30 Mai 2023
"Na Igreja Católica é difícil compreender que a questão dos abusos não é apenas generalizada, mas também de longa duração - e por isso mesmo deve tornar-se a prioridade nas suas preocupações, ações, decisões".
O artigo é de Marcello Neri, teólogo e padre italiano, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, publicado por Settimana News, 28-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Há divisores de águas na vida de uma instituição que não parecem desempenhar tal papel de imediato, talvez porque se incorporem no devir das vivências pessoais. E, no entanto, mesmo estas últimas não são irrelevantes para o destino de uma instituição como a Igreja Católica.
Um desses limiares foi ultrapassado no final de março passado, quando Hans Zollner apresentou sua demissão da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores. Depois de uma vida inteira de trabalho para construir uma Igreja que saiba cuidar, inclusive estruturalmente, das vítimas dos abusos sexuais nela cometidos, até a fundação do Instituto de Antropologia na Universidade Gregoriana, Zollner abriu agora mais uma frente diante das relutâncias e das resistências inerentes ao corpo institucional da Igreja Católica.
Um trabalho pelas beiradas, pode-se dizer, em que se tenta convocar a opinião pública e o debate como fator externo de injunção a uma tarefa diante da qual não se pode mostrar timidez e falta de clareza. Que, no entanto, continuam a reinar na Igreja.
As contradições internas prejudicam a confiabilidade da instituição: “A Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores não aplica a si mesma os critérios que a Igreja oficialmente se impôs: assumir responsabilidades, prestar contas e transparência” (entrevista à Taz, 27 de maio de 2023).
Também o enquadramento da Pontifícia Comissão na estrutura curial da Igreja Católica parece vaga e difícil de definir: "Se lermos os documentos dos acordos entre a Comissão e os outros dicastérios vaticanos, segundo a minha impressão, pode-se ver que tudo é muito vago e difícil de implementar. Fica-se no nível das declarações de intenção, sem saber exatamente qual seria o objetivo e quem deve verificar o todo. Mesmo a colocação da Comissão no Dicastério para a Doutrina da Fé não é uma escolha feliz. Mas agora as coisas estão assim, e precisamos de alguém que esteja disposto a enfrentar os conflitos com decisão. E o card. O'Malley não faz isso. Trata-se de um âmbito que gera muita resistência no Vaticano, como em todos os lugares".
Na Igreja Católica é difícil compreender que a questão dos abusos não é apenas generalizada, mas também de longa duração - e por isso mesmo deve tornar-se a prioridade nas suas preocupações, ações, decisões. Se, por um lado, o Papa Francisco, "no que diz respeito à empatia, calor e proximidade com as pessoas cuja dor ele toca, é totalmente credível”, por outro lado, embora "tenha mantido o tema dos abusos bem desperto na consciência da Igreja, não o tornou a prioridade número um de seu pontificado. Suas prioridades são a luta contra a pobreza, a migração e a ecologia – certamente os abusos desempenham um papel importante, mas não o mais importante”.
Num contexto civil, político e cultural, em que existe uma tendência mundial para relativizar a questão dos abusos sexuais de menores, uma ação profética e transparente da Igreja para consigo mesma teria um significado primordial.
São demasiadas as hesitações e as insuficiências na nossa sociedade e cultura: “é urgente que em todos os ciclos de estudos e locais de formação que preparem para o trabalho com crianças e jovens, a tutela e proteção de menores seja uma disciplina obrigatória. Até hoje, nada disso se encontra nas faculdades de medicina, psicologia e ciências da educação. E isso me parece inacreditável".
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Igreja-abusos: a salvo da opinião pública? Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU