29 Dezembro 2020
"A literatura espiritual e secular tem tentado enriquecer o sucinto relato do Evangelho sobre Maria, tentando reconstruir as emoções humanas e interiores da mulher que foi protagonista de uma maternidade tão excepcional".
A opinião é do cardeal Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 20-12-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Leão Magno, o papa que em 453 conseguiu bloquear o huno Átila, o “flagelo de Deus”, polemizava em um de seus discursos natalícios contra uma prática dos cristãos romanos marcada pelo paganismo: “Antes de pôr os pés na basílica do apóstolo Pedro no Natal, eles param nos degraus, voltam-se para o sol nascente e, curvando a cabeça, inclinam-se ao sol para prestar homenagem ao seu disco resplandecente”.
No rastro dessa observação, consegue-se compreender por que – quando em Roma era dada a largada às 30 corridas da Festa do Sol e, para o solstício de dezembro, acendiam-se na noite as fogueiras que iluminavam a capital, e o povo ao amanhecer curvava-se ao sol nascente – a Igreja colocou a data (cronologicamente desconhecida) do Natal de Cristo.
Santo Agostinho também admoestava os seus fiéis africanos de Hipona com este apelo: “Deixemos que os pagãos exultem, mas este dia para nós é santificado não pelo sol visível, mas pelo seu invisível Criador”.
Intui-se, então, por que o anúncio da concepção virginal de Maria, a mãe de Jesus, foi datado nove meses antes do nascimento, ou seja, no dia 25 de março. E é a partir daí que começamos para recriar um perfil essencial do Natal de Maria.
Na verdade, a literatura exegética (deixemos de lado a profana e artística que é infindável) sobre o punhado de versículos, 180 ao todo, dos chamados “Evangelhos da infância” de Cristo nos dois primeiros capítulos dos Evangelhos de Mateus e de Lucas, é imponente. E o é pela dificuldade de comprimir no molde frio da classificação dos gêneros a riqueza e a fragrância narrativa e teológica daquelas páginas.
Elas entrelaçam as memórias familiares e até mesmo clânicas ligadas aos três atores dominantes, Maria, o esposo, José, e o menino Jesus, com uma florescência simbólica, salpicando as páginas com citações e referências bíblicas, e projetando as várias cenas, semelhantes a roteiros, na realidade, para o futuro da biografia do recém-nascido, até a sua morte e glorificação final.
Mas voltemos ao simbólico 25 de março da anunciação do anjo, o tradicional mensageiro celeste que irrompe a modesta casinha de uma desconhecida jovem de Nazaré, um vilarejo da Galileia nunca mencionado em nenhum outro lugar da Bíblia.
Excluamos todo o complexo discurso mariológico e cristológico, e detenhamo-nos brevemente apenas nas duas frases que Maria pronuncia em reação ao anúncio da sua maternidade especial. É de se notar a extrema sobriedade da Virgem Mãe nos Evangelhos, em comparação com a incessante loquacidade que, ao longo dos séculos, as aparições marianas colocaram em sua boca. Nas únicas fontes evangélicas originais, deixando de lado os textos apócrifos, Maria pronuncia apenas 154 palavras: se excluirmos as 102 do canto do Magnificat (Lc 1,46-55), temos uma sequência de declarações mínimas.
E é isso que acontece com a primeira que, na realidade, é uma pergunta dirigida ao anjo: “Como acontecerá isso, se eu não conheço homem?” (Lc 1,34), sete palavras gregas ao todo. Maria objeta a sua situação atual de esposa prometida, que excluía a coabitação e o “conhecimento” sexual do seu noivo. Se, nessa fase, a mulher se encontrasse grávida por causa de uma relação externa, o futuro esposo tinha o direito de repudiá-la, submetendo-a a uma pesada ação penal e social, levando em consideração o contexto cultural e religioso da época.
Com efeito, José teria a intenção de proceder nesse sentido, depois de descobrir o estado interessante da sua noiva: é o que Mateus evoca na paralela “anunciação a José” (1,18-25), assinalando, porém, a virada que o anjo também vai lhe impor.
Maria, portanto, revela uma racionalidade própria, que exige uma explicação diante de um anúncio que não só é surpreendente, mas também indecifrável. Insere-se, assim, a ampla articulação da resposta teológica do anjo que desenvolve uma síntese precisa de cristologia. É somente nesse ponto que a mulher oferece a sua aceitação, com a segunda frase, uma réplica de 10 palavras gregas (incluindo os artigos): ““Eis aqui a serva do Senhor! Faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38).
Deve-se ter o cuidado de não pisar – como foi feito na hermenêutica tradicional – apenas no pedal da humildade, embora real, dessa autodefinição como “serva”. Não esqueçamos, de fato, que “servo do Senhor” é um título de honra atribuído a Abraão, Moisés, Josué, Davi e até mesmo ao Messias. A declaração de Maria, portanto, é também a expressão da autoconsciência de ter que cumprir uma missão relevante na história da salvação.
Devemos agora – para ficar apenas dentro do perímetro estritamente natalício – chegar ao hipotético e simbólico 25 de dezembro, com o parto em Belém: nas poucas linhas do relato de Lucas (2,1-7), aninha-se um acúmulo de questões histórico-críticas e teológicas.
Apenas alguns exemplos. Em primeiro lugar, o quebra-cabeças cronológico do censo de Quirino, governador da Síria: o único documentado é do ano 6 depois de Cristo, embora seja verdade que o evangelista fala de um “primeiro censo”. De acordo com uma prática não exclusiva, as operações censitárias imperiais podiam ser não residenciais, mas “étnicas”, ou seja, na sede de origem da tribo ou dos clãs familiares. É por isso que o casal se desloca de Nazaré para Belém, lugar de ascendência do clã de José.
O outro dado é o do parto de Maria dentro de um espaço estranho: “Ela deu à luz o seu filho primogênito, envolveu-o em faixas e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria” (2,7) O imaginário comum da gruta do presépio e da recusa da acolhida na hospedaria é postiço: na realidade, Maria não dá à luz em um estábulo, mas sim em uma sala secundária que, nas casas dos vilarejos, servia de despensa e de refúgio de inverno, na companhia dos animais, sala cedida ao casal talvez por um conhecido ou parente de Belém que, em vez disso, ocupava a sala principal.
A companhia do boi e do jumento também é apócrifa, criada a partir de uma alegoria popular desconhecida do texto do Evangelho e baseada em uma passagem do profeta Isaías, na qual Deus lamentava que “o boi conhece o seu proprietário, e o burro a cocheira do seu dono, mas Israel não conhece nada, o meu povo não entende” (1,3). No entanto, há aquele toque de ternura da Mãe que, na pobreza, se preocupa em envolver o seu pequeno em faixas e lhe oferecer um berço tão simples, na palha e no feno da manjedoura.
Paremos aqui, embora “o Menino e a sua Mãe” seja um módulo narrativo que preencherá toda a narrativa do dramático início da vida do recém-nascido segundo o Evangelho de Mateus, forçado imediatamente a ser refugiado, enquanto se alarga a mancha de sangue do massacre dos pequenos belemitas ordenada por Herodes.
A literatura não só espiritual tentou compensar o sucinto ditado evangélico e reconstruir as emoções humanas e interiores dessa mulher destinatária de uma maternidade tão excepcional. Com efeito, ela gerou um filho que marcou com um “antes” e um “depois” dele a história não só ocidental, para crentes e não crentes. E é precisamente a um ateu declarado como Jean-Paul Sartre que coube recompor com fineza até teológica esses sentimentos não expressados, quase elaborando a definição dogmática Theotókos, “Mãe de Deus”, do Concílio de Éfeso (431).
Ele o fez no texto teatral “Bariona ou o filho do trovão”, escrito enquanto estava detido no stalag XII D nazista em Trier e destinado a ser representado para os seus companheiros de prisão no Natal de 1940. Aqui estão algumas linhas dessa obra tão surpreendente e intensa:
“Cristo é seu filho, carne da sua carne e fruto das suas entranhas. Ela o carregou por nove meses e lhe dará o seio, e o seu leite se tornará o sangue de Deus (...). Ao mesmo tempo, ela sente que o Cristo é seu filho, o seu pequeno, e que ele é Deus. Ela olha para ele e pensa: ‘Este Deus é meu filho. Esta carne divina é a minha carne. Ele é feito de mim, tem os meus olhos, e este formato da sua boca é o formato da minha. Ele se parece comigo. Ele é Deus e se parece comigo!’. Nenhuma mulher teve desse modo o seu Deus apenas para ela. Um Deus muito pequeno que pode ser segurado entre os braços e coberto de beijos, um Deus totalmente caloroso que sorri e respira, um Deus que pode ser tocado e que vive”.
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A Mãe da ternura. Artigo de Gianfranco Ravasi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU