Dias antes de a Reforma completar 506 anos, uma pergunta central foi lançada pelo pastor valdense Paolo Tognina, no artigo publicado no site Riforma.it: "A Reforma desencadeou muitas mudanças, teve uma influência histórica profunda, mas o que isso tem a dizer ao nosso presente e ao nosso futuro?" Tognina formou-se em Teologia na Faculdade Valdense de Roma na década de 1980, é jornalista e coordenador de programas evangélicos da RSI e editor-chefe da revista mensal Voce Evangelica.
A pergunta se justifica, segundo ele, porque "o problema da irrelevância da Reforma hoje está ligado à incompreensibilidade da sua mensagem central, aquela da justificação pela fé". Eis o ponto: "Essa mensagem não é mais compreendida na sociedade contemporânea. E talvez não a percebamos mais nem mesmo nós". A inquietação de Tognina não é muito distinta das reiteradas observações que o Papa Francisco tem dirigido aos cristãos desde o primeiro ano do seu pontificado, como aquela que marcou a Audiência Geral de 23-11-2013: "A Igreja não é um negócio, não é uma agência humanitária, não é uma ONG; a Igreja foi criada para levar Cristo e seu Evangelho para todos". Para Tognina, "tentativas de demonstrar a relevância das nossas igrejas destacando as suas contribuições no campo das ajudas humanitárias, da diaconia, do amor ao próximo que elas põem em jogo, não são convincentes: as funções úteis desempenhadas por uma comunidade de fé não são fé, mas funções. Não contribuem para resolver o problema do sentido, não são respostas relativas à substância da fé".
O pastor valdense lembra que assim como hoje, na época de Lutero, "apesar daquele arcabouço religioso, prevalecia um sentimento de insegurança, prevaleciam os medos pelo presente e pelo futuro". Entretanto, ressalta, "naquele contexto de medo, Lutero conseguiu encontrar uma resposta na graça de Deus que liberta do medo".
Foi justamente o tema do medo o objeto da conversa do Papa Francisco com os jovens do mundo inteiro na última Jornada Mundial da Juventude, realizada em Lisboa em agosto deste ano. Entre os aspectos destacados por Francisco na homilia da missa celebrada no Parque Tejo, dois aplicam-se à reflexão de Tognina: "ouvir e não ter medo".
"O segundo verbo é escutar. No monte, uma nuvem luminosa cobriu os discípulos e o que, desta nuvem fala o Pai, o que ele diz? Escutai-o (Mt 17,5). Este é o meu Filho amado, escutem-no. Está tudo aqui, e tudo o que há para fazer na vida está nesta palavra: escutem-no", resumiu o pontífice. Para aqueles que reagem tibiamente, o Papa explica o sentido do que acaba de dizer: "Escutar Jesus, todo segredo está aí. Escute o que Jesus te diz. 'Eu não sei o que ele me diz.' Pegue o Evangelho e leia o que Jesus diz e o que diz em teu coração. Porque Ele tem palavras de vida eterna para nós; Ele revela que Deus é Pai, é amor. Ele nos ensina o caminho do amor, escutar Jesus. Porque lá fora nós de boa vontade trilhamos caminhos que parecem ser de amor, mas no fundo são egoísmos disfarçados de amor. Ter cuidado com os egoísmos disfarçados de amor. Escutá-lo, porque Ele vai te dizer qual é o caminho do amor. Escutá-lo!"
Sobre o segundo aspecto, o Papa ensinou os jovens a deixar ressoar no coração as palavras de Jesus: "Em um pequeno silêncio, cada um repita para si mesmo, em seu coração, estas palavras: Não tenhais medo'. Queridos jovens, gostaria de olhar cada um de vocês nos olhos e dizer: não tenham medo. Não tenham medo. E mais, digo-lhes uma coisa muito bonita, já não sou eu, é o próprio Jesus que vos olha, neste momento. Ele está nos observando. Ele vos conhece, conhece o coração de cada um de vocês, conhece a vida de cada um de vocês, conhece as alegrias, conhece as tristezas, os sucessos e os fracassos, conhece o seu coração. Ele lê os vossos corações e hoje diz-vos, aqui em Lisboa, nesta Jornada Mundial da Juventude: 'Não tenham medo'. 'Não tenha medo'. Coragem, não tenham medo".
Queridos jovens, gostaria de olhar cada um de vocês nos olhos e dizer: não tenham medo. Não tenham medo. E mais, digo-lhes uma coisa muito bonita, já não sou eu, é o próprio Jesus que vos olha, neste momento – Papa Francisco
A graça de Deus na qual Tognina diz que "Lutero conseguiu encontrar uma resposta que liberta do medo" não é outra que o próprio Cristo, como disse o Papa Francisco em Audiência Geral em 2021: “E a justificação é justamente a maior proximidade Deus para conosco, homens e mulheres, a maior compaixão de Deus para conosco, homens e mulheres, a maior ternura do Pai. A justificação é este dom de Cristo, da morte e ressurreição de Cristo que nos torna livres. (…) Permitam-me a palavra: somos santos na base. Mas depois, com a nossa obra, nos tornamos pecadores. Mas na base somos santos. Vamos em frente com esta confiança: todos fomos justificados, somos justos em Cristo. Devemos aplicar aquela justiça com as nossas obras”.
Diante dos medos com os quais a sociedade se debate hoje, os cristãos encontram-se diante de um desafio, também formulado em forma de questão pelo teólogo valdense: "Qual é a mensagem evangélica que liberta da angústia as mulheres e os homens da nossa geração?" De acordo com ele, "é sobre isso que precisamos falar se quisermos fazer da memória da Reforma não uma celebração de coisas passadas, mas uma oportunidade para olhar para o nosso presente e para o nosso futuro à luz da libertação do medo que se encontra na fé".
A partir da discussão proposta por Paolo Tognina, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o evento virtual A Reforma e o nosso futuro enquanto humanidade nesta terça-feira, 31-10-2023, às 10h. Participam do debate a Rev. Dra. Elaine Neuenfeldt, da ACT Alliance, em Genebra, Prof. Dr. Walter Altmann, da Faculdades EST, e Wilhelm Wachholz, da Faculdades EST. A transmissão será feita na página eletrônica do IHU e no Canal do IHU no YouTube.
A controvérsia teológica que diz respeito à doutrina da justificação pela graça através da fé, que dividiu por séculos católicos e luteranos, foi tema da Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação (JDDJ), documento assinado em 31-10-1999 em Augusta (Alemanha) por representantes da Federação Luterana Mundial (FLM) e da Igreja Católica Romana e posteriormente adotada pelo Conselho Metodista Mundial (2006), pela Comunhão Mundial das Igrejas Reformadas (2017) e pela Comunhão Anglicana (2017). Na celebração dos 20 anos do documento, o IHU reproduziu a entrevista com Martin Junge, pastor luterano, então secretário da FLM sobre os 20 anos da declaração conjunta sobre a doutrina da justificação. "A questão de como a salvação alcance os seres humanos através de Jesus Cristo foi aquela em torno da qual a divisão foi mais claramente delineada. Com a JDDJ, luteranos e católicos encontraram uma base consensual e retiraram as condenações com as quais se acusaram reciprocamente no passado. Podemos afirmar que a JDDJ é um marco na jornada rumo à unidade dos cristãos".
Por ocasião dos 500 anos da Reforma, o IHU publicou a 514ª edição da Revista IHU On-Line, intitulada Lutero e a Reforma – 500 anos depois. Um debate. Na ocasião, pesquisadores de diferentes áreas do saber em diálogo com a Teologia refletiram sobre as contribuições da Reforma nas transformações em curso desde a Modernidade. Entre os entrevistados na ocasião, o historiador italiano Franco Cardini, cuja entrevista republicamos hoje na página eletrônica do IHU, destaca o que tem sido uma das marcas da modernidade: "A Modernidade, na sua essência, é duas coisas: individualismo e primado da economia".
Em uma de suas últimas contribuições ao IHU naquela edição, antes de seu falecimento, em 2018, o professor Vítor Westhelle destacou as contribuições da teologia da cruz de Lutero. "A celebrada teologia da cruz de Lutero assim como sua Mariologia, como desenvolvida em sua obra Magnificat, afirmam a presença de Deus não na prosperidade, mas no seu revés, na cruz, no sofrimento, na marginalidade, indignidade e opressão. Mais sobre isso tenho elaborado em meu livro, este em português, O Deus Escandaloso".
Outra contribuição de Lutero, segundo Westhelle, foi "realmente trazer o monastério para o cotidiano popular. Além de Agostinho, a quem ele admirava sobremaneira, Bernardo de Claraval era um dos mais celebrados místicos medievais. Esta dimensão de Lutero tem sido mantida na teologia escandinava e enfatizada mais recentemente na escola finlandesa de interpretação de Lutero. A questão central é o que misticismo não cabe como característica de nenhuma era da história. Há místicos medievais, como há da antiguidade e também da modernidade. Lutero não era um místico em nenhum sentido tradicional do termo, mas secularizou elementos do misticismo que o colocam precisamente na transição entre o medievo e o moderno. Lutero vivia em uma época em que devia ao passado toda sua formação. Mas vislumbrava uma aurora que nem tinha conhecimento do que implicava. Em outras palavras, Lutero não era nem medieval nem moderno; era transição".
Diariamente, o IHU segue promovendo o debate social e cultural sobre a promoção da fé a partir de uma perspectiva ecumênica e de diálogo inter-religioso. Artigos e entrevistas sobre essas questões e as múltiplas implicações da Reforma estão disponíveis em nossa página eletrônica. A seguir, destacamos algumas reflexões publicadas ao longo das últimas duas décadas.