Bíblia lida, examinada e traduzida. Artigo de Gianfranco Ravasi

Árvore da Vida, um dos símbolos vegetais da Bíblia | Foto: Reprodução - Instagram

19 Dezembro 2020

"O verbo grego usado por Jesus é eraunan e aparece apenas seis vezes no Novo Testamento, duas no quarto Evangelho, sempre com o significado de 'escrutinar, investigar, examinar, pesquisar'. Justamente pode se tornar a síntese ideal de um método correto de leitura da Bíblia, oposto aos dois extremos do literalismo fundamentalista e do espiritualismo evanescente", escreve Gianfranco Ravasi, prefeito do Pontifício Conselho para a Cultura, em artigo publicado por Il Sole 24 Ore, 13-12-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

"Cristo falou comigo através do seu isolamento, do peso da sua morte, da sua indignação, da sua dor ...”. Não é a confissão pública de um pregador ou de um místico, conquistado pela voz de Cristo que vem das linhas do Evangelho de Marcos a que se refere. Pode-se intuir quem ele seja quando declara: "Tudo o que tenho a fazer é subir ao palco e deixar o anátema de Deus rugir dentro de mim e tomar posse de mim”. Sim, ele é um cantor e compositor, que reconhece estar "obcecado" pela Bíblia, embora permaneça essencialmente um não crente: ele é o australiano Nick Cave, nascido em 1957, que também apareceu na Itália há pouco tempo com seu filme-concerto Idiot Prayer (e já o título é um emblema) e agora nas livrarias com seu Stranger Than Kindness (il Saggiatore). Ele talvez seja o último de uma longa série de artistas que, aparentemente distantes de textos sagrados, às vezes até envoltos em uma névoa sulfurosa, revelaram por transparência em suas obras, o lampejo de uma Palavra transcendente: por exemplo, lembramos Leonard Cohen ou Bob Dylan mais acostumados com as Sagradas Escrituras e, à sua maneira, também De André, ou um inesperado Springsteen e assim por diante.

 

 

Aliás, a editora Claudiana há tempo inaugurou uma coleção que vai em busca de pegadas bíblicas até mesmo seguindo os passos de Tex Willer, nas brigas dos Simpsons, nas tirinhas da Mafalda de Quino, até mesmo entrando no estrondo de Star Wars ou nas tramas de Stephen King ... Ao custo de repeti-lo pela enésima vez, é a confirmação da presença insone do "grande código" bíblico na cultura ocidental, não só erudita, mas nacional-popular. Essa premissa é destinada a saudar um empreendimento que as Edizioni San Paolo realizaram com uma grande campanha publicitária: é a publicação de uma nova Bíblia integral comentada, oferecida a um vasto horizonte de público também por um custo verdadeiramente surpreendente, levando em conta a imponência do volume (mais de três mil páginas). Como aconteceu com uma das Bíblias mais difundidas, a chamada Bíblia de Jerusalém publicada pelas Dehonianas, esta também tem um lema que a define e que é transparente: "Examinais as Escrituras". Trata-se de uma frase impregnada de polêmica que Jesus lança contra os judeus que "procuravam matá-lo, porque não só quebrantava o sábado, mas também dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus" (João 5,18).

 

O verbo grego usado por Jesus é eraunan e aparece apenas seis vezes no Novo Testamento, duas no quarto Evangelho, sempre com o significado de “escrutinar, investigar, examinar, pesquisar”. Justamente pode se tornar a síntese ideal de um método correto de leitura da Bíblia, oposto aos dois extremos do literalismo fundamentalista e do espiritualismo evanescente. A abordagem é adicionalmente especificada através de uma "gramática" hermenêutica de oito regras detalhadas na introdução geral. Se quiséssemos espremer seu sumo interpretativo, poderíamos remeter para uma bela sugestão de Emmanuel Lévinas em seu ensaio, fulgurante já no título, Para além do versículo: “Arrancar das palavras bíblicas - como se fossem as asas dobradas do Espírito – todos os horizontes que o voo do Espírito pode abraçar, todo o sentido que essas palavras trazem ou para o qual elas despertam”.

 

 

Nessa operação é fundamental uma via ou regra que constitui a originalidade ou especificidade desta Bíblia, elaborada por uma pequena legião de exegetas, na maioria italianos e muitos ainda jovens. É um método já bem conhecido pela tradição clássica com a proposta do gramático e filósofo do século III-II. a.C. Aristarco da Samotrácia, apelidado de "o mais erudito": "Homero se explica com Homero". É também a escolha do judaísmo com o princípio, cunhado pelo rabino Hillel, denominado ghezerah shawah, ou seja, da "dedução lógica": se instaurava a rede das passagens bíblicas paralelas em que uma palavra ou expressão se repetia e dela se extraía uma mensagem coerente.

 

Agora a mesma comparação na Bíblia. Examinais as Escrituras já é visível graficamente nas margens do texto sagrado que é constelado por referências a paralelos, bem como no recorte das notas (como confirmação, leia-se o comentário aos três primeiros capítulos do Gênesis). Mas outra confirmação, vem das 380 notas temáticas que aplicam o método em questão às categorias bíblicas capitais (aliança, amor, fé, graça, justiça, milagre, mistério, morte, ressurreição, revelação, evangelho, verdade e assim por diante), mas também a símbolos menores, talvez inesperados, mas mesmo assim significativos, como anel, jumento, beijo, cajado, carne, coxa, a fórmula "Aqui estou", broto, hissopo, lua, sombra, raiz, selo, solidão, vestes brancas etc. Por falar em símbolos, na capa domina o símbolo vegetal, caro à sabedoria bíblica, que se autodefine assim: “A sabedoria é árvore que dá vida a quem a abraça; quem a ela se apega será abençoado” (Provérbios 3,18). E o comentário é confiado, na contracapa, a Efrem, o Sírio, Padre da Igreja do Oriente do século IV: “A Palavra de Deus é árvore da vida que por todos os lados oferece frutos abençoados”.

 

Na Carta Apostólica Scripturae Sacrae Affectus, emitida a 30 de setembro passado por ocasião do 16º centenário da morte de São Jerônimo, o grande tradutor e intérprete da Bíblia, o Papa Francisco no final citava um apelo daquele Doutor da Igreja: “Lede com muita frequência as divinas Escrituras; aliás, que o Livro Sagrado nunca seja deposto das vossas mãos" (assim na Epístola 52,7). O convite, pelas razões mencionadas no início, é válido também para os não crentes, mas de forma mais vinculante para os cristãos que - ainda segundo Jerônimo - em Cristo, o Verbo feito carne, têm "Aquele que possui a chave de Davi" que abre as verdades contidas na arca dos livros sagrados.

 

 

Para eles, portanto, o Novo Testamento é decisivo. Por essa perspectiva, devemos igualmente sugerir com igual ênfase a edição das Escrituras cristãs, elaborada em chave ecumênica e baseada na admirável "sinopse" entre texto grego original, tradução latina e versão oficial italiana da Conferência Episcopal Italiana. Uma menção especial merece o coração da obra, isto é, o texto grego original do Novo Testamento porque é oferecido de acordo com a edição crítica mais qualificada, a quinta (2019) do famoso The Greek New Testament, para cuja elaboração no passado empenhou-se um grupo de estudiosos do mais alto calibre, entre os quais inclusive o card. Carlo Maria Martini. Uma introdução grandiosa de uma centena de páginas delineia o mapa dessa operação científica, sem ignorar que, ao lado do fluxo do texto grego com seu aparato crítico, também flui a Nova Vulgata latina. Jerônimo volta assim à cena: de fato, após o Concílio Vaticano II, a Igreja Católica decidiu promover uma revisão da Vulgata, fruto do trabalho que o santo realizou especialmente em Belém, onde havia se retirado nos últimos 34 anos de sua vida (386 a 420). Essa operação buscava sintonizar a versão jeronimiana com as novas aquisições da ciência exegética.

 

Não é raro que os leitores me questionem, expressando seu desejo de abordar os textos sagrados originais. Esta é uma ocasião feliz para conferir o Novo Testamento, em grego Kainè Diathèke. A respeito, enternece a confissão da jovem Santa Teresa do Menino Jesus - sim, a doce e patética figura da Lenda do Santo Bebedor, a história de 1939 do judeu Joseph Roth, que se tornou o belo filme de Ermanno Olmi (1988) - que sonhava: “Se eu tivesse sido um padre, teria estudado profundamente o hebraico e o grego para conhecer o pensamento divino, como Deus quis expressá-lo em nossa linguagem humana”.

 

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