19 Agosto 2024
Apresentar o professor Paolo Ricca creio que seja inútil, dada a sua grande notoriedade, o fato de ser uma referência para crentes e não crentes, a sua autoridade no campo não só bíblico, mas também ecumênico, pastoral e dada a sua longa amizade com o nosso quinzenal.
A entrevista é de Stefano Zecchi, publicada por Rocca, 01-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Desde a infância no Piemonte, em Val Pellice, sede de uma importante comunidade valdense até o encontro na Universidade de Basileia com Karl Barth, o teólogo Paolo Ricca neste encontro nos revela também o seu caminho de fé, nos conta as suas dúvidas e como chegou a sua vocação, como se tornou pastor, como se tornou homem de estudo e de fé.
A entrevista foi publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 22-02-2024. Republicamos a entrevista fazendo memória de Paolo Ricca, falecido no dia 15-08-2024.
Professor Paolo Ricca, como vai?
Vou bem, obrigado, estou de pé. Na minha idade (88 anos) isso nem sempre é possível, e todo dia é recebido e vivido como um presente quando as condições de saúde são boas ou pelo menos razoáveis... Claro que o “peso dos anos”, como dizem, se faz sentir. Mas a vida continua sendo um milagre diário. Cada despertar matinal é uma parábola da ressurreição dos mortos. No Novo Testamento, o mesmo verbo “despertar” descreve tanto o despertar diário do sono como o despertar definitivo da morte...
Recentemente, o senhor publicou pela editora Claudiana 'Secondo Marco', um comentário ao mais antigo evangelho cristão. Marcos foi o primeiro a escrever a história de Jesus, do ponto de vista da fé, desde o início até ao fim do seu ministério terreno. Quem foi Marcos? E quem foi Jesus para Marcos?
Marcos é um personagem histórico, um cristão bem conhecido e estimado do século I que certamente trabalhou na primeira missão cristã com o apóstolo Paulo, ocasionalmente também com Pedro e, por motivos familiares, com outro apóstolo chamado Barnabé. Marcos, portanto, viveu em contato próximo com os principais apóstolos do I século. Pode-se, portanto, compreender que a Igreja, que queria credenciar como “apostólico” um evangelho anônimo claramente não escrito por um apóstolo, tenha atribuído a sua autoria a Marcos, que muito provavelmente não o escreveu, mas não ficaríamos surpresos se um dia descobríssemos que, em vez disso, ele realmente o escreveu. Quem foi Jesus para Marcos? Ele mesmo responde no início do seu evangelho: “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (1,1). Jesus é primeiramente um “evangelho”, isto é, uma boa notícia; em segundo lugar, é “Filho de Deus”, isto é, o seu rosto humano, o homem de Nazaré que, ao mesmo tempo, invoca Deus e o encarna. Esse paradoxo acompanha toda a história de Jesus que termina quando o que ele diz de Jesus no início é repetido no fim por um pagão, o centurião romano que, depois de ter assistido à agonia e à morte de Jesus, disse: “Verdadeiramente esse homem era o Filho de Deus!” (15,39). Não só para Marcos, portanto, Jesus é “evangelho”.
O senhor é teólogo e pastor da Comunidade Valdense. Como alguém se torna pastor?
Na Igreja Valdense é assim: depois dos estudos secundários, ingressamos na Faculdade de teologia em Roma, por quatro anos mais um em uma faculdade teológica universitária na Europa ou na América do Norte ou do Sul, às vezes também na África. Depois de se formar em Roma, a pessoa é “posta à prova” por um ano ou mais sob a orientação de um pastor mais idoso. Depois há um “exame de fé” final diante de todos os pastores e finalmente, recebemos a “consagração” ao ministério pastoral pela assembleia sinodal composta por pastores e leigos, com a imposição das mãos de toda a assembleia. Um processo, portanto, bastante longo, após o qual nos é confiada uma igreja local, onde, dia após dia, começamos a aprender o que significa ser pastor de uma Igreja, e essa “lição” nunca termina.
O senhor conheceu um dos maiores teólogos do século XX e frequentou as suas aulas, Karl Barth. Que lembranças tem dele? Ele escreveu um monumental comentário à “Carta aos Romanos”. Por que Paulo é tão importante para os valdenses?
Lembro-me de muitas coisas sobre Barth, mas a que mais me impressionou foi a sua capacidade de sorrir de si mesmo, isto é, não se levar demasiado a sério. Somente os grandes alcançam tal nível de sabedoria.
“Por que Paulo é tão importante para os valdenses?” Porque os valdenses, em 1532, aderiram à Reforma Protestante e o protestantismo é, em essência, uma forma paulina de cristianismo: Lutero descobriu o evangelho da graça, ou seja, o cerne de sua teologia, meditando sobre Romanos 1,17, que ele chamou de “a porta do céu". Mas Paulo – é supérfluo dizer – é importante para todos os cristãos, porque foi ele quem compreendeu Jesus melhor do que todos os outros apóstolos, ele que não conheceu o Jesus “histórico”, o Mestre de Nazaré, rabino “fora da lei”, sem morada fixa, que transgride o sábado e acolhe as mulheres como suas discípulas.
Em 17 de fevereiro de 1848, o rei Carlo Alberto concedeu os direitos públicos e civis aos súditos valdenses. Quase 180 anos depois daquela data, que significado poderíamos tirar hoje?
O significado das 'Cartas de Licença’ do rei Carlos Alberto de 1848 é que, pela primeira vez na Itália, os cidadãos (então chamados de "súditos") não são mais discriminados no plano civil e político devido a uma crença religiosa diferente. Ainda não se fala de liberdade religiosa, que na Itália só viria um século depois com a Constituição da República (1948), mas a de 1848 foi um primeiro passo decisivo.
Há 850 anos, o movimento valdense trouxe uma lufada de ar fresco ao mundo cristão. O que resta daquele período, daquele sopro?
Do movimento valdense medieval, que mais tarde se fundiu na Reforma Protestante, restam dois legados hoje na Igreja Valdense: a urgência da mensagem cristã e da centralidade da Bíblia para a fé e a vida de cada cristão. Valdo era um leigo sem formação acadêmica, mas, desafiando proibições e excomunhões, não conseguiu sufocar o chamado divino para pregar o evangelho em público e na linguagem do povo como está escrito no Novo Testamento e especialmente no Sermão da Montanha, sine glossa, isto é, sem acrescentar ou retirar nada. Essa mesma urgência é a razão de ser de cada igreja, mesmo da pequena Igreja Valdense. A palavra a anunciar é sempre a mesma, contida na Sagrada Escritura, cânone único da fé e da vida dos cristãos. Não temos outra palavra a dizer nem outra sabedoria a transmitir. É aquela palavra que, em cada época, é a vida do mundo.
“E não rogo somente por estes, mas também por aqueles que pela tua palavra hão de crer em mim; para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu em ti; que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste" (Jo 17, 20-26). Ainda temos um longo caminho a percorrer para ser um? Como o senhor vê a situação do diálogo ecumênico?
“Ainda temos um longo caminho a percorrer para ‘ser um’ (João 17,20-26)”. Na realidade, nós, cristãos, pertencentes a igrejas divididas entre si, já somos “um” naquilo que podemos chamar de essencial cristão. O que é esse “essencial cristão”? É a fé no Deus Uno e Trino e em Jesus, verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Essa fé é comum a todos os cristãos. Deveria bastar para declarar-nos unidos naquilo que é constitutivo do nosso ser cristãos, ou seja, o que realmente conta, vale e nos qualifica como cristãos. Mas as Igrejas parecem não acreditar nisso: acreditam mais na sua divisão do que na sua unidade. É claro que existem diferenças, até mesmo grandes, mas serão elas realmente essenciais, isto é, vitais para a fé cristã? Por exemplo: o papado é essencial para a fé cristã?
Para os católicos, talvez sim, mas não para os ortodoxos nem para os protestantes. Como no século apostólico, também na história da Igreja se manifestaram diferentes tipos de cristianismo: é possível ser diferentes sem estar divididos; porém, é fundamental que cada pessoa aceite a diversidade do outro. Caso contrário, não haverá avanço em direção à unidade.
E se, desse ponto de vista, fotografássemos a situação atual?
Hoje o diálogo ecumênico me parece estagnado: existe, mas não avança. O fato de as relações entre as igrejas, hoje, serem geralmente muito cordiais e fraternas é uma bênção pela qual somos extremamente gratos: nem sempre foi assim. Mas para que o diálogo avance é essencial que as igrejas estabeleçam juntas o que é o essencial cristão hoje, isto é, sobre o que é preciso estar de acordo para poder falar de unidade, e sobre o que, ao contrário, é possível ter opiniões e posições diferentes, sem que isso anule ou afrouxe o vínculo da unidade. Em outras palavras, tratar-se-ia de estabelecer em conjunto aquela “hierarquia das verdades”, não só católicas, mas cristãs, de que falava o Concílio Vaticano II, mas que desde então permaneceram letra morta. Conhecemos as antigas hierarquias da verdade, que cada Igreja estabeleceu por si só, sem sequer consultar as outras, e sabemos que não servem para fazer avançar o diálogo ecumênico. Hoje trata-se de estabelecer juntos uma hierarquia ecumênica das verdades cristãs, que até agora não existe. E enquanto não existir, nenhum progresso poderá ser feito no caminho para a unidade.
No nosso contexto, a questão de Deus parece cada vez mais ofuscada e, na verdade, também a resposta. Estamos rodeados por indiferença, a Bíblia não dá respostas, mas levanta questões. Nós, cristãos, as levantamos? E qual deveria ser o “ofício” do teólogo hoje? Pudermos prestar conta da esperança que há em nós também por meio da razão?
Hoje - parece-me, mas espero estar errado - as igrejas falam pouco de Deus. No plano litúrgico, falam até demais, como sempre: missas, cultos, batizados, funerais, cerimônias e ritos diversos continuam como antes, e tudo acontece em nome da Santíssima Trindade. Mas esse Deus litúrgico – se assim posso dizer – parece-me um Deus domesticado, funcional ao funcionamento da igreja, um Deus tranquilizador que não perturba ninguém. É no anúncio público da igreja que sinto que devemos registar um impressionante silêncio sobre Deus. Estamos muito preocupados com um suposto silêncio de Deus, mas talvez devesse nos preocupar mais o silêncio sobre Deus. A igreja fala de tudo: imigrantes a ser acolhidos, pobres com quem se solidarizar, paz pela qual orar, casais homossexuais (a ser abençoados ou não?), sacerdócio feminino (sim ou não?), suicídio medicamente assistido (sim ou não?), e assim por diante. Todas questões importantes e controversas das quais também precisamos falar, mas o tema principal do discurso da igreja é outro, é Deus, sua presença e ação oculta no mundo, seu reino que com Jesus se tornou próximo. Não pode deixar de nos causar perplexidade o fato de a mensagem pública da igreja mais amplamente divulgada por todo meio (imprensa, rádio, TV) seja o 8 x 1000. [Trata-se de um imposto na Itália; nota da tradutora]
Essa mensagem é certamente importante para financiar uma parte significativa da diaconia da igreja, mas não é essa a mensagem que a igreja deve anunciar, não é isso o Evangelho!
E o que, em vez disso, a igreja deveria anunciar e testemunhar de essencial?
A igreja deveria seguir o exemplo de Jesus, que fazia diaconia de manhã até a noite, sete dias por semana, inclusive sábado (desafiando a proibição!), portanto, além da pregação, ele não fez nada além de diaconia, mas – não sei se vocês perceberam – ele nunca fala sobre isso! Ele nunca propagandeia suas ‘obras poderosas’! Ele fala do reino de Deus que está próximo, ou seja, não fala daquilo que ele faz, Jesus, mas daquilo que Deus faz: coloca sempre Deus no centro. Em vez disso, nós propagandeamos as nossas obras: ao fazer propaganda do 8 x 1000, orgulhamo-nos de como somos bons em gerir o dinheiro que os contribuintes italianos nos confiam, ou seja, essencialmente, anunciamos a nós mesmos! Mas a nossa tarefa é falar de Deus, não de nós! Parece-me que hoje a tarefa do teólogo seja aquela de ajudar a igreja a redescobrir o centro da sua vocação e a sua própria razão de estar neste mundo. Certamente podemos, aliás, devemos prestar conta da esperança que está em nós também por meio da razão. De que forma? Existe mais de uma. Uma delas é seguir o caminho da “transcendência no Aquém” (a expressão é de Dietrich Bonhoeffer). A ideia a desenvolver é que existe uma transcendência inscrita na realidade deste mundo. O que é o canto em relação à palavra senão a sua transcendência? Da mesma forma a poesia em relação à prosa. Ou a música em relação ao som, e assim por diante. O que é a liberdade senão a transcendência da condição animal? E a gratuidade, senão a transcendência em relação ao mercado? Os exemplos poderiam se multiplicar. A realidade criada traz consigo o anélito por um “além” que não o aliena, mas o torna real. Deus não está longe dos territórios que esse Além descortina, Deus vive na liberdade e na gratuidade.
Os ventos da guerra sopram em todas as partes do mundo. Há uma guerra mundial em pedaços, como diz o Papa Francisco. Guerras que atravessam diretamente “territórios” de forte assentamento religioso (dos três monoteísmos), da Ucrânia a Israel/Palestina, qual deveria ser a característica de um autêntico testemunho de fé, a começar por aquele cristão? Qual seu juízo a respeito do Papa Francisco?
O Papa Francisco prega a paz como todas as pessoas razoáveis, mas a paz não chega, porque esta não é construída com palavras, que são sempre ouvidas com boa vontade porque fazem bem à alma, mas não servem ao propósito. O que hoje falta drasticamente no mundo e na igreja são os “pacificadores” de quem Jesus fala nas Bem-Aventuranças: “Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5,9). Mas como se constrói a paz? Não com as palavras, mas com a não violência. Gandhi e Martin Luther King, entre outros, mostraram-nos isso vivendo-os pessoalmente, a quem construímos monumentos (principalmente de palavras), mas não os imitamos. A não violência é o único antídoto contra a guerra. Mas quando a guerra explode, é demasiado tarde, porque a não violência não pode ser improvisada nem aprendida em pouco tempo. É um treino longo, uma formação lenta que ocorre tanto no plano teórico como prático das técnicas de não violência.
Não se trata apenas de renunciar às armas. Trata-se de formar uma humanidade que faça da não violência um estilo de vida que diga respeito às relações com os outros seres humanos e os outros povos, mas também às relações com os animais e a natureza. É um programa amplo e exigente no qual as religiões, se quiserem realmente exorcizar a guerra da história e da consciência humana, devem empenhar as suas melhores energias. Cada paróquia ou comunidade religiosa de qualquer tipo e credo deveria tornar-se ou pelo menos montar dentro de si uma academia de não violência na qual, com paciência e perseverança, aprender a tornar-se pessoas não violentas, ou seja, muito diferentes daquelas que todos nós somos (exceto poucas e raras exceções). Somente uma humanidade não violenta pode tornar-se pacífica. Esta deveria ser a principal tarefa das religiões hoje, num mundo em chamas, se quiserem realmente servir para o crescimento humano: pacificar Caim por meio da educação para a não violência, antes que ele ataque o seu irmão Abel e o mate, porque todo assassinato – isso também deveria ser ensinado – é um fratricídio.
Estamos imersos numa sociedade secularizada, especialmente no Ocidente. Qual é, na sua opinião, o justo espaço para a fé neste contexto? O que acha do esforço do chamado pós-teísmo de repensar ou, segundo alguns, diluir a imagem de Deus?
Repensar a imagem de Deus? É compreensível que toda geração, percebendo a mudança dos tempos e das mentalidades, sinta a necessidade de repensar a imagem de Deus. Recentemente comentei que foi publicada uma Bíblia queer, que, imagino, proponha uma imagem queer de Deus (seja qual for o significado que se queira atribuir a esse adjetivo que se tornou demasiado, e demasiado rapidamente, popular). Pode ser que exercícios desse tipo sejam úteis para alguns, nem que seja para recomeçar uma reflexão talvez abandonada sobre Deus. Parece-me, no entanto, que sobre a questão da imagem de Deus deveríamos refletir sobre dois pontos.
O primeiro ponto é o segundo dos Dez Mandamentos que proíbe fazer "qualquer escultura ou imagem" de qualquer coisa criada para ser adorada como Deus e, mais ainda, do próprio Deus. Essa proibição, que contradizia toda a espiritualidade religiosa daquele tempo (e de todos os tempos) significa que um Deus imaginado é um Deus imaginário, uma construção mental humana, que não pode produzir outra coisa senão um Deus à nossa imagem e semelhança. Deus é inimaginável e, como tal, deve ser conhecido e adorado.
O segundo ponto é que a única imagem que Deus nos deu de si mesmo é Jesus (II Coríntios 4,4), de quem, aliás, não temos na Bíblia nenhuma imagem. Para dizer a verdade, também o homem, isto é, a pessoa humana na sua polaridade de homem e mulher, foi criado "à imagem e semelhança" de Deus (Gênesis 1,27): mas essa imagem está muito ofuscada e obscurecida, a ponto que só podem ser encontrados alguns vestígios, muitas vezes nem sequer reconhecidos como tais. Por isso Deus enviou entre nós o seu Filho, que não por acaso os Evangelhos chamam de “Filho de Deus e do homem”, para lembrar à memória da humanidade, que a havia perdido, como vive, pensa, fala e age o homem “imagem de Deus".
Qual é, hoje, o essencial da fé cristã para o senhor? E qual é a 'diferença cristã' que torna possível qualquer diálogo inter-religioso, mas continua a definir uma identidade a salvaguardar?
A diferença cristã reside, parece-me, naquilo que anteriormente chamamos de "o essencial cristão", isto é, em primeiro lugar, como dissemos, a visão trinitária de Deus. A Trindade, muito discutida no passado, muitas vezes negada ou, em todo caso, considerada uma complicada abstração 'bizantina', tem pelo contrário um grande valor: diz que Deus não é um ponto matemático, uma mônada monocromática (se é que se pode dizer), mas é um conjunto de relações. A Trindade significa que a natureza de Deus é em si (e não apenas em relação ao mundo externo) relacional. Mas a vida, tanto micro como macrobiótica e, em última análise, a vida humana, também é uma relação. O amor, que é a chave que desvenda o segredo do mundo, é relação: o amante, o amado, o amor.
A segunda “diferença cristã”, e como tal “identidade a salvaguardar”, é naturalmente Jesus, que cremos ser “verdadeiramente o Salvador do mundo” (João 4,42), e não apenas dos cristãos. Cremos também que ele não o seja apenas com a sua morte e ressurreição, mas também e sobretudo com a sua vida. Acredito que a vida de Jesus possa ser um terreno particularmente fecundo para o diálogo inter-religioso. Numa das suas últimas cartas da prisão, Bonhoeffer escreveu (em 21 de agosto de 1944) “Devemos mergulhar novamente, continuamente, demorada e serenamente na vida, na palavra, na ação, no sofrimento de Jesus para discernir o que Deus promete e o que Deus realiza" (1). A humanidade de Jesus pode ser compreendida e amada por qualquer pessoa.
Ressurreição, o que é a ressurreição para o senhor hoje? Como é que não conseguimos ser Evangelho, boas notícias nesta nossa sociedade?
A ressurreição é o debruçar-se no nosso mundo do outro mundo, da outra vida, da vida após a morte, que é Deus, é o limiar que não podemos ultrapassar, mas que Deus quis, na sua bondade, que vislumbrássemos. Gostaríamos de abraçá-la e torná-la nossa, como Maria de Magdala, mas não podemos. Talvez a ressurreição seja mais um segredo a ser guardado do que uma bandeira a ser desfraldada. A igreja antiga, entre outras coisas, também praticava ocasionalmente a disciplina do arcano. Eu não ficaria surpreso se a mensagem da ressurreição fizesse parte daquela “disciplina”.
Muito obrigado, professor Ricca, por suas palavras. Permita-me uma última pergunta: por que o senhor se tornou valdense?
Nasci em uma família valdense, aliás meu pai Alberto também era pastor. Mas não é suficiente nascer num contexto familiar valdense para “tornar-se valdense”. Passei toda a minha vida tentando me tornar cristão porque, como dizia Kierkegaard, somos todos “aspirantes a cristãos”. Tornar-se valdense tem um sentido como etapa para se tornar cristão. Mas nunca nos tornamos totalmente cristãos.
Somos cristãos em formação. Cristo precisa vir e, na sua misericórdia, fazer também de mim, com o seu perdão, o cristão que não consigo me tornar.
(1) Dietrich Bonhoeffer, Resistenza e resa. Lettere e scritti dal carcere, ed. italiana editada por Alberto Gallas, Edizioni San Paolo, Cinisello Balsamo (Milão) 1988.
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Somos todos aspirantes a cristãos. Entrevista com Paolo Ricca - Instituto Humanitas Unisinos - IHU