29 Outubro 2017
A ordem agostiniana, à qual Lutero pertencia, não tem motivo de celebrar o cinquentenário da Reforma, mas, certamente, de comemorá-lo, refletindo sobre luzes e sombras do fato histórico e da história espiritual do monge alemão. É o que afirma o prior geral, Alejandro Moral Antón, em uma carta dirigida às filhas e aos filhos espirituais de Santo Agostinho, que o L’Osservatore Romano, 26-10-2017, publicou na íntegra. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
De um modo que pode parecer um pouco redutor, quis-se fixar o início da Reforma na exposição pública que Martinho Lutero fez em Wittenberg das suas 95 teses sobre as indulgências, no dia 31 de outubro de 1517. De todos os modos, não há dúvida de que Lutero originou uma verdadeira crise religiosa que provocou uma fratura na cristandade ocidental e lançou as bases não do secularismo, mas sim do processo de secularização e do nascimento de uma nova Europa. As teses envolveram também uma mudança no modo de compreender a si mesmo. Foi então que ele mudou o seu sobrenome; de Luder, passou a assinar Eleutherios (o livre) por um período e, por fim, Luther (Lutero).
A sua personalidade forte, rica e sugestiva nos seus contrastes, a nova teologia que desenvolveu, as consequências da revolução que desencadeou fazem dele uma figura decisiva na história universal e do cristianismo. Podemos afirmar que existe um antes e um depois de Lutero.
Não podemos esquecer que Martinho Lutero (1483-1546) era agostiniano. Ele entrou na nossa ordem em 1505 e era membro da congregação de observância da Saxônia. Pertenceu à comunidade do convento de Erfurt, antes, e de Wittenberg, depois. Recebeu diversos encargos de governo: vice-prior e regente de estudos (1512-1515), depois vigário provincial da Turíngia e Meissen (1515-1518). Exerceu essas tarefas com responsabilidade e sabedoria, tomando decisões quando eram necessárias, sem ignorar as dificuldades e buscando o bem comum. Foi um renomado professor (o título mais caro a ele era o de doutor em Teologia) e credenciado pregador, mostrou-se disponível para prestar os seus serviços quando lhe foram solicitados, como ocorreu naquilo que se refere à questão interna (o conflito entre os observantes e os conventuais) que levou à sua viagem a Roma em 1511-1512.
Todas as fontes evidenciam que ele foi um frade piedoso, íntegro e fervoroso. Até 1521, ele sempre costumava assinar “Martinho Lutero, agostiniano” e usou o hábito até 1524, conservando até a sua morte muito do seu ser frade no que diz respeito à piedade e ao estilo.
Também é verdade que Lutero não só abandonou a ordem, mas também execrou a vida religiosa com todas as suas forças, rejeitando as práticas ascéticas e de piedade, a recitação do breviário e outras obrigações, modificou radicalmente a teologia sacramental, condenou os votos e promoveu o abandono e a fuga em massa dos consagrados. O dano causado à ordem e à vida religiosa na Alemanha foi enorme. Lutero foi um coirmão nosso por um período e compartilhou o nosso carisma, mas ele mesmo pôs-se para fora da ordem com as suas opções, as suas iniciativas e as suas decisões.
A ordem de Santo Agostinho, à qual Lutero pertencia, não tem motivo de celebrar os 500 anos do início da Reforma, mas certamente de comemorá-los. E fazemos isso com serenidade, evidenciando os aspectos positivos que daí se originaram: a reavaliação do indivíduo, uma maior confiança em Deus, a centralidade da Escritura, a aproximação da liturgia ao povo, o desenvolvimento do sentido comunitário, a sã laicidade, a necessidade de uma reforma entendida como retorno ao essencial.
O que a Igreja Católica poderia aprender com a tradição luterana? O Papa Francisco responde assim: “Duas palavras me vêm à mente: a Reforma e a Escritura”. O gesto de renovação para uma Igreja que é semper reformanda e a escolha feita de colocar a Palavra de Deus nas mãos do povo.
Também devemos aprender a evitar que aquilo que deveria ser um processo de reforma e revitalização de toda a Igreja degenere em um “estado” de separação e ruptura, e que a aproximação à Sagrada Escritura se resolva em subjetivismo. Por isso, de acordo com as palavras do teólogo luterano Wolfhart Pannenberg, “a divisão da Igreja no século XVI não pode ser entendida como o sucesso da Reforma, mas somente como a expressão do seu fracasso temporário; de fato, a Reforma visava à renovação de toda a Igreja, em referência à sua origem bíblica”. Além disso, podemos dizer que o cisma da Igreja é uma expressão de fracasso para todos os cristãos.
Hoje, ao recordar a figura de Martinho Lutero, detemo-nos sobre o homem de profundas intuições religiosas, sobre o arauto e pregador da palavra divina, sobre a sua engenhosidade e criatividade, sobre a sua extraordinária capacidade de trabalho, sobre o modo como ele utilizou a imprensa e os progressos do tempo a serviço da comunicação, sobre a sua profunda piedade.
“Todos somos mendicantes, hoc est verum”, escreveu ele em 16 de fevereiro de 1546, dois dias antes de morrer. Ele foi um cristão sincero e um homem de oração, um bom marido e pai da família, um amigo simples e hospitaleiro, um guia diligente das pessoas que procuravam o seu conselho. De temperamento afetuoso e expansivo, apesar das preocupações e das doenças que o atingiram, foi um modelo de virtudes domésticas.
É preciso lembrar, além disso, as suas lutas interiores contra as angústias e as tentações, a sua forma direta de expressão, a abertura da alma e o modo confiante de compartilhar a sua intimidade com aqueles que lhe eram mais próximos, a sua sensibilidade espiritual.
No entanto, não podemos evitar de falar de outro aspecto pouco lisonjeiro: aquele que se refere à sua intolerância. Obstinado e inflexível, passional e veemente, Lutero utilizava expressões mordazes contra aqueles que se opunham a ele, chegando a ser injurioso e grosseiro. Muitas vezes, ele era vexatório e ofensivo, chegando à calúnia. O eleito de Deus, o “profeta do fim dos tempos”, se considerava na verdade e, portanto, respondia em termos agressivos a qualquer desacordo. Para ele, não era possível a retratação, porque ele não assumia a possibilidade de equívoco ou de erro.
É significativa a sua fixação em relação à figura do papa, que evolui da obediência reverencial à aversão e ao aborrecimento, até desembocar em ódio nos seus últimos anos. São verdadeiramente tristes e exagerados os seus insultos e as agressões à Igreja de Roma (“papista”, de acordo com a sua terminologia particular). A leitura desses textos nos enche de dor.
Hoje, graças a Deus, os tempos mudaram: não só as relações entre luteranos e católicos são cordiais, mas também, no caminho do ecumenismo, chegou-se a pontos de encontro, como a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação, assinada em 1999, à qual, recentemente, a Comunhão Mundial das Igrejas Reformadas aderiu.
Quanto ao seu pensamento, é impossível expô-lo aqui, nem mesmo querendo resumi-lo. Direi somente que Lutero manifestou a sua desconfiança na razão e a rejeição da filosofia na repulsa visceral à escolástica, ao aristotelismo, aos sistemas teológicos excessivamente estruturados, aos jogos do intelecto, às classificações, aos sofismas, às sutilezas das escolas. Lutero defendia que tudo isso nos afasta do encontro com Cristo e impede a verdadeira fé, que se baseia na Escritura, na palavra. Deus não é uma hipótese filosófica, mas se revela e fala a nós em Cristo. Por isso, é necessária uma maior simplicidade, abandonar os artifícios para ir à fonte e tornar possível o encontro. E também requer que a Palavra de Deus seja aproximada do povo, facilitando o seu contato e assimilação pessoal.
A partir dessas bases, podemos compreender que Lutero dedicou muito tempo e atenção à tradução e à exegese da Sagrada Escritura e da pregação. Ele mostrou um excelente conhecimento da sua língua nativa. A sua tradução da Bíblia é de uma importância fundamental, tanto em sentido pastoral, quanto em sentido filológico. Lutero teve um papel decisivo na escolha lexical e no estilo, no qual se reflete a vivacidade e a espontaneidade da língua falada. Ele é um inovador da língua, que dota de grande precisão e realismo, a ponto de ser considerado determinante na unificação da língua alemã e na fixação do alemão moderno.
Pregador reconhecido, os seus sermões sempre tiveram uma enorme ressonância. De estilo simples, concreto e didático; muito prático. Falava com profunda convicção, concentrado no que dizia, sem se perder em gestualidades ou teatralidades, mas utilizando locuções populares e modismos. Foi “o eclesiastes de Wittenberg”, o pregador e o transmissor por excelência da Palavra de Deus.
Outro ponto essencial do seu pensamento, na linha agostiniana, é a realidade da graça, referida principalmente à justificação. Neste mundo onde triunfa a indiferença, no qual, tantas vezes, vive-se como se Deus não existisse, no qual se reduz Deus a um conceito ou a uma regra, Lutero nos leva de volta ao Deus revelado em Cristo, que é Amor que se concretiza no Amor. O centro da sua vida e da sua reflexão, sem dúvida, foi a questão de Deus.
Atormentado desde a juventude pela questão da salvação, ele encontrou tranquilidade e alegria no princípio da justificação pela fé (cf. Romanos 1, 17). Portanto, a justiça de Deus não deve ser entendida em sentido ativo ou vingativo (um Deus justo que pune os pecadores), mas em sentido passivo ou justificativo (Deus que nos torna justos e que nos dá a santificação). Não são as obras, por boas que sejam, que obtêm a salvação, mas sim a confiança em Cristo, o único Redentor, que se comunica a nós pela fé.
Solus Christus, soli Deo gloria. O Deus terrível, assim, transforma-se no Pai da misericórdia, e o Cristo justiceiro, no único Salvador através da cruz. Lutero sente a incapacidade do esforço humano sem a graça, mas radicaliza essa doutrina levando-a ao extremo. Para ele, é impossível que o ser humano possa colaborar ativamente com a própria salvação, porque o pecado permanece; só que, pelos méritos de Cristo, ele não nos é imputado.
Sola Scriptura, sola gratia, sola fide. As consequências da percepção luterana levaram à negação do livre-arbítrio, à inovação dogmática dos sacramentos, à rejeição da missa como sacrifício, à negação do sacerdócio ministerial, à demolição do magistério e da hierarquia eclesiástica, à demonização do papado. No entanto, Lutero mostra-se surpreendentemente servil em relação aos príncipes protestantes e se manifesta como um apaixonado defensor da legítima ordem social e política, até mesmo a um preço caro.
A sua posição na Guerra dos Camponeses (1524-1525) nos oferece um bom exemplo disso e constitui uma das características mais discutidas do reformador. Assim como outros dois aspectos presentes em Lutero, que lançaram uma sombra obscura sobre a história dos últimos séculos: o nacionalismo e o antissemitismo.
A figura de Lutero não é de fácil interpretação, mas, sem dúvida, é fascinante. É cheia de contrastes que tornam difícil a objetividade e a equanimidade, mas oferece traços enormemente inovadores e é, sem dúvida, muito atual. Apesar dos cinco séculos passados, ele continua despertando reações extremas: a adesão ou a rejeição visceral.
E, no nosso âmbito agostiniano, infelizmente, ele ainda continua desconhecido. Na ordem, precisamos de especialistas em Lutero, tanto no campo histórico, quanto no teológico. Espero que esta comemoração da Reforma luterana seja um apelo e um impulso aos estudos nessa direção. Sou grato pelo interesse manifestado e pelas iniciativas empreendidas nas diversas circunscrições da ordem, sobretudo em campo acadêmico, com a organização de ótimos congressos, jornadas de estudo e publicações.
O Conselho Geral quis se envolver nesse sentido, encorajando a organização do congresso intitulado “Lutero e a Reforma: Santo Agostinho e a Ordem Agostiniana”, que se realizará em Roma de 9 a 11 de novembro. Espero que seja um bom ponto de partida.
Desejo concluir com uma afiada reflexão do Papa Bento XVI, feita no Augustinerkloster de Erfurt, durante a viagem à Alemanha:
“Para Lutero, a teologia não era uma mera questão acadêmica, mas a luta interior consigo mesmo, que, no fim de contas, era uma luta sobre Deus e com Deus. ‘Como posso ter um Deus misericordioso?’ O fato de essa pergunta ter sido a força motriz de todo o seu caminho, não cessa de maravilhar o meu coração. Com efeito, quem ainda se preocupa com isso hoje, mesmo entre os cristãos? O que significa a questão de Deus na nossa vida, no nosso anúncio? Hoje, a maioria das pessoas, mesmo cristãs, pressupõe que Deus, em última análise, não se interessa pelos nossos pecados e pelas nossas virtudes. Ele bem sabe que todos nós não passamos de carne. Se se acredita ainda em um além e em um juízo de Deus, praticamente quase todos pressupõem que Deus deve ser generoso e, no fim de contas, na sua misericórdia, ignorará as nossas pequenas falhas. A questão não nos preocupa mais. Mas, verdadeiramente, são tão pequenas as nossas faltas? Talvez, o mundo não é devastado por causa da corrupção dos grandes, mas também dos pequenos, que pensam apenas na própria vantagem? Talvez, ele não é devastado por causa do poder da droga, que vive, por um lado, da ambição de vida e de dinheiro e, por outro, da avidez de prazer das pessoas que a ela se abandonam? Não estaria, talvez, ameaçado por uma crescente predisposição à violência que, não raramente, se mascara sob a aparência de religiosidade? A fome e a pobreza poderiam devastar a tal ponto regiões inteiras do mundo, se estivesse mais vivo em nós o amor de Deus e, a partir dele, o amor ao próximo, às criaturas de Deus, aos homens? E as perguntas nesse sentido poderiam continuar. Não, o mal não é uma inépcia. Mas ele não poderia ser tão forte, se verdadeiramente colocássemos Deus no centro da nossa vida. Esta pergunta que inquietava Lutero – Qual é a posição de Deus a meu respeito, como me encontro diante de Deus? – deve se tornar de novo, certamente de forma nova, também a nossa pergunta, não acadêmica, mas concreta. Acho que esse é o primeiro apelo que deveremos sentir no encontro com Martinho Lutero.”
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Lutero e a ordem agostiniana, a cinco séculos da Reforma. Artigo de Alejandro Moral Antón - Instituto Humanitas Unisinos - IHU