03 Janeiro 2024
Enquanto os noticiários tratam de nos tornar cada vez mais conscientes da banalidade do mal, que hoje se aninha nas dobras mais escondidas da normal cotidianidade, poderia parecer inútil mudar-se em direção obstinada e contrária e tentar questionar o nosso presente a partir de alguns elementos de sabedoria que também podem, pelo menos em vislumbres repentinos, iluminar a nossa demanda de sentido. E é ancorando-se nessa possibilidade que lemos, nos últimos dias, o novo livro de Severino Dianich, talvez o maior teólogo italiano vivo.
Troppo breve il mio secolo (Demasiado breve o meu século, em tradução livre), um título que parece conter a amarga constatação de que o tempo escorre irreparavelmente, como dizia Virgílio, e que os esforços humanos nada podem fazer para acompanhá-lo. Mas essa primeira impressão dá logo dará lugar a uma consciência diferente: que o século XX, o século a que predominantemente se refere o autor, conheceu uma tal concentração de mudanças marcantes que teve como efeito não a nossa incapacidade de acompanhar o tempo, mas do tempo acompanhar os eventos. Tentamos então parar e contemplar - o termo não é casual - o turbilhão desses acontecimentos para entender o que eles fizeram com um de nós, como transformaram quem não apenas “assistiu”, como se costuma dizer, mas quem se deixou profundamente questionar por eles, a ponto de moldar a sua visão do mundo e da história. E falamos sobre isso diretamente com esse protagonista excepcional.
A entrevista é de Donatella Puliga, publicada por la Lettura. 24-12-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
O que significa ter vivido uma vida longa entre dois séculos? Qual é, nessa perspectiva, a relação entre história coletiva e memória pessoal?
Eu não teria nada a contar sobre mim num sentido estritamente autobiográfico que poderia interessar a alguém. Mas os anos vividos depois de ter alcançado o uso da razão (pelo menos uns oitenta) constituíram um incrível repositório de memórias de eventos, muitos dos quais foram decisivos para a história da humanidade. Sinto-me, para todos os efeitos, como um homem do século XX: certamente não sou um millennial. E tenho a sensação de que os grandes jogos da história, nos quais fiquei imerso desde criança, terminaram naquele século. Apenas um deles, parece-me, o século XX transmitiu, sempre o deixando dramaticamente aberto, ao nosso século: aquele da revolução sexual e da profunda transformação da família. Tenho a sensação (mas estou ciente de que essa percepção pode depender da minha velhice) do que este primeiro vintênio do novo século nem mesmo abriu algum tema verdadeiramente novo, exceto o da cultura digital. Esta sim, uma revolução sobretudo pelas consequências que está comportando no plano do conhecimento, das relações humanas, da visão da realidade. O advento do digital é algo impactante: capaz, pode-se dizer, de mudar a natureza do homem.
Reprodução da capa de Troppo breve il mio secolo (Foto: Divulgação)
Os conflitos mundiais do século XX, especialmente o segundo, tiveram um peso determinante na sua experiência como homem e depois como sacerdote. O que chama a atenção é o fato que passar por acontecimentos muito dolorosos que marcaram o século passado nunca significou, no seu caso, cair no abismo da descrença na humanidade, mesmo diante de tantas atrocidades. Qual é a primeira imagem que escapa da prisão do esquecimento?
Eu tinha seis anos e é a minha primeira lembrança, clara, claríssima: no Corso di Fiume, em frente ao Palazzo del Fascio, ouvindo o discurso do Duce relativo à declaração de guerra. Minha infância foi marcada por isso. A massa de horrores, os terrores, as noites passadas na cama de roupa para estar prontos para fugir para o abrigo, as privações de todos os tipos, a idiotice de propaganda. Não consigo conter a minha indignação quando ouço pessoas deplorando as crueldades bestiais que “o inimigo" está cometendo, como se fossem uma violação das nobres regras da guerra. Isso é, na minha opinião, uma forma ignóbil de propagandear a ideia de que existe uma guerra aceitável. Não existe e nunca existiu uma guerra limpa. Ficamos surpresos com a contínua eclosão das guerras: mas se há algo de terrivelmente antigo (dizer antigo seria enobrecê-la) é a guerra. A pedra, a clava e o arco foram substituídos pelos drones, mas a lógica da guerra continua a mesma: subjugar.
Marcada pela experiência do exílio, o tempo da sua vida foi marcado por uma vocação precoce ao cosmopolitismo, que moldou seus quadros mentais. Ter nascido em Fiume (atual Rijeka) fez com que logo respirasse um ar composto, por exemplo, de muitas línguas: não poucas pessoas, pelo menos na classe média, falavam pelo menos italiano, alemão, húngaro e croata. Na sua família de agricultores urbanizados, a língua istrorromena também era falada, língua de seus pais, que hoje seu irmão, Antonio Dianich, repropiciou na elaboração de um dicionário.
Não foi fácil para a minha cidade Fiume, depois da tragédia do segundo conflito mundial e da atmosfera sombria, mais uma vez portadora de morte, do regime de Tito, superar a estreiteza dos opostos nacionalismos e recuperar a sua própria amplitude multicultural. Mas a minha experiência do exílio não foi apenas a do grande êxodo dos habitantes de Fiume, Pula e Zadar entre 1945 e 1950, principalmente para a Itália. O acolhimento de parte da pátria-mãe não foi dos mais calorosos: no campo de refugiados de Gaeta, onde chegamos antes de nos mudarmos para Pisa, todos nós morávamos em um cômodo de quatro por quatro metros. Pesava sobre nós a condenação, pelos comunistas da época, de ter fugidos do Jardim do Éden que o governo de Tito representava para eles (a Iugoslávia). Vivemos, pelo menos em parte, como exilados também na nossa terra natal. Ainda assim, aquele movimento, aquele sentido de uma vida em saída, o carrego dentro de mim até hoje: graças talvez àquela vontade, que amadureceu precocemente, de ir ver o que havia em outros lugares. Para entender não só apenas a mim mesmo, mas a vida humana. E assim foi que a experiência das minhas viagens de estudo (e não só) foi fundamental pelos encontros que me permitiu com a humanidade, na unicidade das pessoas, homens e mulheres que eram e são, cada um e cada uma, um mundo. Europa, Oriente Médio, a grande Constantinopla-Istambul onde respirei um ar cosmopolita, a União Soviética, China e Camboja, Coreia, América Latina e em particular o Peru. Todos os lugares em que foi para mim essencial encontrar rostos e situações concretas, para além das ideologias e das massificações da propaganda deste ou daquele regime. Esses rostos foram para mim janelas importantes para o mundo.
O atual cenário mundial, com outras e infelizmente não novas frentes de guerra que se abriram, suscita reflexões amargas sobre o futuro da humanidade. A recomposição dos conflitos parece afastar-se cada vez mais do horizonte da história, além do viver cotidiano. E parece confirmar-se, depois de séculos, a afirmação de que o grande historiador Tácito colocava nas palavras de um inimigo dos Romanos: Ubi solitudinem faciunt, pacem appellant ("Onde fazem o deserto, chamam isso de paz"). O que tudo isso significa, na sua perspectiva, para o Igreja e para o mundo?
Na minha sensibilidade de cristão e de padre, a guerra me faz pensar na verdade profunda daquele dogma de fé que é o pecado original: o mistério de um germe de tolice e maldade que prospera nas profundezas do homem, de cada homem. É a linha de pensamento que de São Paulo chega a Agostinho, se repropõe em Lutero e acompanha Søren Kierkegaard, até a nós: aqui na Itália, penso em Sergio Quinzio. Quando observo o fluxo dos acontecimentos dos últimos 20 anos, a amarga sabedoria do Eclesiastes às vezes me parece dolorosamente compartilhável: “Nada de novo sob o sol." Principalmente para quem viu a guerra com os próprios olhos, realmente nihil novi. As mesmas violações contínuas dos direitos humanos, o assassinato de civis, de crianças, destruições de casas, fugas em massa das cidades, saques, estupros e valas comuns. Também são idênticas as mentiras sobre o fato que o inimigo está à beira do colapso, que estamos vencendo. A novidade é mais o perigoso desencadeamento, em nível geopolítico mundial, de um trágico jogo a dois pela dominação do mundo (Rússia contra as potências ocidentais) com um convidado de pedra, a China, ao fundo. Por parte da Igreja Católica, a condenação da guerra, embora com algumas oscilações em relação à guerra de defesa, é constante e conhecida, pelo menos a partir de Bento XV que, no início do século XX, definiu a guerra “um massacre inútil”. Tendencialmente, a fé cristã coloca a pessoa e a sua vida acima também de alguns valores cívicos embora respeitáveis, como a pátria e a independência da nação. A vida de homens e mulheres, enviados para o front para morrer, em virtude de recrutamentos obrigatórios, na suspensão do direito fundamental de viver e de toda a forma de democracia, não pode ser tranquilamente posposta a outros valores. O reconhecimento da dignidade de cada ser humano faz do diálogo com as pessoas em tempos de paz e, além do front, na guerra, o único antídoto para os massacres inúteis.
Na sua experiência pastoral você conheceu gerações que experimentaram pessoalmente os enganos do século passado. Como foram elaborados, caso tenham sido, esses traumas ideológicos?
Sob o regime fascista, na escola cantávamos: “Vencer! E venceremos no céu, na terra e no mar!”, enquanto a Itália desmoronava. Em Fiume, sob o regime de Tito que parecia ter nos libertado do nazismo, jurávamos fidelidade àquela "violeta branca" (um dos seus epítetos de louvor) que finalmente desabrochou no mundo. Na Itália, o engano continuou, porque depois do fim catastrófico da guerra que havia desmentido a mentira do entusiasmo fascista, não faltou a queda de outros ídolos, como o de Stalin derrubado dos altares pelas mãos dos seus próprios pontífices.
Como ruiu o mito da revolução cultural de Mao Zedong, anos depois. Muitas pessoas próximas a mim, por exemplo os meus paroquianos de Caprona, uma pequena aldeia na planície de Pisa, de predominante fé comunista, viram os tanques soviéticos esmagarem a revolta húngara em 1956, testemunharam a Primavera de Praga de 1968 e o fim inglório da União Soviética. E mais ainda têm na memória o personagem desconhecido que na Praça Tiananmen, em Pequim, em 1989 parava na frente de um tanque. Eu, embora vacinado contra o filocomunismo pela minha experiência sob o regime de Tito, vivi a mesma desilusão, a mesma tristeza daquelas pessoas simples. Porque são sempre os pobres que sofrem, antes mesmo nos sentimentos que nos fatos, as consequências das grandes viradas da história.
Você participou recentemente, como especialista, no Sínodo dos Bispos, primeira etapa de um caminho comum (esse o significado do termo grego sýnodos) de alcance global para a Igreja, que começou em 2021 e terminará em 2024, que viu pela primeira vez a participação, além de representantes do episcopado mundial (conforme estatuto), também de fiéis leigos, entre os quais muitas mulheres, bem como de simples sacerdotes e religiosas. Isso, com o objetivo de escutar (também através da consulta prévia iniciada nas diversas realidades locais) do maior número possível de fiéis sobre a situação atual da Igreja e sobre as perspectivas que se abrem sobre o tema da mudança. Mas agora você também é um dos poucos que pode dizer, a respeito do Concílio Vaticano II: “eu estive lá”, ainda que “apenas” como jovem secretário do bispo de Pisa. O que mudou em relação à atmosfera ativa e combativa daqueles anos?
Pode-se afirmar, sem dúvida, que o propósito fundamental pelo qual, já em 1959, o Papa João XXIII havia convocado o Concílio, que se realizou de 1962 a 1965, ou seja, para encerrar o longo período de contraposição da Igreja à cultura moderna, ao advento da laicidade na sociedade civil e iniciar um estilo de diálogo e de cooperação na busca do bem comum, foi amplamente alcançado. A Igreja admitiu que não poderia continuar a colocar-se diante do mundo como uma fortaleza sitiada. Mas continua a ser verdade que muitas das posições assumidas pelo Vaticano II ainda estão aguardando serem assimiladas. Por isso confesso que no Sínodo, com certa melancolia, às vezes me aconteceu, quando alguma questão era proposta, ter replicado: “Mas o Concílio já tinha se posto esse problema e já tinha indicado os caminhos a seguir”.
Repetita iuvant, evidentemente. Até porque muitas vezes não se trata simplesmente de repetir, mas de tornar operacional e concreto algo que só havia se afirmado apenas em linha de princípio. Os dois anos do Caminho sinodal fizeram crescer as expectativas, que na realidade eram desproporcionais: o Sínodo não é um concílio. De fato, não tem poder deliberativo, mas consultivo. No entanto, tratou-se de escutar muitas vozes, vozes concretas que colocaram problemas igualmente concretos: apenas uma visão míope mediada pelas redes sociais pode considerar desatendidas uma série de expectativas sobre alguns temas que, pelo contrário, foram levados em consideração de forma séria e propositiva.
Na sua perspectiva, também o diálogo inter-religioso e com os não crentes pode oferecer um horizonte de sentido, desde que não se limite a episódios isolados, mas se torne um processo, um caminho que marque as escolhas a partir do cotidiano.
Acredito certamente que uma prática constante de diálogo entre cristãos e pessoas de outra ou nenhuma religião seja merecedora da mais alta consideração. Exceto improvável desmentida, creio que seja a primeira vez na história, depois das inúmeras guerras religiosas, que os principais expoentes de diferentes religiões concordaram em atuar unidos pela paz no mundo.
Penso também em eventos de forte significado simbólico: o encontro inter-religioso de Assis, de 27 de outubro de 1986, promovido por João Paulo II. Eu gostaria que as novas gerações também pudessem rever as imagens da praça em frente à Basílica de Assis que circularam em 1986, com os representantes das diversas religiões do planeta, convocados pelo Papa, que rezavam juntos. Mais recentemente, Abu Dhabi, 4 de fevereiro de 2019: o encontro entre o Papa Francisco e o Imã Al-Tayeb; uma data que fará história. Ninguém imaginaria que no clima de conflito em que nos encontramos imersos, os atentados no Ocidente, o medo generalizado, um papa fosse recebido de braços abertos no coração da Península Arábica. Precisamente no contexto dramático em que emergem os extremismos religiosos, é fundamental o processo de diálogo entre as pessoas, antes mesmo que entre as religiões: as transformações no plano pessoal, essas sim são possíveis. E, além disso, através das pessoas, também as religiões crescem e se colocam em caminho.
Como ler o sinal dos tempos, mesmo na Itália, segundo o qual as novas gerações são tendencialmente cada vez menos interessadas não apenas na prática religiosa, mas também numa experiência de fé que envolva profundamente as suas escolhas, que tenha a ver com o significado da própria vida?
O cristianismo europeu, depois da fase da primeira evangelização, atravessou os séculos graças à transmissão da fé de geração em geração. Essa situação está mudando rapidamente diante de nossos olhos. Já em todos os domínios a função educativa da família é poderosamente contornada e superada pelo poder invasivo das redes sociais. Pelo que diz respeito, além disso, à transmissão da fé, ela naturalmente enfraqueceu com a profunda mudança nas modalidades de formação da família: muitos casais não se casam, ou o fazem apenas com a cerimônia civil, muitas crianças não são batizadas. Para o cristianismo se prospecta um futuro em que apenas a relação interpessoal com os não crentes e com as pessoas de outra religião poderá criar, sem qualquer proselitismo, o espaço da transmissão da fé, assim como foi no início por muitos séculos. Além disso, creio que essa "secagem" progressiva, enxugamento, ousaria dizer, da prática religiosa na Itália e em todo o mundo não seja um sinal de que deve sugerir uma catástrofe. É mais algo que, como sinal dos tempos, deve ser interpretado e assumido com responsabilidade.
Donatella Puliga: Parece que está nos dizendo que já aconteceu outras vezes na história, que é necessário recuperar o anúncio evangélico na sua radicalidade e essencialidade. Porque aquela boa notícia - estamos agora perto do Natal que para os cristãos representa a encarnação inaudita de Deus na história humana e nas suas contradições - não gritada, mas moduladas no pentagrama da maravilha, possa assumir a face da esperança e da expectativa. Sem as quais o presente corre o risco de tornar-se um perigoso chafurdar no mesmo, e o futuro é morto na raiz.
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A guerra é sempre suja. Entrevista com Severino Dianich - Instituto Humanitas Unisinos - IHU