10 Fevereiro 2021
"Até a teologia entendeu que não pode mais sentar-se como uma rainha indiscutível, mantendo a filosofia ou a ciência a seus pés como serviçal", escreve Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 07-02-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "demorou muito para se chegar ao reconhecimento dos diferentes, mas legítimos, estatutos epistemológicos, como no caso do já citado princípio do NOMA, os Non Overlapping Magisteria, proposto pelo cientista agnóstico Stephen Gould, isto é, de dois, "magistérios" paralelos independentes e, portanto, não conflituosos devido à diferença em suas abordagens da realidade (e isso se aplicaria não apenas à teologia, mas também à filosofia, arte, literatura, música e até mesmo ao apaixonar-se)".
Onze dos ensaios de Michel de Certeau, "surpreendente sismólogo das "fraturas e trânsitos" do cristianismo" - informa Ravasi - são agora repropostos em que a fragmentação temática é, na realidade, semelhante ao vislumbre de intuições fulgurantes.
Dicionários teológicos. O "Nuovo Interdisciplinare" publicado pela Dehoniane coloca ao lado dos teólogos também historiadores, filósofos, semiólogos e antropólogos. Os temas vão de Jesus às Escrituras, da Igreja ao Covid-19 “Quando você tem sede, pensa que pode beber um mar inteiro: isso é fé. Quando você começa a beber, dois copos são suficientes: isso é ciência”. Assim, Anton Chekhov, convencido - como muitos no século XIX - de que a religião era uma aspiração essencialmente humana aos céus do infinito e da eternidade, enquanto a ciência nos traria de volta com os pés na terra, no mundo do fenômeno e da experimentabilidade. Demorou muito para se chegar ao reconhecimento dos diferentes, mas legítimos, estatutos epistemológicos, como no caso do já citado princípio do NOMA, os Non Overlapping Magisteria, proposto pelo cientista agnóstico Stephen Gould, isto é, de dois, "magistérios" paralelos independentes e, portanto, não conflituosos devido à diferença em suas abordagens da realidade (e isso se aplicaria não apenas à teologia, mas também à filosofia, arte, literatura, música e até mesmo ao apaixonar-se).
Vários autores, Nuovo Dizionario Teologico
Interdisciplinare, Dehoniane, Bologna, p. 852, € 60
Por outro lado, até a teologia entendeu que não pode mais sentar-se como uma rainha indiscutível, mantendo a filosofia ou a ciência a seus pés como serviçal: famoso é o lema philosophia ancilla theologia, extraído de uma afirmação mais complexa do De divina omnipotentia do médico de Ravenna da Igreja de San Pier Damiani (1007-1072), elevado por Dante no céu de Saturno entre os espíritos contemplativos (Paraíso XXI, 43ss). Essas duas premissas, em ângulos opostos, permitem ressaltar a evolução metodológica até agora adquirida, consubstanciada no título de um Novo Dicionário Teológico Interdisciplinar que contou com o envolvimento de quase uma centena de teólogos italianos. Naturalmente, a ênfase que queremos assinalar está naquele adjetivo "interdisciplinar" que reconhece a multiplicidade de abordagens do ser e do existir, mas que supera a mera alteridade do referido NOMA. De fato, a autonomia frígida e rígida dos dois "magistrados" substitui uma possibilidade mais calorosa de diálogo, de interlocução e, em alguns casos - sempre com a devida cautela metodológica - até de transdisciplinaridade.
A esse respeito, a declaração programática é emblemática: o dicionário em questão “gostaria de ser um reconhecimento de itinerários e não a habitual ponderada sistematização de dados e resultados. É animado pela intenção de reorganizar o saber teológico com outros saberes em um contexto histórico preciso, aquele atual”. Uma atualidade que chega a “olhares prospectivos finais”, até mesmo em um capítulo dedicado ao “Covid-19. O presente e o futuro do mundo”. Sob essa luz, a própria estrutura do dicionário que gostaríamos de representar simbolicamente é significativa. O início é necessariamente "radical": o evento de Jesus Cristo, a Escritura, a Igreja que são precisamente as raízes, isto é, os fundamentos da própria fé. A árvore cresce então em sua "interpretação" que é precisamente o trabalho da teologia segundo o alcance de suas articulações (histórica, fundamental, sistemática, moral, espiritual, sacramental, pastoral, jurídico-canônica) e das correlações com a filosofia e a história.
Os ramos da árvore, no entanto, estendem-se para o contexto sociocultural atual que respira uma atmosfera polimórfica, onde se movem os ventos de multiculturalismo, da estética, do pluralismo religioso, da ciência e e da técnica, da ecologia, da secularização, mas também de uma espiritualidade indistinta, mas ativa. É, nesse ponto, que aparentemente se retorna ao modelo dos dicionários tradicionais com a sequência de verbetes que procedem alfabeticamente de "alteridade" a "vida espiritual". Estes parecem justamente os ramos principais daquela árvore, se quisermos continuar a metáfora vegetal, que é aliás cara à simbologia teológica bíblica. Na verdade, mesmo neste caso, assistimos a uma operação inovadora, não apenas ao nível da seleção dos verbetes. É o que acontece, por exemplo, com a introdução de sujeitos como a teologia animal, o tema da complexidade, as comunicações sociais, os entretenimento, a economia política e ética, a literatura, a neuroética, o pós-humanismo, a psicologia-psicanálise, a sociologia e, claro, a ciência em confronto com a teologia.
La Debolezza del Credere, Michel de Certeau,
Vita e Pensiero, Milão, p. 273, € 22
A outra novidade encontra-se precisamente na apresentação daqueles verbetes, verdadeiras ramificações frondosas em seu desdobramento que é essencial e não contorcido. São, na verdade, abordagens semelhantes a mapas cognitivos, abertos a pesquisas futuras do leitor, e não a documentos didáticos, autossuficientes, academicamente exaustivos e em si conclusivos.
Claro que nem todas as páginas são capazes de responder a uma exigência tão alta e abandonar uma linguagem tentada à autorreferencialidade, sem dúvida mais fácil de praticar do que a "interdisciplinaridade". No entanto, o resultado é positivo no seu conjunto e revela a mão firme de quem desenhou a arquitetura da obra, também paradoxalmente atenta para deixar alguns telhados descobertos e abertos para os céus ainda por explorar, como se vê nas “perspectivas finais" sobre os temas do futuro, o corpo, a feminilidade, a globalização, a desigualdade e assim por diante.
Portanto, a esperança da introdução não é paradoxal:" Propomos um dicionário para ler e não só para consultar", capaz de "solicitar a pesquisa ao invés de consolidar dados e questões como foram entregues pela história e por elaborações anteriores", na consciência da "complexidade" em que até a teologia está agora envolvida. Anexado a este instrumento que pode, portanto, cruzar o perímetro das bibliotecas eclesiásticas para aterrar também naquelas de outras disciplinas, referimo-nos espontaneamente a um pensador extraordinário descoberto com paixão apenas nestes últimos tempos, a ponto de ter um site dedicado a ele em que participam não apenas teólogos, mas também historiadores, filósofos, lacanianos, semiólogos, antropólogos e assim por diante.
Considere que, por exemplo, no Dicionário dos teólogos do primeiro século até hoje (Piemme 1998), nenhuma linha havia sido reservada para este brilhante jesuíta francês, Michel de Certeau, que morreu em 1986 aos 61 anos, agora elevado à símbolo de uma teologia realmente "interdisciplinar".
Paola Di Cori, Michel de Certeau. Per il lettore
comune, Quodlibet, Macerata, p. 224, €20
E este adjetivo não deve ser entendido no sentido puramente estático de uma justaposição entre diferentes saberes, mas de uma interconexão vibrante e vital. Onze de seus ensaios são agora repropostos em que a fragmentação temática é, na realidade, semelhante ao vislumbre de intuições fulgurantes. É o que entendem perfeitamente aqueles que leram a sua obra maior, que ficou inacabada, sempre retocada e remodelada por ele, aquela Fabula mística (Jaca Book 2008) que, partindo do planeta do misticismo dos séculos XVI-XVII, cunhava um diagnóstico antecipatório da crise religiosa, sociopolítica e cultural em que hoje nos debatemos.
Só podemos sugerir a experiência de seguir os caminhos subjacentes a esses ensaios elaborados a partir de 1964 (na aba da capa consta "escritos entre 1964 e 1993”, na realidade de Certeau já tinha morrido há sete anos naquele ano, portanto alguns são publicações póstumas), acompanhados pelo belo prefácio de Stella Morra e da orientação da colaboradora e intérprete do jesuíta, Luce Giard.
Não é possível comprimir, agora, no molde frio de uma síntese, a incandescência das reflexões que, saindo do misterioso reino do misticismo, embrenham-se por caminhos ramificados rumo a horizontes inexplorados e na navegação para ilhas desconhecidas. Sempre, na consciência da grandeza e da potência da “fragilidade do crer”, como afirma o título do último ensaio e de toda a coletânea. Para este surpreendente sismólogo das "fraturas e trânsitos" do cristianismo, se encaixa a definição presente em Temor e Tremor de Kierkegaard: “A fé é a paixão mais alta de todo homem. Talvez haja muitos homens de cada geração que não a alcancem, mas nenhum vai além dela”.
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A ciência de Deus em cem vozes diferentes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU