24 Mai 2022
“Em tempos em que tudo parece estar sob controle, onde tudo aparenta estar organizado a partir de nossos dispositivos, vale admitir que, no entanto, o medo não se extinguiu”, escreve Ingrid Sarchman, professora e pesquisadora na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, em artigo publicado por Clarín-Revista Ñ, 20-05-2022. A tradução é do Cepat.
Quando se termina de ler História do medo no Ocidente, do historiador Jean Delumeau, é inevitável voltar ao início. Como se refazendo um longo caminho ou rebobinando o filme que se acaba de ver, é difícil resistir à tentação de nos perguntar: como chegamos até aqui? Quais foram as condições para que o nosso presente, com sua bagagem de suposições, crenças e certezas, se sustente?
Então, essas páginas, que estão cheias de histórias distantes sobre as formas como o medo foi moldando as subjetividades de nossos antepassados, especialmente na Idade Média e no Renascimento, adquirem um sentido histórico de pleno direito na modernidade, nossa modernidade.
Não se trata apenas de fazer uma diferenciação entre esse sentimento naquela época e o nosso – melhor dizendo, os motivos que inspiraram isso ou aquilo –, mas, sim, de se perguntar como esses medos deram sentido aos fatos: as guerras, as conquistas dos territórios, o papel da religião, bem como o tratamento de doenças, epidemias, a inclusão e exclusão de grandes populações e, claro, os modos de representação na pintura, literatura e outras expressões artísticas.
O método de Delumeau avança por camadas que combinam o individual (o medo como resposta fisiológica a algum perigo real ou imaginário) com as formas como esse sentimento foi interpretado em determinados contextos sociais.
Como e de que maneira os medos cumpriram funções sociais? Esta pergunta, que se repete em cada um dos doze capítulos, é respondida em diferentes níveis. Ao diferenciar medos espontâneos relacionados a eventos climáticos ou geográficos – tempestades, oceano, céu, estrelas, lua ou sol – de situações cíclicas – pestes ou guerras –, alerta-se para uma complexa combinação que permite entender, por exemplo, as perseguições e guerras religiosas.
Assim, pessoas, em especial mulheres, suspeitas de bruxaria, mas também elementos estrangeiros, como judeus, muçulmanos ou ciganos, foram perseguidos, torturados e assassinados, sob a égide do medo.
Grande parte do discurso eclesiástico, em especial o da Idade Média, mas não só, com suas imagens apocalípticas, contribuiu para criar um clima de constante suspeita do desconhecido como meio de controle social. Afinal de contas, o diabo poderia se manifestar a qualquer momento e de diversas formas.
A constante ameaça do mal sobre o bem foi sobrevivendo em diferentes épocas. Nem mesmo o processo de secularização iniciado no século XVI, com as reformas protestantes, conseguiu (nem quis) eliminar a ideia das duas forças contrapropostas. Afinal, a identificação de um elemento perigoso, não importa do que ou de quem seja, funcionou ao longo das diferentes épocas como método de controle social.
Entre todos os exemplos, vale ressaltar três: as mulheres, as pestes (os doentes) e o elemento estrangeiro (encarnado especialmente no judeu, mas não só nele). A construção da anormalidade permitiu dar corpo ao mal, exemplificando-o e, na maioria dos casos, dar-lhe um castigo exemplar.
Embora o medo da mulher encontre sua origem religiosa na mordida da maçã proibida, Delumeau destaca que, em muitas versões, a mulher, nesta narrativa, não necessariamente havia ficado sob o controle masculino. Foi apenas na Idade Média que a figura feminina foi ligada a uma iconografia suspeita.
A bruxa podia ser representada como uma velha decrépita e, nesse sentido, a velhice também era de temer, ou como uma bela jovem que escondia, sob roupas sedutoras, os elementos do encanto e a perdição masculina. Por outro lado, os processos fisiológicos associados ao sangue menstrual, gravidezes e partos com seus fluidos e seus gritos também não ficaram isentos de suspeita.
O autor recorda que grande parte das mulheres acusadas como bruxas eram parteiras ou amas de leite. Médicos e juristas também contribuíram para essa visão. Enquanto a medicina ressaltava a genitalidade oculta ou pouco desenvolvida, os legistas destacavam que “mais frágeis que os homens diante das tentações, devem evitar a companhia de pessoas de má vida, as conversas lascivas, os espetáculos públicos, as pinturas obscenas”.
O componente obsceno volta a aparecer no momento de pensar as pestes. As relações entre os corpos, os contágios e as exclusões tiveram um sentido especial em uma época em que cada acontecimento podia ser interpretado como um sinal da ira de Deus ou da intrusão de Satanás.
O pânico se torna visível em várias imagens e personagens. Por um lado, a do corpo doente - as pústulas na pele, a febre, os olhos arregalados, assim como os delírios dos enfermos que vagam pelas ruas ameaçando os corpos saudáveis que se atualiza no imaginário zumbi atual - e, por outro, reafirma-se a exclusão dos pobres e os vagabundos.
Essa população excluída constituiu o estopim perfeito para a transmissão de todas as doenças, tanto as reais como também as metafóricas. Se o medo foi, e ainda é, a medida e a forma de controle social, a figura do pobre-doente-malvado acaba sendo a contraposição perfeita ao bom cidadão.
Da mesma forma, a ideia de um vizinho perigoso permitiu o desenvolvimento de um tipo de economia sustentada na exploração de grandes populações e na busca do benefício exclusivamente pessoal.
Essa forma de exclusão encontra seu apogeu na construção da figura do estrangeiro encarnado no judeu, embora não apenas nele. Embora as relações comerciais do século XVI entre cristãos e judeus possam explicar certas reações de exclusão e inclusão, fica claro que o fator religioso prevaleceu e impulsionou perseguições, matanças e torturas sob a desculpa de que o judeu era “uma das faces do diabo”.
Tomando as sinagogas como “anti-igrejas”, acreditava-se que eram espaços que propiciavam o fim do mundo. Assim, foram construídas narrativas sobre ritos satânicos associados ao submundo. Se acusações como sequestro de crianças, envenenamento de águas e outros atos malévolos recordam atos de bruxaria, é porque ambos os elementos estão relacionados.
Em um ponto, a mulher, o judeu e o pobre têm em comum um corpo carregado de suspeitas. E se no caso do vagabundo, a doença o denuncia, as mulheres e o povo estrangeiro são mais suspeitos na medida em que sabem ocultar o mal, por isso é necessário que o castigo seja maior.
Evidentemente, o medo, por ação ou omissão, perpetrou os maiores genocídios dos últimos séculos, e em seu nome foi justifica uma infinidade de atos de vandalismo. Vale a pena recordar que esses mecanismos sobreviveram até o século XX, na forma do nazismo e sua brutal destruição dos corpos em campos de concentração, ou nos apedrejamentos de mulheres acusadas de adultério e outros métodos de tortura ou assassinato, em algumas culturas orientais.
Também não podemos esquecer a contribuição da medicina nos manuais de eugenia do século XIX e nas teorias lombrosianas que chegam até inícios do século XX.
O tratamento de doenças merece um parágrafo à parte. Não só porque os termos agora também envolvem as máquinas, mas porque, além disso, os efeitos da pandemia decorrente do vírus SARS-CoV-2 ainda subsistem em nossa vida cotidiana, excluindo corpos e impondo regras relacionadas à circulação.
Se tudo o que foi destacado relembra o trabalho de Michel Foucault é porque, visto em perspectiva, uma história do medo é uma história dos modos de disciplinamento, nem mais, nem menos. Perguntar-nos o que nos atemoriza, atualmente, é revisar as atuais formas de coação.
Em tempos em que tudo parece estar sob controle, onde tudo aparenta estar organizado a partir de nossos dispositivos, vale admitir que, no entanto, o medo não se extinguiu. Trata-se também de aceitar que, talvez, embora o espaço sideral, as profundezas do mar, o próximo, e mesmo o cérebro, quase não tenham segredos, continuarão existindo zonas inexploradas.
Vale para o mundo exterior, mas também para essa interioridade obscura, vedada e desconhecida que nos constitui como seres individuais, complexos e com sentimentos desconhecidos até para, ou especialmente, nós mesmos.
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Jean Delumeau: Todos os medos, o medo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU