13 Agosto 2024
Entrou em cena numa manhã de meados de verão, francamente inesperada, a carta do Papa Francisco Sobre o papel da literatura na educação. Concebida inicialmente como dirigida a seminaristas e padres, agora esquecidos de uma época em que o conhecimento literário fazia parte de sua preparação para o ministério e seu exercício pastoral, na versão final se dirige a "qualquer cristão" (nº 1).O artigo é de Marcello Neri, teólogo e padre italiano, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, 09-08-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Um texto fora dos esquemas, intrigante e matreiro, onde, como na literatura, o leitor/leitora se torna, no jogo do texto, outro autor: "o leitor é muito mais ativo quando lê um livro. De certo modo, reescreve-o, amplia-o com a sua imaginação, cria um mundo, usa as suas capacidades, a sua memória, os seus sonhos, a sua própria história cheia de dramatismo e simbolismo; e assim surge uma obra muito diferente daquela que o autor pretendia escrever" (nº 2).
Porque, através do fogo da literatura, o Papa Francisco vislumbra um destino bem calibrado dessa sua Carta - um destino que poderá se manifestar se o leitor/leitora se deixar atrair pela intriga teológica que ela põe em jogo. Possibilidade, esta, não cumprida pelo texto da Carta por ser é possível somente com a cumplicidade da inteligência e da sensibilidade de quem a lê.
De fato, ela é composta por dois focos, como se fosse uma elipse. O primeiro, mais evidente, tem um perfil edificante-formativo ao qual deve ser reconhecido seu mérito. O esquecimento ministerial da literatura está "na origem de uma forma de grave empobrecimento intelectual e espiritual dos futuros sacerdotes, que ficam assim privados de um acesso privilegiado, precisamente através da literatura, ao coração da cultura humana e, mais especificamente, ao coração do ser humano" (n. 4).
Declarar o mundo literário irrelevante para a fé e o ministério significa "silenciarmos os símbolos, mensagens, criações e narrativas com que (as culturas) se captaram e se quiseram mostrar e evocar os seus feitos e ideais mais belos, tal como as suas violências, medos e paixões mais profundas" (n. 9). O catolicismo e sua fé têm uma enorme dificuldade em falar sobre a violência e a miséria que prosperam também na Igreja, muitas vezes naqueles que são - ou deveriam ser - seus ministros autorizados. Nesse ponto, a linguagem católica e eclesiástica sofre de uma grande mistificação, que distorce a verdade das coisas porque não sabe, e não quer, nomear as coisas como elas são.
Riccardo Magris afirmava que o catolicismo não sabe mais contar fábulas, talvez porque não leia mais nenhuma - e talvez também porque não tenha mais ninguém a quem contá-las... A fábula é um gênero narrativo pensado (também) para a formação da pessoa; é o lugar literário onde até mesmo os filhotes do homem podem ter suas primeiras práticas de enfrentamento com os lados sombrios da vida e com a violência que habita as relações humanas. O mal e a escuridão não como o problema dos outros, já resolvido por nós, mas como um dado comum do humano viver - que é também o viver do crente (e do padre).
"Na violência, na limitação ou na fragilidade dos outros, temos a possibilidade de refletir melhor sobre a nossa. Ao dar ao leitor uma visão alargada da riqueza e da miséria da experiência humana, a literatura educa o seu olhar para a lentidão da compreensão, para a humildade da não simplificação, para a mansidão de não pretender controlar a realidade e a condição humana através do julgamento" (nº 39).
Mas é o segundo foco da elipse dessa Carta que pega o leitor/leitora de surpresa, disposto a sair do fácil fechamento do círculo. Pois na cumplicidade da leitura, que ela só pode invocar, essa Carta de Francisco é o incipit de uma possível teologia fundamental que está por vir - literalmente o alter da Fides et ratio de João Paulo II.
O teólogo e a teóloga fundamentais podem continuar a martelar contra o prego que agora está completamente cravado na parede à sua frente, ou podem largar a arma dessa batalha fútil e se voltar para o mundo que realmente existe. E escrever o que a Carta não escreve e não diz - porque não sabe, mas sabe que continuar nesse exercício de escrita e leitura é vital para o mundo e para a fé.
No prego da razão, a esta altura, não podemos mais pendurar nada - nem mesmo aquela migalha de racionalidade de que todos nós tanto precisamos neste momento. E eis aqui, então, a sugestão de colocar em campo uma reeducação da própria inteligência da fé, recalibrada em torno do fogo prismático de fides et affectus. Porque se a ratio pode se imaginar como um monólogo sem distinção de vozes, perfeitamente unitária na solidão de sua abstração, o affectus fala as linguagens da vida e se condensa naquelas práticas efetivas do viver que são as culturas.
"A missão eclesial soube desenvolver toda a sua beleza, frescura e novidade no encontro com diversas culturas – e muitas vezes graças à literatura – nas quais se enraizou, sem medo de arriscar e de extrair o melhor daquilo que encontrou" (nº 10). Porque é nos dialetos da vida que "é possível reconhecer a presença do Espírito na variegada realidade humana, ou seja, é possível captar a semente da presença do Espírito já plantada nos acontecimentos, sensibilidades, desejos, tensões profundas dos corações e dos contextos sociais, culturais e espirituais" (n. 12).
Ao triste (e ocidental) catolicismo do nosso tempo, feito de "um solipsismo ensurdecedor e fundamentalista que consiste em acreditar que uma certa gramática histórico-cultural tem a capacidade de exprimir toda a riqueza e profundidade do Evangelho" (n. 10), é preciso reagir opondo aquele "Cristo de carne" de memória pasoliniana - o logos filial "feito carne, feito humano, feito história" (n. 14). O Jesus cuja carne é "feita de paixões, emoções, sentimentos, histórias concretas, de mãos que tocam e curam, de olhares que libertam e encorajam, de hospitalidade, perdão, indignação, coragem, intrepidez" (n. 14).
É do mundo da literatura que a inteligência evangélica da fé aprende a sensibilidade necessária para prestar honra ao corpo vivido e sofrido de Jesus (na esteira de Paulo VI no seu Discurso aos Artistas, cf. n. 21): "A originalidade da palavra literária consiste no fato de exprimir e transmitir a riqueza da experiência, sem a objetivar na representação descritiva do conhecimento analítico ou no exame normativo do juízo crítico, mas enquanto conteúdo de um esforço expressivo e interpretativo para dar sentido à experiência em questão" (n. 35). E depois, um pouco mais adiante, Francisco continua lembrando que "o olhar forma o leitor para o descentramento, para o sentido do limite, para a renúncia ao domínio cognitivo e crítico da experiência" (n. 40).
O affectus, que é atestado no mundo pelas práticas, traz consigo a necessidade de uma crítica do julgamento para que não seja exercido "como instrumento de domínio, mas como impulso para uma escuta incessante e como disponibilidade para se envolver nessa extraordinária riqueza da história que se deve à presença do Espírito, e também se dá como Graça" (n. 40).
Praticando o mundo das letras, a linguagem da Igreja pode experimentar uma libertação da má circulação que a encerra em si mesma, tornando-a opaca em relação ao drama da existência humana e inexpressiva em relação à paixão dos afetos que Deus colocou em jogo em favor da humanidade e do mundo: em outras palavras, o ídolo ao qual o catolicismo e a Igreja estão sacrificando o Evangelho do Reino (cf. n. 42).
Somente uma linguagem purificada no crisol da literatura pode fazer ressoar aquele fruir da experiência cristã de Deus que Jesus saboreou nos dias que passou conosco.
A carta do Papa Francisco é muito bela (pode-se sentir que Antonio Spadaro está por trás dela como um dos redatores), mas chega tarde. Vejo uma Igreja preocupada com o número cada vez menor de fiéis, com uma formação que não consegue acompanhar as mudanças dos tempos, inerte diante de estruturas que fecham e ninguém sabe o que fazer com elas. É como se o Papa tivesse seu olhar voltado alhures, enquanto o resto da Igreja olha para o outro lado. Continua sendo um hino maravilhoso que expressa o amor pelas belas letras.
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Francisco e as belas letras. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU