02 Mai 2023
Paolo Ricca foi consagrado pastor da Igreja Valdense em 1962, exercendo o ministério pastoral em várias igrejas valdenses na Itália. Ele concluiu seu doutorado em Teologia na Faculdade de Teologia da Universidade de Basel e, mais tarde, a Faculdade de Teologia da Universidade de Heidelberg concedeu-lhe diploma honoris causa.
Ele ensinou História do Cristianismo na Faculdade Valdense de Teologia em Roma e foi professor visitante no Pontificio Ateneo Sant'Anselmo de Roma. Para a editora Claudiana dirige a Série Obras Escolhidas de Martinho Lutero, da qual já editou vários volumes. Entre suas obras lembramos: Le dieci parole di Dio. Le tavole della libertà e dell’amore (Morcelliana, 1998), Dell’aldilà e dall’aldilà. Che cosa accade quando si muore? (Claudiana, 2018) e Ego te absolvo. Colpa e perdono nella Chiesa di ieri e oggi (Claudiana, 2019).
Em seu último livro, Dio. Apologia (Claudiana, 2022) trata e discute as principais objeções que na modernidade foram e continuam a ser levantadas à fé em Deus e à sua própria existência, para depois expor os traços mais característicos da ideia cristã de Deus, como emergem das páginas da Bíblia, sem renunciar ao diálogo constante com a cultura contemporânea e com as religiões mundiais.
A entrevista é de Luigi Sandri, publicada por Confronti. A tradução é de Luisa Rabolini.
Apesar de ter escrito vários livros teológicos exigentes, nenhum dos seus livros foi dedicado expressamente a falar sobre Deus. Por que, agora, dedicou a esse ponderoso tema um livro?
Pensei e escrevi o livro agora porque me parece claro que a Igreja, e por Igreja entendo todas as Igrejas, não fala de Deus: fala dos pobres, dos refugiados, dos últimos. Em suma, fala das nossas obras, prega as nossas obras, mas não prega Jesus, não fala de Deus.
Claro que as obras são importantes e não tenho nada a objetar ao discurso sobre as obras e ao empenho pelo acolhimento e cuidado; afinal, Jesus ao longo de sua vida não fez nada além de obras. Ele é um trabalhador de Deus, todos os dias, de manhã à noite, incluindo o sábado. Portanto, as obras são constitutivas do ser cristão; porém o cristianismo não é as nossas obras, mas a proclamação de Deus. Os líderes cristãos pressupõem Deus, obviamente, como premissa para seu operar para o bem. Mas Deus não é uma premissa; se fizermos isso, então já o colocaremos às nossas costas, e nós não estamos diante de Deus.
Há algumas décadas em alguns setores das Igrejas – a partir da Igreja Episcopal (anglicana) estadunidense e depois beirando aquela católica – se desenvolveu um movimento de pensamento, que se define "Além das religiões" que, entre outras coisas, chega a obscurecer o que todas as Igrejas proclamam há dois milênios, ou seja, Jesus Cristo "verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem". Mas pode existir o cristianismo se for negada essa verdade?
A alergia a Deus também se expressa dessa maneira. É uma alergia mundial e a Europa, com todo seu primeiro mundo, é mestra nisso (outro seria o discurso vindo do resto do planeta). Parece-me que não se queira admitir que existe o Deus de Jesus, ou seja, uma realidade diferente do humano, do material, do histórico, do evidente, do visível: uma Realidade verdadeira, não projetada e construída por nós. Deus, que está em ti e diante de ti, é outro de ti. É um Tu inefável, misterioso, distante e muito presente. Se for eliminado, então será eliminado também na figura de Jesus. Porém, gostaria de fazer uma proposta: tudo bem, vamos assumir que Jesus seja apenas homem. Mas qual homem? Essa se torna a pergunta. Que tipo de humanidade? Um tipo de humanidade que transcende o humano e que ela não consegue explicar.
Essa é a razão pela qual se falou de Jesus como presença divina na humanidade, na história. Se depois falamos do homem, devemos nos referir àquele homem, assim como foi descrito nas Escrituras. Ele manifesta um tipo de humanidade que não consigo explicar para mim baseado em todas as categorias de humano conhecidas. Existem aspectos belíssimos na humanidade e realidades de bem maravilhosas. Mas, no conjunto, é um choro.
Também no passado havia essa ambiguidade: nesse contexto atuou Jesus, que não era um homem religioso, mas simplesmente um homem. Um homem de fé, até mesmo relativamente praticante, mas a sua característica não era tornar a humanidade religiosa, mas revelar um tipo que a humanidade não conhecia. Jesus é o elo dessas três realidades, que são Pai, Filho e Espírito Santo. São nomes, títulos e têm um valor relativo, mas sua função é distinguir funções, e expressa precisamente que nenhum dos três esgota a plenitude de Deus.
Somente juntos essa plenitude é alcançada, pela qual Deus é trinitário. Resumindo: nós homens e mulheres do mundo não pudemos e, desde Adão e Eva (e quem por eles!) e até o fim do mundo, quando vier, não podemos e nunca poderemos dizer com clareza como Deus é feito.
Há um salto de fé que não pode ser eliminado. Afinal, na Bíblia há o escondimento de Deus, a nuvem que o cobre, por isso nunca é explícito, evidente ou à disposição. Mas se falamos de "relação" na Trindade, nos aproximamos do mistério. Se apenas uma criatura humana existisse, ela não teria a palavra, não tendo que se relacionar com um tu. A relacionalidade é constitutiva do ser humano, mas também do mundo animal e vegetal. Uma riqueza surpreendente.
Se transferirmos essa sensibilidade para a reflexão sobre Deus, chegamos, ainda que remotamente, a intuir que Jesus é um ponto de apoio para tentar pensar em Deus como a uma relação de amor. Ele é, de alguma forma, conhecível; não é uma esfinge. Podemos dizer, com verdade, que Deus é amor, não ódio; paz, não guerra; reconciliação, não violência. Por que podemos dizer isso? Porque Deus falou por meio dos profetas e da Torá [a lei judaica], todo aquele grande e extraordinário filão que avançou bastante no conhecimento do mistério, porque há um mistério que, parcialmente, pode ser conhecido. Creio que em Jesus, no Verbo feito carne, feito homem, a realidade de Deus apareceu em uma luz que não foi alcançada por outros. Isso não quer dizer que também não podemos aprender muitas coisas sobre Deus, de tantas outras vozes, pistas, que emergem no mundo. Realidade que não é possível nem justo liquidar como "paganismo".
Em vez disso é, também, busca por Deus. Mas minha profunda convicção é que a revelação de Deus em Jesus seria a mais esclarecedora. No entanto, cuidado: devemos evitar identificar Deus com a nossa compreensão de Deus; devemos buscá-lo, cada um por seu caminho. Podem existir várias pistas; para mim Jesus não é apenas uma pista, mas a pista. Mas isso é Ele, não sou eu, não é o cristão. Se essa distinção for feita e não se sobrepõe o ser cristão ao ser de Jesus, então estamos todos em busca de Deus e cada um na sua convicção provisória, mas também profunda. O absoluto é a revelação de Deus para nós em Jesus. Ele é o caminho, a verdade, não eu mesmo ou a minha compreensão de Deus e de Jesus; não o meu Cristianismo.
Formalmente, tornamo-nos cristãos com o batismo. Esse sacramento serve para nos lavar do estigma do “pecado original”?
O Batismo é a aliança de Deus em vista da humanidade nova, aquela de Jesus, que nós devemos tentar imitar. Eu creio que Ele nos salva com a morte e com a vida. Finalmente, com sua ressurreição nos redime, porque Deus não permite a nossa dissolução total, mas nos tira da sepultura e nos doa uma eternidade. Mas voltemos ao "pecado original". Dele a Bíblia não fala, e é desconhecido da tradição judaica.
Na Igreja dos primeiros séculos essa tradição foi-se criando gradualmente, estendendo-se por fim entre os séculos IV e V sistematizada por Agostinho, bispo de Hipona (na atual Argélia); foi então dogmatizada e o Concílio de Trento, em 1546, impôs a excomunhão a quem negasse que nossos antepassados pecaram, ou negasse que sua culpa se transmitisse, por geração, como uma falha indelével, a cada criatura humana nascente. Só o batismo – afirmava-se – poderia nos lavar dessa culpa.
Mas isso realmente aconteceu? Adão e Eva perceberam imediatamente nossa finitude: somos limitados, podemos ficar doentes e devemos morrer.
Se, além disso, eles desobedeceram a Deus, é fato que não por isso ele os puniu; viveram muitos anos (o livro do Gênesis o afirma). Aos seus filhos e descendentes, portanto, transmitiram a finitude, mas nenhum pecado.
Os "pais" da Igreja confundiram indevidamente as duas realidades. Então eu acho belíssimo Il perdono originale [O perdão original] um livro no qual Lytta Bassett, teóloga da Igreja contemporânea da Igreja Reformada de Genebra, afirma precisamente que "no princípio" não havia nenhum pecado original, mas, ao contrário, o Senhor tratou com misericórdia Adão e Eva que, portanto, não transmitiram para os descendentes nenhuma culpa.
Cada pessoa vivente não parte em desvantagem, com uma "deficiência espiritual", mas cheia da graça de Deus: depois cada uma será julgada se, livremente, na vida escolheu o bem ou o mal. No batismo, portanto, o Senhor faz uma aliança conosco, convidando-nos a imitar Jesus.
Claro, se olharmos para a experiência, descobrimos que nos apaixonamos mais facilmente pelo mal do que pelo bem. Temos uma predileção, um fascínio pelo mal. Portanto, a doutrina do “pecado original” foi uma tentativa de explicar essa atitude desoladora.
Mas hoje devemos rejeitar a ideia do batismo como uma purificação de uma culpa que nos foi transmitida por milhares de gerações infectadas por Adão e Eva; para proclamar, em vez disso, que desde “o princípio” Deus nos cobre com o manto de seu “perdão original”.
Você acha apropriado que em 2025 todas as Igrejas celebrem mil e setecentos anos do Concílio de Nicéia? Proclamou que Jesus Cristo, filho de Deus, é igual (não semelhante!) ao Pai, e portanto “Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado, não feito. Para nossa salvação encarnou-se, fez-se homem, sofreu e ressuscitou no terceiro dia". Sua proclamação de fé ainda é válida ou é um mito a abandonar?
As celebrações são importantes porque nos lembram que somos criaturas históricas e que a história humana não começa conosco. Isso me parece saudável, como posição. Portanto sou a favor das celebrações das recorrências importantes, em geral: e mais ainda pelas celebrações críticas. De fato, hoje temos distância suficiente para ver os limites de tudo o que nos precede, assim como nossos sucessores verão os nossos limites.
Portanto, bem-vinda seja a comemoração de Niceia.
Ressalto que as afirmações daquele Concílio são bastante influenciadas por debates teológicos e políticos muito acalorados e violentos da época. Mas considero bela a doutrina da Trindade, isto é, a afirmação de que o ser profundo de Deus é um ser relacional, e não uma mônada. Deus é único, mas não solitário. Deus não quer ser sozinho, porque Ele é em Si essa pluralidade de sujeitos: uma realidade que obviamente desafia a nossa racionalidade.
Entendo que é um desafio à inteligência afirmar que Deus não é uniforme, mas pluriforme (um teólogo africano me disse que justamente a rejeição do dogma misterioso do Deus uno e trino, para proclamar a absoluta unidade e unicidade de Deus, é o motivo pelo qual muitos africanos escolhem o Islã ao invés do Cristianismo).
A afirmação do feminismo, mesmo nas Igrejas, pode levar a uma revisão global de doutrinas sobre Deus elaboradas substancialmente por homens e, portanto, marcadas pelo machismo?
É verdade: a reflexão teológica, realizada ao longo dos séculos sobretudo (mas não exclusivamente!) por homens, tem um viés machista. Mas Deus não tem gênero; e não há como sair da dialética masculino-feminino até mesmo porque hoje existe o discurso da fluidez sexual: somos todos um pouco homens e um pouco mulheres. Poder-se-ia dizer que Deus é todo ao masculino ou ao feminino, ou Crista em vez de Cristo, ou Deusa em vez de Deus; mas não se sai da polaridade sexual. É claro que o masculino não é toda a humanidade, nem o feminino: cada um é apenas uma parte. Estamos numa prisão confortável, mas na prisão dos sexos.
Então, a chegada de teólogas é um enriquecimento?
Certamente, porque elas nos ajudam a ver a maternidade na paternidade de Deus, Deus é pai, mas um pai supermaterno. O feminismo, para mim que defendo o Pai Nosso, oferece uma grande ajuda para compreender essa dimensão. Eu entendo melhor que Deus estilhaça o esquema do masculino com sua extraordinária maternidade.
Em Jesus, o Criador não é tanto aquele que gera, mas aquele que cuida do pardal, do lírio do campo, do homem doente, do endemoninhado, do alienado. O ideal seria se pudéssemos falar sobre Deus para explicar essa ampla complexidade. Só precisamos saber que a plenitude do discurso sobre Deus deveria ser capaz de refletir a plenitude do discurso sobre o humano, assim incluir o masculino e o feminino.
Levando sempre em conta o fato de que, mesmo que se diga que Cristo é mulher, estará igualmente enjaulado. Assim como eu o enjaulo se disser que é um homem. Enquanto estivermos neste mundo e enquanto formos homem ou mulher, com todas as variações, não podemos fazer outra coisa senão refletir essa nossa parcialidade. Mas se estivermos cientes de ser, como homens, parciais, estaremos abertos a todas as integrações que possam vir das mulheres. É um enriquecimento formidável porque "no princípio homem e mulher os criou".
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Uma apologia contra o “silêncio sobre Deus”. Entrevista com Paolo Ricca - Instituto Humanitas Unisinos - IHU