03 Agosto 2023
"Parece-me anacrônico estigmatizar hoje o fim da transmissão familiar da experiência cristã, porque essa cesura está em curso, também na Itália, há mais de meio século - só não quisemos perceber isso no devido momento. Vivendo há muito tempo das sobras de uma introdução à fé que se extinguiam cada vez mais".
O comentário é do teólogo e padre italiano Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, publicado por Settimana News, 29-07-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Ao longo da minha vida tive a oportunidade de frequentar, conhecer e participar da vida de várias comunidades cristãs - na Itália e no exterior. Essas experiências me fizeram encontrar vivências de fé comunitária que eram e estão longe de ser infantis, porque a fé imersa na vida, em seus momentos luminosos e em suas difíceis voltas e reviravoltas, amadurece e é colocada à prova. De fé adulta, em nossas comunidades, existe muito mais do que possamos imaginar. Denunciar sua ausência como resultado sistêmico significa não a honrar adequadamente e não ser capaz de percebê-la.
Creio que a ferida não é tanto uma infantilidade generalizada nas vivências de fé, mas sim a incapacidade da rotina pastoral de se alinhar com os percursos de fé madura que existem em nossas comunidades. Mas nem sequer tenho vontade de jogar toda a cruz sobre o ministério ordenado, porque existem padres e diáconos capazes de se tornar próximos da maturidade da fé.
O freio muitas vezes deve ser buscado em outro lugar, naquele disseminado medo eclesial de deixar um modelo já esgotado na sua eficácia e significatividade, por um lado, e na obsessão curial de manter tudo sob controle, pelo outro. Um sistema, este, que cria para si um mundo paralelo artificial que resiste diante de todas as evidências. Perdendo possibilidades frutíferas e, com isso, correndo também o risco de perder as pessoas. Castramos assim as forças e os recursos da fé que ainda habitam as nossas comunidades cristãs.
Também me parece anacrônico estigmatizar hoje o fim da transmissão familiar da experiência cristã, porque essa cesura está em curso, também na Itália, há mais de meio século - só não quisemos perceber isso no devido momento. Vivendo há muito tempo das sobras de uma introdução à fé que se extinguiam cada vez mais.
Nesse longuíssimo período de tempo não percebemos o sentido da comunidade para da transmissão da fé às gerações vindouras, impedindo-nos de perceber a importância ministerial da capacidade de desempenhar a sua atividade de muitos crentes. Apenas para fazer uma referência à conhecida questão do afastamento dos jovens da fé e da vivência paroquial, não conseguimos perceber a importância pastoral da presença de cristãos e cristãs nos contextos onde vivem os nossos jovens. Estou pensando aqui na escola, mas não só nos professores de religião, e na universidade - só para dar um exemplo.
São âmbitos não só de proximidade com a vivência dos jovens, mas também de aprendizagem para o seu acompanhamento em seus itinerários de vida. Não para catequizá-los, mas para desenvolver uma sensibilidade de fé à sua experiência humana no mundo atual - e oferecer-lhes a proximidade dessa sensibilidade que se tornou disponível a aprender com as suas vivências.
Se olharmos para os Evangelhos, Jesus sempre ancora sua palavra sobre Deus nas situações cotidianas da vida humana. E aquela palavra faz sentido exatamente porque pode ser reconduzida até a experiência concreta do dia a dia. Cada banalidade da vida pode tornar-se uma oportunidade para inserir a boa notícia do Evangelho – só que é preciso estar ali, onde a vida é realmente vivida, e não numa torre de marfim que nos torna imunes e muitas vezes insensíveis a ela.
Todo cristão habita diariamente esses espaços da vida concreta, frequentando as dobras da vida que talvez um dia permitam uma palavra de Deus que não resulte estranha e distante das vivências humanas.
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O sentido de comunidade para a fé. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU