26 Mai 2023
"Por isso, a renúncia do padre Zollner da comissão contra os abusos é um sinal de alerta. Há poucos dias, ao receber a comissão em audiência, Francisco pediu que fosse feito um “relatório anual sobre o que vocês consideram que está funcionando bem e sobre o que não funciona, para poder aportar as mudanças apropriadas”. Pode ser um sinal", escreve Marco Politi, ensaísta italiano e vaticanista, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 25-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um fantasma assombra o palácio apostólico: a sombra de um jesuíta mestre de mosaicos, apreciado por três pontífices, que foi seriamente acusado de múltiplos abusos. E há um observador silencioso, também jesuíta, que pede transparência na luta contra as manipulações psicossexuais contra pessoas frágeis.
É uma história que não pode ser arquivada.
A súbita hospitalização do Papa Francisco na policlínica Gemelli, no final de março passado, e a sucessão de cerimônias pascais obscureceram naqueles dias um acontecimento crucial: a renúncia do jesuíta Hans Zollner da Pontifícia Comissão para a tutela dos menores, que ele mesmo havia ajudado a fundar.
No mundo vaticano, o padre Zollner foi durante quase uma década o incansável promotor de iniciativas para levar os episcopados a não ignorar a gravidade do fenômeno dos abusos sexuais e compreender a necessidade de organizar estruturas para enfrentar os problemas que disso derivam. Da escuta das vítimas à importância de investigar o fenômeno, à urgência de curar as feridas decorrentes das violências.
Zollner, diretor do Instituto de Antropologia da Universidade Gregoriana, ainda que de forma reservada, foi o elemento propulsor daquela Comissão para a tutela de menores que Francisco criou, confiando sua direção ao cardeal estadunidense Sean O'Malley, e que com a reforma da Cúria organizada pelo papa foi incluída na estrutura do Dicastério para a Doutrina da Fé.
Quando a notícia se espalhou, um comunicado da comissão destacou expressamente a contribuição de Zollner na implementação de muitos de seus projetos e programas, culminando na cúpula mundial dos presidentes das conferências episcopais convocada por Francisco em fevereiro de 2019. O religioso foi definido “embaixador da salvaguarda” dos menores no mundo.
O problema, no entanto, está no fato de que Zollner não se aposentou, mas pediu demissão expressando críticas precisas.
Em sua opinião, não é clara a relação entre a comissão e o Dicastério para a Doutrina da Fé. Não está claro como são selecionados os membros para a comissão e quais são seus respectivos papéis. Nem sequer está claro, acrescenta o religioso, de que maneira são geridos os fundos da comissão. A crítica mais relevante, no entanto, diz respeito à falta de "transparência sobre as modalidades de tomada de decisão dentro da comissão". Muitas vezes, observa Zollner, "os membros receberam informações insuficientes e comunicações vagas sobre a forma como algumas decisões foram tomadas". Palavras pesadas. E o pensamento corre para uma situação marcante, que até agora não encontrou explicações no Vaticano e que continua sendo uma dúvida para a opinião pública, principalmente católica: o caso Rupnik.
Marko Rupnik, jesuíta, é um artista (autor de mosaicos) esloveno e teólogo muito apreciado no Vaticano, queridinho das altas hierarquias eclesiásticas durante três pontificados. É em grande parte de sua autoria a decoração em mosaico da capela "Redemptoris Mater" no palácio apostólico, onde são realizados os exercícios espirituais na presença do pontífice durante a Quaresma. Seus mosaicos são encontrados em basílicas, igrejas e santuários em Fátima, San Giovanni Rotondo, Lourdes, Madri, Santo Domingo, Cracóvia, Washington e muitos outros lugares. Um "artista e pregador da corte", teria sido definido no Renascimento.
Nos últimos anos, no entanto, as acusações de abusos sexuais (com adultos) se multiplicaram contra ele. Casos precisos, que a Congregação para a Doutrina da Fé não rejeitou como falsos, mas considerou prescritos.
Há um episódio, porém, absolutamente comprovado pelas comissões eclesiásticas, que para a Igreja Católica assume as características de um caso de gravidade suprema: ter absolvido em confissão uma mulher, por ele psicologicamente manipulada e abusada, com quem mantinha relações sexuais. Aqui para a doutrina canônica católica não se trata mais de um crime/pecado, mas de um crime/sacrilégio, porque o poder de absolver - de abrir e fechar simbolicamente o acesso ao reino dos céus - é um sacramento.
Por essa razão, a Congregação para a Doutrina da Fé, ao cabo de minuciosas investigações, emitiu na época um decreto de excomunhão automática (latae sententiae). O latim é uma língua esplêndida e concisa. Latae sententiae significa que, no exato momento em que se comete o crime, é como se já estivessem batendo à porta do infrator e a sentença lhe fosse "entregue". Só que a excomunhão imposta a Rupnik (maio de 2020) precisava da confirmação papal, que nunca veio. No período de algumas semanas, a excomunhão foi anulada. Não houve nenhuma transparência sobre os motivos.
Enquanto isso, a Companhia de Jesus impôs uma série de restrições à atividade pública de Rupnik e, como os rumores sobre seu comportamento se intensificaram no final de 2022, o delegado encarregado de acompanhar as investigações sobre ele, padre Johan Verschueren, exortou qualquer um que tivesse sido ferido a se apresentar. Em fevereiro passado, o Repubblica revelou que os jesuítas haviam reunido um dossiê de 150 páginas com repetidos depoimentos de "violência psicológica, abuso de consciência, abuso no âmbito sexual e afetivo, abuso espiritual" cometidos durante décadas de 1985 a 2018.
Tudo isso não pode ser esquecido. Nem pode ser arquivada a estranha história da excomunhão pela absolvição sacrílega milagrosamente cancelada. O Papa Francisco em uma recente entrevista à Associated Press frisou que "somos todos pecadores. O crime é, sim, perdoado, mas você paga e repara". No caso Rupnik não aconteceu. Rupnik não recebeu nenhuma penalidade e isso - agora se sabe - é a pior injustiça que pode ser reservada às vítimas. Portanto, a atenção se volta para o palácio apostólico.
Francisco é o pontífice que no campo dos abusos mais interveio para fazer limpeza. Ele afastou muitos bispos culpados de encobrimento, expulsou dois cardeais do colégio cardinalício, processou canonicamente e expulsou do estado clerical um cardeal (McCarrick) e um embaixador do Vaticano (o núncio Wesolowski), não cobriu com a imunidade um cardeal processado em seu país (Pell), tornou rigoroso os procedimentos para investigar os culpados de alto nível. E mais, deve acertar as contas com a maioria das conferências episcopais, que silenciosamente sabotam e não querem abrir os armários com os esqueletos.
Por isso, a renúncia do padre Zollner da comissão contra os abusos é um sinal de alerta. Há poucos dias, ao receber a comissão em audiência, Francisco pediu que fosse feito um “relatório anual sobre o que vocês consideram que está funcionando bem e sobre o que não funciona, para poder aportar as mudanças apropriadas”. Pode ser um sinal.
As opções (geo)políticas da Igreja de Francisco: trajetória e perspectivas
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Vaticano, a renúncia do padre Zollner da comissão contra os abusos é um sinal de alerta. Artigo de Marco Politi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU