22 Dezembro 2023
"Nesse sentido, uma leitura queer do texto bíblico - Antigo e Novo Testamento - é sugestiva e interessante na medida em que desafia categorias sedimentadas ao longo do tempo. O volume se insere exatamente nessa linha, seguindo uma teologia radicalmente inclusiva, em fermentação, que discute e critica, do ponto de vista exegético, pressupostos que pareciam absolutos e propõe novas abordagens de leitura", escreve Fabrizio Mastrofini, jornalista e ensaísta italiano, em artigo publicado por Settimana News, 15-12-2023.
É lícita uma leitura queer da Bíblia? A resposta é simples: tal leitura é permitida e possível, como demonstra a recente obra volumosa publicada em italiano, intitulada "Bibbia Queer. Un comentário", pela EDB. O original em inglês é de 2022, e, portanto, é mérito da editora italiana chamar a atenção de nossos especialistas e leitores para um texto complexo, sugestivo, problemático, que abre perspectivas inéditas e está destinado a gerar discussões (esperamos!).
"Bibbia Queer: un commentario", editada por Mona West e Robert E. Shore-Goss (Foto: Divulgação)
O que é queer, o que se entende por esse termo? Tomo emprestada a definição da introdução de Selene Zorzi e Martin M. Lintner:
"O termo 'queer' pretende referir-se a tudo o que é estranho, torto no sentido de não alinhado, que pode se apresentar em uma identidade pessoal. 'Queer' refere-se à alteridade que, atravessando uma identidade, desconstrói sua definição pública e social, tornando-a, de alguma forma, não alinhada".
E o Deus da Bíblia não faz exceções: ama completamente os seres humanos, é um Deus trinitário, pai, mas também mãe, que opera através de um terceiro, ou seja, o Espírito Santo, não se encaixa em nenhuma categoria e, pelo contrário, é o totalmente outro que transcende as categorias, ordena e surpreende ao mesmo tempo.
Nesse sentido, uma leitura queer do texto bíblico - Antigo e Novo Testamento - é sugestiva e interessante na medida em que desafia categorias sedimentadas ao longo do tempo. O volume se insere exatamente nessa linha, seguindo uma teologia radicalmente inclusiva, em fermentação, que discute e critica, do ponto de vista exegético, pressupostos que pareciam absolutos e propõe novas abordagens de leitura. Nesse sentido, é uma operação cultural de alto nível. Os autores dos diferentes capítulos pertencem ao mundo protestante, muitas vezes fazendo parte de uma minoria sociocultural e, portanto, podem oferecer uma perspectiva "de baixo".
Na análise, as mais de mil páginas do volume propõem abordagens de leitura a partir de cada um dos livros da Bíblia, acompanhando-os um após o outro. É um volume que se presta a ser estudado, aprofundado, meditado, consultado, dependendo das intenções e pontos de vista de quem o aborda.
Há propostas intrigantes. Uma delas diz respeito à leitura do episódio de Sodoma e Gomorra, conforme narrado no Gênesis, e recomposto segundo a perspectiva sugerida por Michael Carden. Este lê o trecho em que Ló hospeda os dois anjos e os habitantes de Sodoma que desejam possuí-los para puni-los, não como uma modalidade homossexual e antinatural - motivo da destruição da cidade - mas como um caso de violência homofóbica e xenofóbica. Sodoma não é punida pela dissolução antinatural de seus habitantes - leitura segundo Pier Damiani do século XI - mas porque seus habitantes, certamente heterossexuais, queriam se livrar dos dois estrangeiros hospedados por Ló, dois anjos enviados por Deus.
A mensagem de acolhimento ao estrangeiro, no sentido de algo diferente, o estranho, o fora do comum, é um aviso universal da Bíblia que deve - deveria - ressoar com ainda mais força em nosso tempo.
Aqui também, o volume deve ser compreendido em sua tentativa de explorar toda a Bíblia, com aspectos e interpretações mais ou menos bem-sucedidos. Por exemplo, a ideia de inserir Jó em um contexto de reflexão sobre a injustiça que atinge o inocente é convincente. Jó - o estrangeiro, não judeu - torna-se a pessoa sofredora com a qual os sofredores do mundo podem se identificar, aqueles que são atingidos ou perseguidos e estigmatizados pelo simples fato de serem diferentes ou percebidos como tais.
Jó é um paradigma que atravessa e supera as definições culturais, os estereótipos de gênero, as diferenças e as épocas históricas. Nesse sentido, uma abordagem queer é muito bem-sucedida. Menos bem-sucedida é quando se tenta remover à força a "masculinidade", às vezes segura, outras vezes apenas presumida, de episódios ou autores bíblicos. Veja, por exemplo, a argumentação filológica que busca atribuir a possibilidade de um autor não masculino a Eclesiastes (p. 395-401).
Outras passagens problemáticas dizem respeito exatamente à tentativa de encontrar elementos queer em todos os livros da Bíblia. Às vezes, pode parecer uma tentativa forçada. Ou pior - na opinião de quem escreve - como no caso de uma passagem na leitura dos Atos dos Apóstolos.
A referência é ao episódio em que o apóstolo Filipe, no deserto, encontra um personagem - escreve o autor do capítulo, Sean D. Burke - que "é a encarnação da interseccionalidade" e, "em rápida sucessão, é apresentado como 'um homem, um etíope, um eunuco, um oficial de Candace (rainha dos Etíopes)'". E aqui, no contexto de uma leitura queer, o autor propõe uma longa digressão para descrever as práticas sado-cirúrgicas da época que tornavam eunucos, com detalhes francamente horríveis e dignos de um texto de horror. Temos, nessas páginas, um vislumbre de crueldade que não contribui para a história e, principalmente, para a proposta exegética dos Atos. Talvez uma maior atenção por parte dos editores teria sido prudente.
Outro aspecto problemático diz respeito à leitura proposta para o Levítico. É um livro complexo, apresenta prescrições minuciosas, complicadas, não compartilháveis e incompreensíveis para um leitor contemporâneo, a menos que se remonte ao contexto social e cultural em que foram escritas. As prescrições sexuais e as tipologias de interação entre os sexos são examinadas minuciosamente, sem avisar ao leitor de hoje de maneira igualmente clara, precisa e pontual que - por exemplo - o termo homossexualidade não deve ser usado em referência ao Levítico, porque é um conceito estranho ao mundo da Bíblia. Usá-lo desvia.
Assim, para entender, o autor do capítulo, David Tabb Stewart, poderia ter contextualizado melhor na mentalidade semítica e na época do Exílio na Babilônia o significado de uma complicada ritualidade que visava preservar as tradições e a pureza de Israel. Sabemos que uma leitura fundamentalista do Levítico ainda é usada hoje para estigmatizar comportamentos discriminatórios; no entanto, uma leitura de desconstrução sem contextualização precisa também causa danos.
Em conclusão, além de enfatizar a importância de se aproximar e ler diretamente a "Bibbia Queer", seria agora importante que a editora - EDB - trabalhasse em pelo menos duas direções.
Primeiro: acompanhar as temáticas abordadas no volume principal com uma série de contribuições mais ágeis para aprofundar aspectos específicos. Nesse sentido, não falta produção literária, especialmente no mundo anglo-saxão. Seria crucial, então - segundo aspecto - interrogar a teologia europeia, pelo menos, e o amplo e articulado campo dos estudos bíblicos, para que as sugestões deste texto principal possam ser discutidas, recolhidas e relançadas.
Publicá-lo é não apenas louvável, mas também traz uma visão de alto nível cultural. Não se deve correr o risco de deslocar todo o eixo da Bíblia em outra direção, opondo a uma leitura até então sexista (mesmo que inconsciente) uma leitura queer que é certamente possível e legítima, mas que exige alguma atenção. E o debate (não anátemas!) é muito necessário.
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Uma leitura “queer” da Bíblia. Artigo de Fabrizio Mastrofini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU