26 Janeiro 2021
"O percurso bonhoefferiano sempre esteve em diálogo com um mundo sacudido por impressionantes terremotos históricos e culturais, mas também carregado de potencialidades para o cristão. Para compreender plenamente essa interação entre a fé e um horizonte devastado, mas ainda guardião de uma presença transcendente, é necessário seguir o mapa que Ragusa traçou através de um contraponto original entre a existência pessoal desta figura extraordinária para intuições e análises e o delineamento do seu pensamento", escreve Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 24-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo D. Bohnhoeffer, “Sirvam o tempo! ... Queres Deus? Então permaneça no mundo!”.
Gerhard Lohfink
La fede cristiana spiegata in 50 lettere
Queriniana, Brescia, p. 288, € 29
Epístolas. O teólogo Gerhard Lohfink imagina enviar 50 cartas a uma família fictícia (os Westerkamps) nas quais aborda os fundamentos e as controvérsias da fé cristã em uma ampla gama. Durante o longo período que passei como prefeito da Biblioteca Ambrosiana de Milão, uma das experiência mais divertidas foi a de folhear as coleções de correspondência, principalmente de autoria famosa. As surpresas foram muitas. A título de exemplo, muitas cartas serviram de confirmação evidente de um verso presente em uma carta com a qual Cícero ousava pedir ao amigo Lúcio Lucceio que redigisse sua própria biografia, agora ciente de sua fama, mas envolto no véu de uma densa humildade. Aquela frase virou provérbio: Epistula non erubescit, a carta não enrubesce porque também pode expressar o que você não ousaria dizer cara a cara (quem quiser ler o texto de Cícero na íntegra, o encontrará nas Epistulae ad familiares 5: 12).
Noutros casos, era a grafia, por vezes indecifrável, que me intrigava, confirmando outro ditado clássico em todo o mundo: Gallina scripsit, da qual vem a nossa escrita "escrito por uma galinha" (desta vez era Plauto no v. 30 do seu Pseudolus). E ainda, ao se acompanhar uma coleção de cartas, descobria-se a amargura de quem em um texto anterior se deixara levar pelo excesso e confirmava outro lema latino, igualmente conhecido, de origem medieval: Verba volant, scripta manent. Esta digressão, que poderia se expandir nos mais diversos casos (descobri, por exemplo, um bilhete de Ezra Pound que, em um italiano sofrível, pedia ao Prefeito da época uma série de reproduções fotográficas de um manuscrito poético do século XVI), introduz livremente o surpreendente epistolário inventado por um conhecido teólogo e exegeta alemão, Gerhard Lohfink, nascido em 1934, professor emérito da prestigiosa Universidade de Tübingen.
Dirigindo-se a uma família fictícia, os Westerkamps com sua filha Hannah, ele elabora uma correspondência de 50 cartas que são a confirmação de uma das trezentas máximas do Oráculo manual publicado em 1647 pelo pensador jesuíta espanhol Baltasar Graciàn (e recentemente traduzido e comentado em uma edição exemplar da editora Adelphi): "Uma carta é uma conversa escrita". Na verdade, o estudioso alemão especifica que escolheu "a forma epistolar, querendo evitar ao máximo a do tratado". De fato, o fio condutor não é outro senão a fé cristã em sua estrutura e em suas muitas derivações e declinações, incluindo as objeções formuladas de fora. Nessa linha, Lohfink poderia recorrer ao exemplo de São Paulo, ainda que os exegetas discutam o gênero literário de suas cartas salpicadas de sinais epistolares, mas em substância mais próximas ao tratado (por exemplo, a Epístola aos Romanos).
A inspiração simbólica que gera a sequência da correspondência de Lohfink é oferecida por um fato que se repete em muitas famílias. “Há alguns meses sua filha Hannah, de nove anos - escreve o teólogo - veio conversar com o senhor, declarando que queria fazer a primeira comunhão junto com outras meninas de sua classe. Se entendi sua carta corretamente, o senhor, Sr. Westerkamp, não é batizado. Sua esposa, por outro lado, foi batizada e confirmada, mas depois perdeu todo o contato com a Igreja”. A última das 50 cartas é dirigida a Hannah, agora batizada e pronta para a primeira comunhão.
O sacerdote também lhe escreve, apresentando uma objeção implícita: “Para você, ainda haverá decisões a serem tomadas. A fé deve ser conquistada continuamente de novo. Não é uma coisa barata, que se obtém com facilidade. As coisas grandes e belas na vida são sempre um risco. Você também sabe que seus pais estão diante desse risco. Seu pai se pergunta se deveria ser batizado e, portanto, ser acolhido na Igreja. Até agora não parece que tenha algo decidido. Ainda está tudo em jogo”. A abordagem é interessante porque exorciza toda forma de proselitismo, mas permanece como uma interpelação a uma escolha consciente que é tudo menos óbvia e emotiva.
Nessa perspectiva se entrelaça toda a "conversa" epistolar que é implicitamente dialógica, ainda que as cartas do interlocutor não sejam apresentadas, mas evocadas apenas em filigrana. A trama do discurso da fé poderia ser comparada a uma espécie de procedimento cinematográfico que parte do plano geral e avança, estreitando-se cada vez mais e especificando o horizonte a ser filmado. Assim, no início as primeiras cartas apontam para questões cosmo-antropológicas gerais, como a criação, o infinito físico e transcendente, a evolução ("do animal para o ser humano"), o mal e a dor.
O objetivo progressivamente se estreita e se fixa na história à medida que é lida pelo prisma da fé. Assim, entram em cena os atores fundamentais, o Israel bíblico e Jesus Cristo ("todos de Israel, todos de Deus"), a Lei Sinaítica e o Evangelho, o povo da aliança com Deus e a Igreja, o Decálogo e o mandamento do amor, os livros sagrados e assim por diante. Por fim, em primeiro plano, são postos em foco, por um lado, o diálogo orante com Deus (a oração) com toda a sua articulação existencial e, pelo outro, olha-se para a morte, o juízo e o além vida.
Tudo isso é sempre explicado de forma plana e transparente, em um estilo quase narrativo, de modo a evitar o gênero pedante de um catecismo capaz de criar reações alérgicas nos dois interlocutores, o marido agnóstico e a esposa não praticante. É, portanto, um texto que - além de visar o mundo da formação eclesial através do afresco das figuras, dos símbolos e dos temas da fé - se dirige também àqueles que desejam redescobrir as raízes agora enterradas da sua vida pessoal ou descobrir um horizonte talvez desconhecido, tudo menos que ingênuo, fanático ou clerical.
Dietrich Bonhoeffer
Con i piedi per terra
Paoline, Milão, p. 317, € 36
Já se passaram mais de 75 anos desde aquele 9 de abril de 1945, quando aos 39 anos foi enforcado pelos nazistas o grande teólogo Dietrich Bonhoeffer, também conhecido por aqueles que não têm interesses religiosos específicos pelo extraordinário testemunho de seu quase diário do cárcere, Resistência e submissão (última edição italiana em 2002 pela Queriniana, que traduziu suas obras mais importantes).
Uma coletânea significativa de seus vários escritos agora aparece, alguns ainda inéditos na versão italiana, graças a um pároco teólogo de Pisa, Elvis Ragusa. Vamos aproximar - apenas com um aceno, mas com calor - esse volume ao texto de Lohfink por causa do fio condutor comum que, além do mais, muitas vezes alicerçou a busca apaixonada do pastor mártir protestante. Está bem formulado no título Con i piedi per terra (Com os pés no chão, em tradução livre) e é ainda mais especificado pelo subtítulo " Un cristiano di fronte a Dio e allo Stato” (Um cristão diante de Deus e do Estado, em tradução livre).
Sim, porque o percurso bonhoefferiano sempre esteve em diálogo com um mundo sacudido por impressionantes terremotos históricos e culturais, mas também carregado de potencialidades para o cristão. Para compreender plenamente essa interação entre a fé e um horizonte devastado, mas ainda guardião de uma presença transcendente, é necessário seguir o mapa que Ragusa traçou através de um contraponto original entre a existência pessoal desta figura extraordinária para intuições e análises e o delineamento do seu pensamento. A introdução à coletânea, que na verdade é um verdadeiro ensaio (e, pode-se dizer, um retrato colorido e não apenas um esboço), é na verdade um guia para reconstruir uma trilogia de etapas.
Elas são pontuadas diacronicamente, mas também logicamente por citações emblemáticas: “Ler a realidade, decidir-se sobre a realidade, estar na realidade”.
Mesmo na simplificação dessas teses, é possível intuir aquele fio permanente que impede a fé cristã, de sua natureza histórico-carnal (quem não conhece a afirmação joanina “O Verbo se fez carne”?), de se desprender do terreno da "realidade”, mesmo escandalosamente tenebrosa, em direção a céus míticos ou alienantes.
E é impressionante ver como os doze textos oferecidos aqui não hesitam em penetrar nos meandros da história, até mesmo no fragor da guerra, na sombria aproximação do Führer, a lacerante questão judaica e assim por diante, ancorando-se em Jesus Cristo e na essência do Cristianismo. Em suma, deveríamos sempre ouvir aquele aviso inicial que Bonhoeffer, aos vinte e dois anos, lançou num sermão proferido em Barcelona: “Sirvam o tempo! ... Queres Deus? Então permaneça no mundo!”.
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Caros amigos, vos escrevo e vos falo de fé. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU