03 Setembro 2024
"Somente se as culturas, na abordagem teológica, passarem de ser funções instrumentais a princípio organizador da experiência e do conhecimento, será possível começar a lançar as bases para uma teologia não traidora. E é somente a prática desse ambiente teológico, capaz de honrar as culturas como pano de fundo e fundamento do logos, que gerará teólogos e teólogas capazes de não trair o destino de seu serviço em favor do Deus expresso por Jesus com toda sua pessoa.", escreve Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 01-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em seu texto, Severino Dianich usou uma palavra dura, “traição”, para falar da apatia da teologia (italiana) em relação às coisas que acontecem no mundo que todos nós habitamos. Não uma traição sobre o que é marginal, mas quando está em jogo o essencial - nesse caso, a fé e, portanto, a teologia.
Se for uma questão de traição, então os eventos do mundo e a vida cotidiana das mulheres e dos homens que vivem nele fazem parte por direito da empreitada teológica cristã. Se isso for verdade, então não existe mais um “mundo externo” (como Dianich ainda o chama) e um mundo interno à revelação do Deus cristão. Uma modulação que parece ecoar a distinção dos loci organizada por Cano em seus próprios e alheios (mas, talvez, no século XVI, o sentido dessa distinção não correspondia ao atual interno/externo).
No entanto, o fato é que, sobre o que decide o destino do mundo, a teologia católica parece incapaz de proferir uma palavra. A esse respeito, é claro, os teólogos têm sua responsabilidade - pessoal e coletiva. Eu me pergunto, entretanto, se não seria a própria teologia católica culpada de traição.
É claro que a teologia não existe, exceto na medida em que é exercida por teólogos e teólogas; mas pensar nela apenas dessa forma é relegá-la a biografia intelectual da fé deste ou daquele crente. Um fato individual e não comunitário. Por outro lado, a versão católica da teologia tem um espartilho duplo - que a comprime e a sustenta.
O primeiro é o de sua própria história bimilenar, o lugar onde a inteligência da fé de um/uma se desprende do simples percurso biográfico e se torna, literalmente, o bem comum. O segundo é o do magistério, que também reivindicou uma primazia sobre o que concerne o conhecimento da fé - independentemente das competências teológicas daqueles que o exercem.
Houve um tempo, na Igreja, em que essa primazia era ativada, não para controlar, direcionar ou catequizar o pensamento teológico, mas para evitar que os teólogos se digladiassem entre si, acusando-se mutuamente de heresia, em detrimento da fé comum a todos os crentes (que nem naquela época nem agora são estúpidos ou ignorantes - e não precisam de proteção contra um bom pensamento do Evangelho, por mais arriscado que possa ser; mas justamente exigem que esse pensamento realmente tenha algo a ver com a fé que vive no tempo e na história).
Não se poderia, talvez, partir desse paradoxal espartilho da teologia para perceber que o que Dianich chama de “mundo externo”, na verdade também constitui os artigos mais sagrados da fé católica? Uma fenomenologia honesta da história da teologia e dos dogmas teria precisamente a tarefa de nos mostrar isso - desde os grandes concílios cristológicos das origens até os eclesiológicos da tarda/final modernidade.
Sempre essa fenomenologia nos mostraria que as grandes palavras da fé católica mudaram seu significado, ou função, ao longo dos séculos. E isso não na compreensão do “mundo exterior” e nem mesmo naquela dos crentes, mas precisamente na organização do núcleo duro da fé comunitária no Deus de Jesus. O magistério que é ativado após o debate teológico como sua moderação não é o magistério preventivo e substitutivo típico da época moderna - por trás de cujo nome há duas realidades completamente diferentes, que não estão em continuidade uma com a outra (exceto nominalmente).
O que significa, então, o fato de a descontinuidade atravessar de cima a baixo uma figura da fé católica que encontraria sentido e legitimidade na garantia da continuidade? Essa pergunta não pode ser respondida adequadamente apenas olhando e investigando os “muros de casa e os acontecimentos domésticos” (para retomar a imagem usada por Dianich) - porque ela está originalmente embebida do que aparentemente, apenas aparentemente, está fora delas.
Outra pergunta: por que a teologia católica escolheu deliberadamente trocar uma aparência pela realidade das coisas, fazendo de seu discurso uma ficção que só se sustenta por meio da idolatria de um ato de fé que transforma o que não é no que é? Essa transubstanciação da aparência em fato é a grande traição da teologia católica, antes e para além da traição dos vários teólogos (e possivelmente teólogas, mas essas me parecem mais atentas à situação).
Tal transubstanciação da aparência em realidade/fato, que cria ex nihilo o díptico dentro-fora, só pode se tornar cânone da inteligência (católica) da fé a partir de um momento histórico bem determinado - e de uma condição humana à qual a dogmatização da doutrina da transubstanciação busca dar resposta.
O sentido do dogma permaneceria ininteligível se essa condição contingente, e a história na qual ela está imersa, permanecessem “externas” à própria formulação autorizada da fé (ou fossem seu mero revestimento linguístico - mas será que a linguagem poderia ser um mero revestimento de algo que existiria prescindo dela?)
A teologia traidora, a que praticamos ainda agora, é uma teologia esquizofrênica que nomeia como outro/alheio o que ela é, pensando que essa entidade estranha realmente exista fora de si mesma quando, na verdade, é um produto de seus delírios (e da sua patologia).
Qual a cura para a esquizofrenia da teologia traidora? As pistas poderiam ser múltiplas, tanto no plano da lógica que organiza o pensamento teológico quanto nos locais de sua prática. O que une esses dois lados da questão é o tema da cultura/das culturas (e, portanto, das línguas que a teologia fala). Enquanto considerarmos as culturas como mediações de algo que, em seu constituir-se prescinde delas, ou de alguma forma é imunizado em relação ao cultural, permaneceremos atolados na patologia do interno/externo, dentro/fora, próprio/alheio.
A cultura não é um revestimento a posteriori de um discurso, ou mesmo da própria revelação do Deus cristão, que seria gerado independentemente dela - de modo que a tarefa da teologia seria traduzir essa hipóstase sem profundidade e sem tempo nos diversos lugares do viver humano ao longo da história. A cultura nas suas pluralidades irredutíveis ao único, até mesmo à unicidade de Deus, não é o campo de aplicação de uma tradução, mas sim a força de uma geração da concretude do Deus apaixonadamente amado por Jesus.
As culturas, e as línguas, fundam o discurso e o conceito (todo discurso e todo conceito, até mesmo o teológico), e à montante delas não há nenhum evento - nem mesmo o da revelação cristã de Deus. Acima de tudo, sem esse pano de fundo que rege e organiza entre si os nexos de evento, discurso e conceito, não poderia ser articulada nenhuma linguagem compartilhada (nem mesmo a do evento do logos filial de Deus), por um lado, e nenhum código normativo reconhecido por ser reconhecível por todos aqueles que a ele pertencem, pelo outro.
Somente se as culturas, na abordagem teológica, passarem de ser funções instrumentais a princípio organizador da experiência e do conhecimento, será possível começar a lançar as bases para uma teologia não traidora. E é somente a prática desse ambiente teológico, capaz de honrar as culturas como pano de fundo e fundamento do logos, que gerará teólogos e teólogas capazes de não trair o destino de seu serviço em favor do Deus expresso por Jesus com toda sua pessoa.
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Teologia traidora: em diálogo com Dianich. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU