02 Outubro 2018
K. Barth, em dissonância com Lutero, escreve com honestidade e lucidez: “O articulus stantis et cadentis ecclesiae não é a doutrina da justificação como tal, mas sim o seu fundamento e o seu ápice, isto é, a confissão de Jesus Cristo, ‘no qual estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência’ (Col 2, 3)” (p. 15, cit. Dogmatik IV/1, 583).
O comentário é do teólogo italiano Roberto Mela, professor da Faculdade Teológica da Sicília, publicado por Settimana News, 30-09-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nos dois primeiros capítulos do seu livro sobre a justificação (pp. 13-48) - intitulado Giustificati per grazia. La giustificazione nelle lettere di Paolo [Justificados por graça. A justificação nas cartas de Paulo], Ed. Queriniana, 2018 -, Antonio Pitta traça um rápido esboço do status quaestionis sobre os estudos paulinos sobre esse tema. Há décadas, acendeu-se o debate sobre qual é o centro da teologia paulina. Se, no passado, apontava-se para a “doutrina da justificação” (luteranos e protestantes em geral) e para a centralidade da Carta aos Romanos para reconstruir o pensamento teológico de Paulo (cf. Dunn e o seu Roman Debate, ao qual muitos se opuseram), agora muitos pensam que esse é apenas uma Nebenkrater (“cratera lateral”), no rastro de um trabalho por A. Schweitzer sobre a mística paulina que remonta a 1930 no original alemão.
A discussão sobre o pensamento paulino vê muitos expoentes favoráveis a entrever nas categorias participacionistas (“ser com Cristo”) as coordenadas mais representativas do seu pensamento e o tema da justificação pela fé sem as obras como um tema secundário, nascido de situações eclesiais concretas com as quais Paulo interage às vezes com ardor, outras vezes com mais ponderação de exposição.
No campo dos estudos paulinos, The New Perspective propõe-se a dar mais atenção à contextualização que é devida às várias cartas paulinas, cada uma com as suas características. Ela “aponta a atenção para os indicadores que separam os judeus dos gentios para avaliar a alternativa nos caminhos da justificação” (p. 184, cf. Dunn).
Cada vez mais, também está ganhando um grande peso o estudo da retórica paulina, atenta à organização literária dos escritos de Paulo em torno de uma tese a ser demonstrada. Não pura teologia, portanto, nem simples “distanciamento”. Pitta sugere usar as categorias da “generalização” ou da “radicalização” da estratégia retórica em relação à contingente situação epistolar que Paulo enfrenta (p. 21).
Nesses anos, a partir sobretudo do trabalho de E. P. Sanders, Paolo e il giudaismo palestinese (1977), começou-se a olhar para o judaísmo do primeiro século com olhos menos enganados pelos estereótipos acerca de uma religião judaica legalista e farisaica, que esperava a salvação a partir das obras da Lei. Uma revisitação aos textos do judaísmo do Segundo Templo, incluindo também os de Qumran (cf. carta haláquica 4MMT), mostra que havia a expectativa da salvação somente por parte da misericórdia de Deus e a visão do cumprimento das obras como meio para “estar dentro” do pacto em que se havia entrado (nomismo do pacto).
Justiça e justificação em Paulo têm uma acepção relacional e não jurídico-forense. A qualidade inerente a Deus pela qual ele é justo por ser fiel ao pacto que o liga aos homens e por tornar justos, isto é, fiéis ao pacto, os homens que dele se afastaram, infundindo neles o Espírito de Cristo morto e ressuscitado que os transforma em filhos de Deus, torna-se uma qualificação do homem redimido pelo mistério paradoxal da cruz, inserido com a fé e o batismo como criatura nova na vida divina.
A temática da justificação aparece com 1-2Coríntios e se difunde em Gálatas, Romanos e Filipenses (quatro cartas autorais), com algumas ramificações na primeira (Colossenses, Efésios) e segunda tradição paulina (2Tessalonicenses; 1-2Timóteo; Tito). O título do livro de Pitta, Giustificati per grazia, é extraído paradoxalmente de Tt 3, 7, um texto da segunda tradição paulina.
Em Paulo, o conceito de justiça/justificação sempre tem um valor salvífico, enquanto, na grecidade, o verbo assume muitas vezes um sentido negativo de “condenar” ou “declarar justo”, mas sempre com uma conotação forense.
Paulo dá uma conotação salvífica da justiça/justificação porque o pano de fundo sobre o qual se baseia (com citações diretas, indiretas, alusões e ecos) é a Escritura. Pitta ressalta como são importantes os textos bíblicos do profeta Habacuc (Hc 2, 4) e o livro do Gênesis (Gn 15, 6) como fontes demonstrativas, assim como o texto do Salmo 142, 2, enquanto o Salmo 97, 2-3 LXX estranhamente nunca é citado pelo Apóstolo.
O tema da justificação não é uma “doutrina” completa em si mesma, mas é um pensamento teológico, nem sempre coerente e linear, que nasce em resposta a situações eclesiais contingentes (divisões e culto da personalidade em Corinto, pressões pela circuncisão e a Lei por parte dos missionários judaico-cristãos na Galácia, choque entre “fracos” e “fortes” em Roma, culto aos anjos em Filipos).
A temática é testemunhada pela primeira vez em 1Coríntios, conectada com o mistério paradoxal do logos tou staurou, a “palavra da cruz”. A justiça de Deus em Cristo, que viu a divisão dos intérpretes paulinos entre os defensores de um genitivo subjetivo e aqueles do genitivo objetivo, é interpretada por Pitta para a passagem de 2Cor 5, 21 como um genitivo de agente: justiça de Deus (genitivo subjetivo) em Cristo (genitivo de autor).
Em geral, deve-se dizer que todas as cartas de Paulo são contingentes, incluindo Romanos. Sem a posição dos seus “adversários” (cujo pensamento nunca é relatado por extenso por Paulo e nem sempre pode ser corretamente reconstruído com a mirror reading) não se teriam as posições teológico-pastorais do Apóstolo. De adversários/opponents (ou, mais fracamente, interlocutores) paulinos identificados no passado com os judeus, agora se passou a identificá-los com judaico-cristãos, muitas vezes missionários também, mas com configuração teológico e pastoral diferente da de Paulo.
No restante do seu livro (pp. 49-208), Pitta analisa a variação que o tema da justiça/justificação assume nas várias cartas: conectada com a palavra da cruz em 1Coríntios (pp. 36-47), em 2Coríntios (pp. 48 -65) está conectada com a fé (os crentes como justiça de Deus) oposta à impiedade e conectada com a diaconia da caridade (a coleta).
Gálatas (pp. 66-98) conecta a justificação com a filiação divina. A propositio principalis (ou, servindo-se do grego, a tese, identificada por Pitta em Gal 1, 11-12 graças às suas características de brevidade, clareza, autonomia, função proléptica, capacidade de gerar as demonstrações posteriores) referente à natureza apocalíptica (reveladora, gratuita) do evangelho é demonstrada depois com uma probatio autobiográfica, uma experimental e uma escriturística, com uma parte paraclética que alguns enquadram na probatio.
Com uma fusão de horizontes, Paulo passa da situação do incidente de Antioquia à situação dos gálatas sob a pressão dos missionários judaico-cristãos: “A mimese ou a representação do discurso, proferido por Paulo em Antioquia, assume um papel fundamental de transição entre os dois primeiros capítulos de Gálatas e os posteriores” (p. 75). Justificados pela fé em Cristo, tornam-se filiação abraâmica, filhos no Filho descendente escatológico de Abraão, mediante o batismo. A justificação, porém, também é esperada (Gal 5, 2.12).
Na Carta aos Romanos (pp. 99-176), a justiça de Deus assume a conotação de centro do evangelho. A partir da situação contingente das dificuldades de relação entre os “fortes” e os “fracos” das comunidades de Roma (mais de uma, cerca de 20 segundo o paulinista Penna), Paulo expõe a sua tese principal em Romanos 1, 16-17 e a demonstra no rastro da carta com várias probationes introduzidas por sub-propositiones.
No Evangelho, revela-se a justiça de Deus, enquanto, fora dele, revela-se apenas a sua “ira”. A justiça/justificação de Deus na cruz de Cristo é apropriada mediante a fé. A justificação também traz a reconciliação e a vida de Cristo no Espírito. A justificação está relacionada com a palavra de Deus, que não é posta em xeque pela falta de fé de Israel em Jesus Cristo.
Romanos 9-11, desse modo, também está relacionado com a tese de 1, 16-17. A justiça divina como misericórdia eletiva tem Cristo como fim (telos) da Lei (cf. Rm 10, 4). Pitta argumenta: “... de acordo com o andamento argumentativo do início anterior é preferível pensar em Cristo não como o fim da Lei e do seu regime, mas como o seu fim e o seu cumprimento: tendo chegado a Cristo, a Lei não foi alcançada por aqueles em Israel que não creram no evangelho. E, por mais estranho que pareça, do lado cristão posterior, tal resultado é natural, porque a pedra de tropeço ou de escândalo não foi posta por Israel no próprio caminho, mas por Deus em primeira pessoa” (p. 169). Em Rm 14-15, Paulo mostra, enfim, as consequências éticas da justificação.
A Carta aos Filipenses expressa a conexão entre a justificação e a conformação a Cristo, enquanto as cartas da primeira (Efésios, Colossenses) e da segunda tradição (2Tessalonicenses, 1-2Timóteo, Tito) evidenciam, sim, a justificação pela graça, mas mostram um evidente deslize (shift) de significação. A justiça se torna uma virtude moral do justo. A Lei não é para o justo (1Tim 1, 9-10). Justificados pela graça (Tt 3, 4-7), é preciso buscar a (virtude da) justiça (2Tm 2, 22; cf. 1Tm 6, 11).
O volume conclui com a bibliografia (pp. 209-222, dividida entre comentários e contribuições), o índice analítico (pp. 223-226) e o índice dos autores (pp. 227-230).
O valioso trabalho de Pitta, um dos melhores paulinistas italianos e apreciado estudioso também no exterior, é um denso volume de estudo que, através da análise de uma categoria central (em todos os casos) no pensamento do Apóstolo – nascido, porém, da contingência e sem vontade de constituir uma “doutrina” –, permitirá às pessoas apaixonadas pela sua pessoa e pela sua teologia (e pastoral) uma atualização geral sobre o estado das pesquisas dos estudiosos e, mais em geral, uma ajuda hermenêutica fundamental para se aproximar das suas cartas, constituída pela “retórica paulina”.
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Justificados pela graça. Artigo de Roberto Mela - Instituto Humanitas Unisinos - IHU