A traição dos teólogos. Artigo de Severino Dianich

Reprodução da obra de Caravaggio, A Captura de Cristo | Disponível na National Gallery of Ireland / Wikimedia Commons

02 Setembro 2024

"Se se deve denunciar uma 'traição aos teólogos', hoje certamente não é porque o seu pensamento se deixa envolver em paixões ideológicas, políticas ou em movimentos de interesse econômico, mas porque se cala", escreve Severino Dianich, teólogo italiano, em artigo publicado por Settimana News, 31-08-2024.

Segundo ele, "a opinião pública teria o direito de esperar dos teólogos ajuda na compreensão do judaísmo, com a sua tradição de fé, que o próprio Jesus alimentou, visto que a sua presença no mundo, transversal a muitas nações e culturas, é um fenômeno muito complexo, com mil facetas espirituais e culturais diferentes, para cujo conhecimento necessário os teólogos poderiam dar um contributo decisivo, também para contrariar o redespertar do antissemitismo no mundo. Na verdade, não basta deplorar a exploração das narrativas bíblicas implementadas pelo governo israelense para encobrir o horror das mais de 40 mil mortes na Faixa de Gaza".

Eis o artigo.

Em 1927 Julien Benda publicou La Trahison des Clercs, um panfleto de sucesso, no qual denunciava a traição dos intelectuais franceses e alemães que, abandonando a sua vocação universal, a promoção do valor da justiça e da democracia, se deixaram levar pela fúria das paixões políticas daqueles anos, a luta de classes, o nacionalismo, o racismo.

O título muito sugestivo daquele texto deveria permanecer uma pedra no sapato daqueles que "são pagos para pensar", como disse um dia um professor, o matemático Giovanni Prodi, numa conversa sobre as responsabilidades dos professores universitários, ou seja, aqueles que fazem o trabalho de produzir e manter viva a consciência crítica de um povo.

Os teólogos também pertencem plenamente à categoria (mesmo que, para ser sincero, mal remunerados ou não remunerados) cuja tarefa consiste em exercitar e promover o pensamento crítico na Igreja, componente vital da experiência de fé.

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Se se deve denunciar uma “traição aos teólogos”, hoje certamente não é porque o seu pensamento se deixa envolver em paixões ideológicas, políticas ou em movimentos de interesse econômico, mas porque se cala.

Nunca antes as grandes tensões mundiais, os conflitos políticos e econômicos, os programas contraditórios para o futuro apresentados pelos líderes que importam, trouxeram à mesa questões que afetam profundamente a humanidade e, por isso, não podem deixar de envolver os pensadores empenhados na reflexão na experiência de fé no Deus que se fez homem.

Além dos milhares de outros conflitos armados que sangram o mundo, duas guerras assumem vestes religiosas, mais ou menos explicitamente, a da Ucrânia e a da Palestina e de Israel.

O Patriarca de Moscou prega a guerra santa contra o Ocidente descristianizado e corrupto. Os governantes de Israel não hesitam em vestir-se no lugar de Josué para reproduzir as suas façanhas contra os palestinos de hoje, quando Deus “fez as tribos de Israel habitarem nas suas tendas” (Sl 78,55).

É fácil imaginar que perturbações esta recordação por parte de Israel das conquistas da terra, narrada pelas Sagradas Escrituras, produz nas consciências dos palestinos cristãos.

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Seria de esperar que os estudiosos da Bíblia e os liturgistas ajudassem os leitores da Bíblia e os participantes nas celebrações litúrgicas a reunir as notícias das notícias sobre as atrocidades que o governo de Netanyahu está cometendo em Gaza e na Cisjordânia e as narrativas bíblicas sobre a conquista da terra prometida, sem que estes possam de forma alguma legitimar os primeiros.

O problema da guerra, de fato, hoje, não se contenta em provocar velhas e novas doutrinas sobre a possibilidade de uma guerra justa, mas até repropõe velhas e novas motivações explicitamente religiosas, com os apelos relacionados no Oriente Médio ao Alcorão por um lado e à Bíblia por outro.

E tudo isto não deveria ter provocado uma presença densa de teólogos nos meios de comunicação, dos jornais às redes sociais, e debates acalorados com outros comentadores e até entre si, na ocorrência de divergências de opinião, de modo a despertar a curiosidade da opinião pública? Nada disso está acontecendo.

Depois de duas guerras mundiais, além das muitas guerras de independência, desencadeadas pelos nacionalismos dos últimos dois séculos, a nossa geração parece tão insensata que tem a coragem de reconduzi-la à dignidade dos movimentos e dos programas políticos.

Mas não só isso. Mesmo a grande tradição cultural cristã é descaradamente considerada como conferindo-lhes uma nobreza superior. Onde eminentes católicos e bispos cedem a esta onda, perguntamo-nos o que aconteceu ao esforço insone dos padres conciliares do Vaticano II para dar à Igreja do futuro, a nós, a constituição Gaudium et spes com a sua afirmação categórica: «Desde que em virtude da sua missão e da sua natureza, não estando ligada a nenhuma forma particular de cultura humana ou de sistema político, econômico ou social, a Igreja, pela sua universalidade, pode constituir um vínculo muito estreito entre diferentes comunidades humanas e nações" (GS 42).

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É verdade que o nosso tempo, pela primeira vez na história, viu convergir as principais autoridades religiosas do mundo na promoção comum da paz, mas não é certamente certo que as grandes massas religiosas a quem se dirige o seu magistério, certamente e não os seus governos, aceitaram a sua mensagem inovadora.

Ninguém ignora que o terreno fértil para conflitos e guerras é formado pelos enormes interesses econômicos em jogo. O neocapitalismo e a deificação do mercado livre caracterizam-se hoje, como nunca antes na história, pela acumulação de riqueza nas mãos de poucos.

É um fenômeno impressionante que impõe novas responsabilidades à consciência cristã e, aos teólogos, uma reflexão renovada sobre o problema do direito à propriedade privada e, em geral, sobre o tema da riqueza.

A revolução digital está transformando profundamente todas as relações humanas, arrastando-nos para um futuro ainda por imaginar e, possivelmente, planejado.

Milhares de outros temas e problemas na agenda hoje parecem atrair o interesse dos teólogos e reavivar as suas responsabilidades perante a conversação pública. Basta pensar na diversidade de julgamentos que se poderia apresentar a respeito da guerra na Ucrânia para ver surgir um debate entre teólogos, que não poderia deixar de ser de amplo interesse para a opinião pública e que faria ressoar entre as mil vozes o do evangelho, o grande ausente, muitas vezes silenciado pelos próprios cristãos.

Muito mais ainda, a opinião pública teria o direito de esperar dos teólogos ajuda na compreensão do judaísmo, com a sua tradição de fé, que o próprio Jesus alimentou, visto que a sua presença no mundo, transversal a muitas nações e culturas, é um fenômeno muito complexo, com mil facetas espirituais e culturais diferentes, para cujo conhecimento necessário os teólogos poderiam dar um contributo decisivo, também para contrariar o redespertar do antissemitismo no mundo. Na verdade, não basta deplorar a exploração das narrativas bíblicas implementadas pelo governo israelense para encobrir o horror das mais de 40.000 mortes na Faixa de Gaza.

Estas não são questões a serem discutidas nos círculos dos estudiosos, porque implicam a responsabilidade dos teólogos cristãos para com a sociedade civil. O seu silêncio será atribuído pelos futuros historiadores à culpa da Igreja do nosso tempo, porque a Igreja não é o Papa, que se encontra praticamente sozinho, proclamando e reiterando, com teimosa insistência, o julgamento do Evangelho sobre os acontecimentos presentes.

Ninguém entre o povo de Deus deve sentir-se mais responsável do que os teólogos por desenvolver e expressar o seu próprio julgamento e abrir debates dignos da sua experiência sobre o que está acontecendo no nosso tempo. Uma feliz exceção, que me sinto bem em mencionar, para dar crédito ao mérito, é a de Giuseppe Lorizio no jornal Avvenire.

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Os teólogos italianos estão bem organizados nas suas diversas associações, entre as quais, além disso, criaram também uma coordenação válida e eficaz, a CATI. O que falta e deve ser urgentemente despertado e promovido é a responsabilidade para com o mundo exterior e a fuga do espaço estreito dos próprios círculos.

Poderíamos também, para ir ao fundo, referir, como possível modelo, a forma como os missionários do PIME, com o seu blog Asianews, conseguem chegar a vastas camadas de pessoas, mesmo aquelas que normalmente estão fora da vida da Igreja.

É verdade que o contexto e as circunstâncias da época eram muito diferentes, mas não deixa de ser verdade que os teólogos daquela época, ao contrário do que acontece hoje, tiveram realmente um forte impacto na opinião pública do seu tempo, se num determinado dia da Década de 1970 o jornal La Repubblica de Scalfari dedicou uma página inteira à entrevista do então vice-presidente da ATI, conduzida por Domenico Del Rio, um dos melhores especialistas do Vaticano na história do jornalismo.

Comentários:

Stefano

Não há dúvida de que poderíamos dizer o mesmo de filósofos e poetas que são igualmente silenciosos, mas os teólogos têm um dever para com a verdade que vem de fora deles. Você pode não ouvir a si mesmo, mas não ouvir a Deus significa perder uma oportunidade de transcender a si mesmo.

Chiara 
Acrescento também Hans Küng, entre os muitos transalpinos banidos e demitidos... sem diálogo não há investigação. Amém

Emanuele 

O que P. Dianich escreve está certo, mas devemos também ter uma discussão histórica e crítica em relação à Igreja Católica (refiro-me à hierarquia, não a outras). Nas últimas décadas, os teólogos, essencialmente diocesanos e religiosos, se não fossem bem-vindos - e necessariamente devem ser, porque aqueles que são inspirados pelo Evangelho são necessariamente contra a corrente - se não fossem bem-vindos, eu estaria dizendo, eram denegridos e marginalizados. Isso foi quando foi bom. Caso contrário, teria terminado pior. Pensemos em Don Milani e na sua teologia militante ou em David Maria Turoldo, teólogo-poeta.

O que Ratzinger fez para promover uma nova geração de teólogos? Ele não os amordaçou com "Ad tuendam fidem", isto é, com um documento absurdo, que queria humilhar o pensamento livre em nome de uma doutrina (entre outras coisas, Ratzinger parece não ter certeza de que estamos na história e qualquer doutrina sofreu alterações e continuará a sofrê-las)? Hoje, na Igreja Católica, quem são os teólogos que podem ser lidos? Ninguém, exceto os mandantes, ou seja, os poucos príncipes do momento que impunham o seu pensamento aos outros, como se fossem os únicos possuidores da verdade. A situação no contexto evangélico-protestante é muito diferente.

Pensemos nos valdenses: apenas 20 mil pessoas. Mas quantos teólogos e que profundidade! Pensemos apenas no recentemente falecido Paolo Ricca. Por que uma comunidade tão pequena ostenta tal qualidade de pensamento cristão? Porque faltam duas coisas no contexto católico: promoção e sobretudo liberdade. Seria bom abrir um capítulo de discussão pública sobre isso.

Chiara 

Concordo com Emanuele, as novas vozes foram silenciadas uma após a outra e sem liberdade a investigação não pode avançar. Cada um de nós tem um pensamento livre no coração, um teólogo ou teóloga que ampliou seus horizontes e que, por algum anátema, não deveria ler. Penso em “In the Beginning of Joy” de Matthew Fox, um livro cujas ideias poderiam mudar muitos dos preconceitos dos nossos teólogos “caseiros”. Conheci-o por conselho de amigos estrangeiros, participei de algumas de suas conferências em Milão, na igreja valdense, e descobri que ele havia sido expurgado. Que pena!

Fábio Cittadini

Concordo com o teólogo “militante” Dianich. Parece que percebo como a teologia é achatada em três frentes. A primeira: produção de manuais, que dispensa pensamento crítico. Segunda frente: o esforço para tornar o magistério do Papa Francisco teologicamente atraente, para mostrar a sua profundidade quase como se não a tivesse. Terceira frente: o esforço para defender teologicamente uma tradição que o Concílio Vaticano II atualizou. Em tudo isto, a teologia como conhecimento crítico da Igreja morre. Existem alguns bons teólogos, mas o 'papà' prefere torná-lo bispo.

Giuseppe Guglielmi

Apenas por uma questão de veracidade da informação: o “focinho” Ad tuendam fidem (1998) foi na verdade colocado por João Paulo II (o texto é um motu proprio pontifício!). Sem dúvida, esta ferramenta - para permanecer novamente na metáfora usada no comentário anterior - não cai de cima, mas foi preparada pelo então prefeito Ratzinger com a Instrução sobre a vocação eclesial do teólogo "Donum veritatis" (1990) e depois testado novamente pelo mesmo prefeito com a “Nota explicativa doutrinária” (1998: um mês após o motu proprio). Os historiadores da teologia (Komonchak, Ruggieri, Alberigo, Boyle, Gaudemet, etc.) recordam, porém, que já durante o pontificado de Paulo VI a mesma Congregação começou a preparar a ferramenta. De fato, em 1973, este dicastério emitiu o documento “Mysterium ecclesiae”, que não só repreendeu alguns teólogos e inseriu uma distinção nos níveis do magistério que será canonizado (no sentido de entrar na CIC) em 1998, mas introduziu (após o esquema De Ecclesia do Vaticano II) novamente no jargão teológico-doutrinário a expressão “as” verdades que tanto sucesso teriam posteriormente.

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