes [6].

Observar a batalha de um ponto de vista superior?

Precisamente com referência ao debate epistemológico e ao trabalho interdisciplinar, digamos desde já que a teologia, se não quiser viver na e de sua “miséria” [7], deve entrar em verdadeiro diálogo não só com a metodologia histórica contemporânea, mas também com as pesquisas da linguística e da semiótica no que diz respeito ao estudo das regras que presidem as formações discursivas.

Em suas investigações, o teólogo é, portanto, confrontado com a tarefa de considerar quem fala (quem assume a responsabilidade pelo enunciado), de onde fala (o lugar), que tipo de escrita produz. De fato, as ciências sociais modernas nos dizem que não existe nenhum ponto de vista universal fora da mistura das perspectivas, nenhuma voz que não venha de um lugar, nenhum enunciado que não seja fruto de uma construção.

Mas esse é precisamente o impasse do qual o magistério e uma certa teologia gostariam de se esquivar. A esse respeito, já em 1973 (ou seja, nem mesmo uma década depois do Concílio Vaticano II), a declaração Mysterium Ecclesiae da Congregação para a Doutrina da Fé sustentava que as verdades do magistério sagrado (interessante o uso do plural, em consonância com uma concepção doutrinalista e teórico-instrutiva da revelação!) e as fórmulas dogmáticas com as quais a Igreja ensina “se distinguem das concepções mutáveis próprias de uma época particular e podem ser expressas prescindindo delas” [8].

Essa referência (mas haveria outras) mostra efetivamente o duplo nível em que se movem algumas posições magisteriais e teológicas: “anti-historicistas” em sua exposição externa, “historicistas” em suas motivações internas [9], por serem estreitamente ligadas ao contexto histórico em que surgiram e ao qual entendem responder.

Apenas para dar alguns exemplos, podem ser citadas a insistência sobre a definitividade de algumas doutrinas que se gostaria de derivar de necessidades históricas e/ou de razão; uma certa leitura da lei natural posta em contraposição à autonomia do sujeito; a reproposição de uma harmonia entre fé e razão (esta última sempre no singular); a insistência sobre a continuidade a todo custo da história da Igreja e de suas posições doutrinárias; as declarações de um non possumus em relação a algumas questões eclesiais centrais, etc.

Ora, esses temas, em suas intenções de base, começam a se impor a partir de um determinado momento histórico[10], ou seja, quando a Igreja começa a perceber várias mudanças na sociedade ocidental: descristianização, perda do peso político das Igrejas na sociedade, autonomia da ciência, etc. Diante dessa situação, a hierarquia eclesiástica percebe o temor de perder sua ascendência/poder sobre a sociedade e responde elaborando uma série de condenações e aversões a tudo que não passa mais pelo seu controle. Essa situação aumentou no período pós-conciliar, ou seja, em um contexto em que o fim da cristandade se tornou um dado adquirido.

Portanto, o magistério, hoje como ontem, assumiu uma “postura” histórica particular. No entanto, e aqui reside o problema, ele não aceita ser colocada em um lugar (Ocidente), ser-lhe atribuída uma certa linguagem e uma teologia construída sobre suportes metafísicos e ontológicos. Pelo contrário, ela ainda pretende aparecer como aquele órgão universal, por não estar sujeito a particularidades e, portanto, coextensivo a uma verdade absoluta (ou seja, livre de qualquer contaminação).

Daí seu “anti-historicismo” nas asserções externas. Tal intolerância do Magistério em ser situado (ou querer se situar) em um âmbito regional/prospectivo pode ser vista na afirmação da Declaração da Congregação para a Doutrina da Fé Donum veritatis (1990), que estigmatiza como relativista a concepção teológica segundo a qual “as intervenções magisteriais teriam a sua origem em uma teologia entre muitas outras, enquanto nenhuma teologia particular pode ter a pretensão de impor-se universalmente.” [11].

Além disso, para apresentar o ensinamento magisterial como compacto, apesar de numerosos séculos de história, vários documentos magisteriais, ao lado de uma repetida menção à assistência do Espírito Santo [12], muito semelhante a um agente capaz de blindar a Igreja contra as intempéries e as durezas da vida, operam uma exegese “extensiva” [13] - como escreve Ruggieri - do magistério exposto na LG 25, de modo a dilatar sua normatividade em campos sempre mais amplos. Ora, ninguém nega que a tarefa do magistério é dirigir-se a toda a Igreja. Essa tarefa, porém, pode ser realizada declarando as próprias premissas particulares (perspectivismo) e, assim, tentando realizar uma universalização do próprio ensinamento [14], ou considerando-se o eco de uma verdade universal (no sentido de universalismo) que não conhece contextualidade, por ser isomórfico a uma verdade que se desdobra acima das particularidades.

Não tenho intenção de concluir o que apenas esbocei, graças principalmente à veracidade das intervenções dos colegas que me precederam. Vou encerrar apenas com uma sugestão. Reconhecer o próprio historicismo seria um ato de honestidade: significaria evitar a tentação do poder, para acolher o convite de viver o Evangelho em companhia das mulheres e dos homens de hoje.

Poderíamos então superar aquela “esquizofrenia da teologia traidora” destacada por Neri, e poderíamos também responder à pergunta que Theobald formulou nestes termos: “a tomada de consideração dos desenvolvimentos e das fraturas culturais é constitutiva para a recepção e a transmissão criativa da tradição e, portanto, para uma escuta atual da ‘voz’ de Deus?” [15].

Notas

[1] Francisco, Ad theologiam promovendam, Cidade do Vaticano 2023, n. 3.

[2] Cf. Francisco, Veritatis gaudium, Cidade do Vaticano 2018, 4.

3] O contexto é o do discurso proferido pelo pontífice em Nápoles, em 21 de junho de 2019, por ocasião do encontro organizado pela Faculdade Teológica do Sul da Itália sobre o projeto de uma teologia para o Mediterrâneo: Francisco, La teologia dopo Veritatis gaudium nel contesto del Mediterraneo, em S. Bongiovanni, S. Tanzarella (ed.), Con tutti i naufraghi della storia. La teologia dopo Veritatis gaudium nel contesto del Mediterraneo, Il Pozzo di Giacobbe, Trapani 2019, p. 228).

[4] Prefiro esses termos a “revelação”, que acredito já conter as características da abstração. Não é por acaso que, como alguns estudos de história da teologia fundamental demonstraram amplamente, esse termo foi forjado na modernidade e responde às instâncias daquele período histórico.

[5] Perdoem-me, leitores, pela forma sucinta com que expressei esse conceito. Para os aprofundamentos, remeto às obras de alguns teólogos, como Seewald, Theobald, Ruggieri, Grillo e Gisel. Para o debate epistemológico, também remeto ao meu recente livro Produzioni dell'origine, Filosofia e teologia a confronto, Aracne, Roma 2024.

[6] Que se trate de um imprinting simplesmente do mundo cultural e acadêmico católico também pode ser visto nas observações críticas que o historiador da filosofia Paolo Rossi fez décadas atrás com relação à filosofia católica: cf. P. Rossi, Storia e filosofia: saggi sulla historiografia filosofica, Einaudi, 1969, 70 ss.

[7] Retomo o adjetivo com referência à contribuição de Michel de Certeau de 1973, “La miseria della teologia”, posteriormente publicada na coleção La debolezza del credere. Fratture e transiti del cristianesimo, Vita e Pensiero, Milano 2020 (ed. or. 1987), 221.

[8] Cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração Mysterium fidei sobre a doutrina católica sobre a Igreja para a defender de alguns erros modernos (1973), em EV 4/2576. Que a história não tenha nada a ver com esse discurso não é realmente verdade, mas simplesmente no sentido de que o único incômodo que ela pode causar ao Evangelho (mas até certo ponto) diz respeito à mutabilidade de algumas formulações. Já em 1973 (ou seja, nem mesmo uma década após o Concílio Vaticano II), a declaração da Congregação para a Doutrina da Fé Mysterium Ecclesiae teve o cuidado de não atribuir a ela um papel determinante em relação ao fato cristão (Evangelho/revelação), mas ao mesmo tempo concedia à história (vista, no entanto, em seu inquietante aspecto de limitação, pluralismo, precariedade, regionalismo) uma influência em relação às formas de expressão da revelação (cf. EV 4/2577).

[9] Naturalmente, uso aqui os termos historicismo e anti-historicismo em sentido geral, querendo simplesmente enfatizar a constituição histórica do mundo humano (cf. Dilthey, Troeltsch, Meinecke) ou sua subdeterminação em nome de um naturalismo e universalismo metafísico, mas sem entrar no debate específico sobre o sentido dessas expressões.

[10] Embora preparadas pelo clima de oposição à Reforma, poderíamos indicar genericamente na Mirari vos (1832) de Gregório XVI o ponto de partida da restauração católica.

[11] Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução sobre a vocação eclesial do teólogo Donum veritatis (1990), EV 12/289. Esse documento também sustenta que “o ensinamento do magistério – graças à assistência divina – vale mais que a argumentação, que às vezes é tomada de uma teologia particular, da qual ele se serve” (EV 12/290).

[12] Para uma reflexão mais ampla sobre o binômio “inspiração-assistência” do Espírito Santo, remeto a C. Theobald, “Seguindo le orme ...” della Dei Verbum, EDB, Bolonha 2011.

[13] Cf. G. Ruggieri, “La politica docrinale della curia romana nel postconcilio”, em Cristianismo nella storia 21 (2000) 124.

[14] Parece-me que essa é uma recaída daquela autoridade epistêmica apresentada por M. Seewald, Riforma. Quando la Chiesa si pensa altrimenti, Queriniana, Brescia 2022, 79 ss. Sobre a estrutura filosófica dessa operação de universalização bastante diferente de uma posição monista-universal, ver P. Piovani, Filosofia e storia delle idee, Edizioni di storia e letteratura, Roma 2010 (ed. or. 1965).

[15] C. Theobald, Spirito di santità. Genesi di una teologia sistematica, EDB, Bologna 2017, 227.

A seguir, reproduzimos os comentários dos leitores que se seguiram ao texto no original em italiano

Comentários 

1.- Indo além da autorreferencialidade – um vício que, infelizmente, todo teólogo tem e do qual Guglielmi também não está imune, já que cita seu livro em uma nota –, o problema da traição é o problema de uma ciência, se quisermos assim a definir, que não consegue mais dizer nada à consciência eclesial e, de modo mais geral, ao homem de hoje. A teologia – e nisso Dianich tem razão – deveria encarnar a mensagem do Evangelho na cultura atual.

Sinto muito dizer, mas empregar tantas energias e espírito crítico, como alguns fazem, para dizer que o Vetus ordo está ultrapassado, para dizer que a linguagem dos documentos magisteriais deve ser mudada (e provavelmente sempre será) não é um bom serviço à teologia. Assim, a teologia se torna algo que fala para os especialistas, para aqueles que lidam com certas coisas, para os “quatro gatos” que ainda restaram. Concordo plenamente com G–uglielmi quando ele diz que deveria ser praticada uma maior interdisciplinaridade e transdiscplinaridade no campo teológico. (Fabio Cittadini)

2.- Artigo muito interessante justamente pela orientação crítica e epistemológica das questões analisadas. A partir da leitura percebo cada vez mais que a teologia não é uma espécie de catequese, talvez com uma pitada a mais de cultura, mas um âmbito mais sério, em pé de igualdade com outros conhecimentos. E acho que é precisamente graças a esse background cultural (ver nota de rodapé 6) que também é possível proceder (como o autor faz neste texto) a uma operação de alta divulgação para um público não estritamente especializado. (Fulvia)

Leia mais