Pode haver um saber teológico na rima de versos de hip-hop? Por que não, se nessa arte há uma conexão com a vida e convite a uma transcendência a partir de uma realidade concreta
O que há de ser a teologia? “Ensinar e estudar teologia significa viver numa fronteira, na qual o Evangelho encontra as necessidades reais das pessoas. Também os bons teólogos, como os bons pastores, cheiram a povo e a ruas e, com sua reflexão, derramam azeite e vinho nas feridas de muitos”. A definição é do Papa Francisco, em discurso alusivo aos 150 anos da revista La Scuola Cattolica, publicação do Seminário Arquiepiscopal de Milão. Essa é uma das tantas provocações de Francisco acerca dessa ciência que tem muito mais a ver com a vida real em intersecção com o Evangelho do que um ambiente acadêmico ensimesmado que lê, relê, trelê as Escrituras e concebe uma transcendência que, embora bonita, é abstrata e não consegue tocar os corações dos viventes, aqueles que pulsam em meio a agruras e alegrias da vida cotidiana.
É por isso que o pontífice insiste, nesse mesmo discurso, em desmistificar esse 'palavrão' que é te-o-lo-gia, aproximando-o da realidade concreta. “Muitos pensam que a única utilidade das ciências teológicas diz respeito à formação de futuros sacerdotes, religiosos e religiosas e, no máximo, de agentes pastorais e professores de religião”, pontua. Mas é justamente o contrário. É obvio que precisamos de estudos e estudiosos que se debrucem sobre os escritos da fé cristã, mas esses têm o desafio de pensar numa tradução da fé encarnada. “Quando falamos ou escrevemos, devemos ter sempre em mente o vínculo entre fé e vida, estar atentos em não cair na autorreferencialidade”, recomenda Francisco.
Em grande medida, o que Francisco provoca é a operacionalização prática de uma teologia pública, funcionando como esse elo entre a fé e a vida. Perspectiva que coaduna com a reflexão do teólogo David Tracy. Em A imaginação analógica: a teologia cristã e a cultura do pluralismo (Editora Unisinos, 2006), Tracy detalha os caminhos possíveis para uma teologia encarnada, uma teologia pública. Como bem pontua o historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, em artigo recentemente publicado pelo IHU, teologia e ciências sociais são irmãs e a separação que parecem viver é um problema. Para superá-lo, sugere uma volta a Tracy. “Foi há quase 30 anos que David Tracy escreveu que todos devemos enfrentar a 'realidade fascinans et tremendum do nosso presente policêntrico'”, recorda Faggioli.
No livro, Tracy dá pistas para caminhar com sua teologia pública
Foto: divulgação
Pensar uma teologia múltipla a partir de várias culturas que professam uma fé comum pode ser um tanto menos aterrorizante (tremendum) e mais fascinante (fascinans), como propõe Tracy. Edward Foley, professor da Cátedra Duns Escoto de Espiritualidade e professor de Liturgia e Música na Catholic Theological Union, em Chicago, em artigo publicado em 2016 pelo IHU, observa: “no livro 'Blessed Rage for Order', Tracy afirmava o papel fundamental da 'experiência humana comum no empreendimento teológico', observando que a teologia cristã, hoje, é melhor compreendida como uma 'reflexão filosófica sobre os significados presentes na experiência humana comum e sobre os significados presentes na tradição cristã'”. Ou seja, não há o que refletir e divagar sem a conexão com a concretude da experiência humana.
O que, claro, passa por ver o teólogo com alguém conectado com seu tempo e não encastelado em um gabinete ou igreja. “Considero como um evento público enormemente útil a ênfase dada por Tracy ao teólogo como uma figura pública. Tendo lecionado por quase 40 anos e pregado por um período de tempo igual, é bom reimaginar um culto para além das cerimônias privadas aos batizados", pontua Foley, no mesmo artigo.
Tracy, professor emérito de Estudos Católicos na Universidade de Chicago, vê a teologia com estreita conexão com experiência humana comum
Foto: Universidade de Chicago
A partir das provocações do Papa Francisco e das luzes de David Tracy, podemos pensar na aridez dos tempos que temos vivido, de guerra e crise climática, e nas chaves que a teologia, a partir desse contexto, pode oferecer para, como cristãos, encarar a concretude da vida com coragem, mas sendo alimentados pela esperança. Porém, vamos a um recorte bem mais específico: mergulhemos nas periferias do Brasil, um lugar de muita gente preta, marginalizada e que recentemente vê o fantasma da fome a assombrar. Muita mais do que aceitar carregar a sua cruz como designação divina a ser recompensada com a paz da vida eterna, essa gente que ser feliz, viver e acredita em tempos melhores hoje, desde agora. Então, seriam eles capazes de conceber um conhecimento teológico a partir da concretude de suas experiências humanas?
Para Alex Nava, doutor em Teologia pela Universidade de Chicago, professor de rap, cultura e Deus na Universidade do Arizona, é evidente que sim, pois ele vê a epifania vivida pelo monge trapista Thomas Merton na rua da periferia. Ou, mais precisamente, no hip-hop entoado nas ruas dos espaços periferizados. “Essas intuições teológicas também estão na raiz do meu próprio interesse pelo hip-hop, um assunto que tem ocupado meu ensino e bolsa de estudos por quase duas décadas”, assume, em artigo publicado pelo IHU.
Alex Nava
Foto: Revista América
Calma, não se trata de uma vertente carismática gospel. Nava se refere ao hip-hop como conhecemos, que fala da vida real de uma gente. O professor explica: “não cresci cercado de livros – fui o primeiro da minha família mexicano-americana a se formar na faculdade – então os rappers foram os primeiros a me encantar com suas habilidades verbais. Eles me apresentaram as ricas possibilidades da linguagem, como vogais e consoantes podem ser esticadas ou engolidas, como o significado pode existir apenas na superfície do som, como as palavras podem fluir e se mover juntas como um cardume de peixes”. E tudo isso é descoberto por ele antes de conhecer o ‘cânone teológico’ e até outras perspectivas mais abertas, como a Teologia da Libertação.
Para ele, existem convites à transcendência nesses ritmos. “Há momentos no hip-hop em que o poder da música pode derreter todas as barreiras que nos separam dos pobres do mundo, lembrando-nos que compartilhamos a mesma humanidade”, pontua. E não é por menos, pois encarando a dor da vida na favela, por exemplo, o hip-hop fala de esperança e como lutar a boa luta, como bem pontua Acauam Oliveira em conferência realizada no IHU [vídeo abaixo]. Isso abre muito mais portas do que se pode imaginar, literalmente trazendo a periferia ao centro.
Foi o que aconteceu na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, essa semana, quando os Racionais MC’s, ícone do hip-hop nacional, deu aula. O grupo ministrou uma aula da disciplina “Tópicos Especiais em Antropologia IV: Racionais MC’s no Pensamento Social Brasileiro”, que integra as atividades do Unicamp Afro, evento que visa ampliar as discussões sobre a população negra no país. O vídeo da aula, disponível abaixo, revela que não existem a pesquisa, a academia, e a vida, e sim uma coisa só.
A aula em Campinas é só mais um exemplo de como as experiências humanas superam a moderna compartimentação da vida. Talvez, seja por essa mesma toada que Nava reconhece as epifanias dos 'assuntos de Deus' no hip-hop. “O hip-hop espelha as predileções religiosas dos afro-americanos e latinos em geral”, aponta no mesmo artigo publicado pelo IHU. “Se Deus pode ser encontrado em todas as coisas, e a música negra há muito está impregnada de gritos gospel, elevações da alma e emoções que remetem a um êxtase, as contracorrentes do sagrado e do profano no hip-hop não deveriam ter tão surpreendentes, mas ainda me surpreendo com o alcance da religião na música”, conclui.
Bem, então há uma teologia hip-hop? Talvez seja mais pudente pensar que a teologia é pública e encarada na vida cotidiana, podendo ser manifestada nas mais distintas experiências humanas. Então, que tal experimentar esse exercício e buscar esse Deus na rua, vivo na experiência humana? E isso que propõe Alejandro Nava, na conferência que proferiu no Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Confira.
Alex Nava, como é conhecido, é mestre e doutor em Estudos da Religião pela Universidade de Chicago. Sua primeira experiência como professor foi na Universidade de Seattle antes de trabalhar na Universidade do Arizona, em 1999.
Desde então, estabeleceu vários cursos, incluindo “Amor e religiões do mundo”, “A questão de Deus”, “Religião e cultura no sudoeste”, “Rap, cultura e Deus” e “Religião na América Latina”. Atualmente trabalha no projeto de um livro sobre a experiência do maravilhamento na religião e literatura latino-americana. Autor de diversos livros, o mais recente é “Street Scriptures: Between God and Hip-Hop” (University of Chicago Press, 2022).