23 Junho 2022
"De fato, ensinar e estudar teologia significa viver numa fronteira, na qual o Evangelho encontra as necessidades reais das pessoas. Também os bons teólogos, como os bons pastores, cheiram a povo e a ruas e, com sua reflexão, derramam azeite e vinho nas feridas de muitos", afirmou o Papa Francisco em discurso entregue pelos 150 anos da revista "La Scuola Cattolica", publicado por Settimana News, 22-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Caros irmãos e irmãs, bom dia e bem-vindos!
Dou-vos as boas-vindas por ocasião do 150º aniversário da revista La Scuola Cattolica, expressão do Seminário Arquiepiscopal de Milão. Saúdo vocês, superiores e formadores e, por meio de vocês, também os alunos e funcionários do seminário, assim como os redatores e colaboradores da revista. Agradeço ao Reitor as palavras que me dirigiu.
Este aniversário convida a interrogar-se sobre a tarefa a que é chamada hoje uma escola de teologia e, em particular, sobre o papel de uma revista como a vossa. Gosto de imaginar que essa revista é um pouco como uma vitrine de loja, onde um artesão expõe seus trabalhos e sua criatividade pode ser admirada.
O que amadureceu nos laboratórios das salas de aula acadêmicas, no paciente exercício de pesquisa e reflexão, do confronto e diálogo, merece ser compartilhado e tornado acessível aos outros. À luz dessa premissa, gostaria de dizer três coisas que acredito serem importantes.
Muitos pensam que a única utilidade das ciências teológicas diz respeito à formação de futuros sacerdotes, religiosos e religiosas e, no máximo, de agentes pastorais e professores de religião.
Talvez também na comunidade eclesial não se espere mais muito da teologia e das ciências eclesiásticas; às vezes parece que mesmo os responsáveis, ministros e agentes pastorais não consideram necessário aquele exercício vivo da inteligência crente, que ao contrário é um precioso serviço à fé viva da Igreja.
A comunidade, de fato, precisa do trabalho de quem tenta interpretar a fé, traduzi-la e retraduzi-la, torná-la compreensível, expô-la em novas palavras: um trabalho que deve ser feito sempre de novo, a cada geração. A Igreja encoraja e apoia esse empenho, o esforço de redefinir o conteúdo da fé em cada época, no dinamismo da tradição.
E é por isso que a linguagem teológica deve ser sempre viva, dinâmica, não pode deixar de evoluir e deve preocupar-se em se fazer entender. Às vezes, os sermões ou as catequeses que ouvimos são em grande parte compostos de moralismos, não suficientemente "teológicos", isto é, pouco capazes de nos falar de Deus e de responder às perguntas de sentido que acompanham a vida das pessoas, e que muitas vezes não têm a coragem de formular abertamente.
Uma das maiores doenças do nosso tempo é, de fato, a perda de sentido, e a teologia, hoje mais do que nunca, tem a grande responsabilidade de estimular e orientar a pesquisa, de iluminar o caminho. Perguntemo-nos sempre como é possível comunicar hoje as verdades da fé, tendo em conta as mudanças linguísticas, sociais, culturais, utilizando com competência os meios de comunicação, sem nunca diluir, enfraquecer ou "virtualizar" o conteúdo a transmitir.
Quando falamos ou escrevemos, devemos ter sempre em mente o vínculo entre fé e vida, estar atentos em não cair na autorreferencialidade. Em particular, vocês, formadores e docentes, em vosso serviço à verdade, vocês são chamados a conservar e comunicar a alegria da fé no Senhor Jesus, e também uma sã inquietude, aquela emoção do coração diante do mistério de Deus. E saberemos acompanhar os outros na busca quanto mais nós vivermos essa alegria e essa inquietude. Ou seja, quanto mais formos "discípulos".
A renovação e o futuro das vocações só é possível se houver sacerdotes, diáconos, consagrados e leigos bem formados. Cada vocação particular nasce, cresce e se desenvolve no coração da Igreja, e os “chamados” não são cogumelos que brotam repentinamente.
As mãos do Senhor, que modelam esses "vasos de barro", operam com o cuidado paciente dos formadores e acompanhantes; a eles é confiado o serviço delicado, experiente e competente de cuidar do nascimento, acompanhamento e discernimento das vocações, num processo que exige tanta docilidade e confiança.
Cada pessoa é um imenso mistério e traz consigo sua própria história familiar, pessoal, humana, espiritual. Sexualidade, afetividade e relacionalidade são dimensões da pessoa a serem consideradas e compreendidas, tanto pela Igreja quanto pela ciência, também em relação aos desafios e às mudanças socioculturais. Uma atitude aberta e um bom testemunho permitem ao educador "encontrar" toda a personalidade do "chamado", envolvendo a sua inteligência, sentimentos, coração, sonhos e aspirações.
Quando se discerne se uma pessoa possa ou não empreender um processo vocacional, é necessário perscrutá-la e avaliá-la de forma integral: considerar seu modo de viver os afetos, as relações, os espaços, os papéis, as responsabilidades, como bem como suas fragilidades, medos e desequilíbrios. Todo o percurso deve ativar processos destinados a formar sacerdotes e consagrados maduros, especialistas em humanidade e proximidade, e não funcionários do sagrado.
Os superiores e formadores de seminário, os acompanhantes e as próprias pessoas em formação são chamadas a crescer quotidianamente para a plenitude de Cristo (cf. Ef 4,13), para que, através do testemunho de cada um, se manifeste mais claramente a caridade de Cristo e a solicitude da Igreja por todos, especialmente pelos últimos e pelos excluídos.
Um bom formador exprime o seu serviço numa atitude que podemos chamar de "diaconia da verdade", porque está em jogo a existência concreta de pessoas, que muitas vezes vivem sem certezas seguras, sem orientações partilhadas, sob o condicionamento martelante de informações, notícias e mensagens muitas vezes contraditórias, que modificam a percepção da realidade, orientando para o individualismo e o indiferentismo.
Os seminaristas e os jovens em formação devem saber aprender mais com a vossa vida do que com as vossas palavras; poder aprender a docilidade com a vossa obediência, a laboriosidade com a vossa dedicação, a generosidade com os pobres da vossa sobriedade e disponibilidade, a paternidade com o vosso afeto casto e não possessivo.
Somos consagrados para servir o Povo de Deus, a cuidar das feridas de todos, começando pelos mais pobres. A idoneidade para o ministério está ligada à disponibilidade, alegre e gratuita, para com os outros. O mundo precisa de sacerdotes que saibam comunicar a bondade do Senhor a quem experimentou o pecado e o fracasso, de padres especialistas em humanidade, de pastores dispostos a compartilhar as alegrias e as dificuldades de seus irmãos, de homens que saibam ouvir o grito de quem sofre (cf. Discurso à Comunidade do Pontifício Seminário Regional das Marche "Pio XI", 10 de junho de 2021).
Caros irmãos, no cerne do nosso serviço eclesial está a evangelização, que nunca é proselitismo, mas atração a Cristo, favorecendo o encontro com Aquele que muda a tua vida, que te torna feliz e faz de ti, cada dia, uma nova criatura e um sinal visível do seu amor. Todos os homens e as mulheres têm o direito de receber o Evangelho e os cristãos têm o dever de anunciá-lo sem excluir ninguém.
Todo o Povo de Deus, peregrino e evangelizador, anuncia o Evangelho porque, sobretudo, é um povo a caminho rumo a Deus (cf. Exortação Apostólica Evangelii gaudium, 14; 111). E nesse caminho não pode deixar de dialogar com o mundo, com as culturas e as religiões. O diálogo é uma forma de acolhimento e a teologia que evangeliza é uma teologia que se nutre de diálogo e de acolhimento. O diálogo e a memória viva do testemunho de amor e paz de Jesus Cristo são os caminhos a percorrer para construir juntos um futuro de justiça, fraternidade e paz para toda a família humana.
Recordemos sempre que é o Espírito Santo que nos introduz no Mistério e impulsiona a missão da Igreja. Por isso o "hábito" do teólogo é aquele do homem espiritual, humilde de coração, aberto às infinitas novidades do Espírito e próximo às feridas da humanidade pobre, abandonada e sofredora.
Sem humildade o Espírito foge, sem humildade não há compaixão, e uma teologia sem compaixão e misericórdia se reduz a um discurso estéril sobre Deus, talvez belo, mas vazio, sem alma, incapaz de servir a sua vontade de se encarnar, de estar presente, de falar ao coração. Porque a plenitude da verdade – à qual o Espírito conduz – não é tal se não for encarnada.
De fato, ensinar e estudar teologia significa viver numa fronteira, na qual o Evangelho encontra as necessidades reais das pessoas. Também os bons teólogos, como os bons pastores, cheiram a povo e a ruas e, com sua reflexão, derramam azeite e vinho nas feridas de muitos.
Nem a Igreja nem o mundo precisam de uma teologia “teórica”, mas de uma reflexão capaz de acompanhar os processos culturais e sociais, em particular as transições difíceis, assumindo também a responsabilidade dos conflitos. Devemos ter cuidado com uma teologia que se esgota na disputa acadêmica ou que olha a humanidade de um castelo de vidro (cf. Carta ao Grão-Chanceler da Pontifícia Universidade Católica Argentina, 3 de março de 2015).
O Evangelho não deixa de nos lembrar que o sal pode perder o seu sabor. E se vivemos mais ou menos tranquilos no meio do mundo, sem uma saudável inquietação, isso pode significar que nos amornamos (cf. H. de Lubac, Meditazione sulla Chiesa: Opera Omnia, vol. 8, Milan 1993, 166). É por isso que precisamos de uma teologia viva, que dê "sabor" além de "saber", que seja a base de um diálogo eclesial sério, de um discernimento sinodal, a ser organizado e praticado nas comunidades locais, para um relançamento da fé nas transformações culturais de hoje.
Que uma teologia que sirva à vida boa seja a via mestra de vosso empenho eclesial, digna de ser exposta entre as coisas belas da vitrine da vossa revista. Uma teologia capaz de dialogar com o mundo, com a cultura, atenta aos problemas do tempo e fiel à missão evangelizadora da Igreja e também fiel às suas raízes no seminário de Milão, chamado a ser lugar de vida, discernimento e formação.
Caros irmãos, espero que estas reflexões vos ajudem a cultivar a vossa vocação de serviço à fé, à Igreja, ao mundo. Agradeço e desejo-lhe tudo de bom em vosso trabalho. Abençoo de coração a vocês e a toda a comunidade; e peço-lhe, por favor, que rezem por mim.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Fazer teologia, segundo o Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU