04 Setembro 2024
"No limiar do Sínodo dos Bispos (e do Jubileu), uma discussão sobre a teologia que faz tradição e que, para honrar o seu serviço não deve cair nas armadilhas que enganam Otelo, Desdêmona e Cássio, deve manter o olhar fixo nos dois focos destacados pelos dois artigos de Dianich e Neri: sobre as questões vitais da existência comum, nas quais Cristo está incluído desde a raiz; e sobre as linguagens com as quais experimentamos hoje essa comunhão com Deus em cada ato da vida cotidiana", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano, comentando os artigos de Severino Dianich e Marcello Neri, em artigo publicado no blog Come se non, o3-09-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Segundo ele, "a correlação entre objetos a serem honrados e linguagens a não serem instrumentalizadas é o verdadeiro desafio para os teólogos católicos e para a teologia católica. A traição leva a uma quebra da relação de confiança e à desfiguração de si: também a teologia, repetindo as nobres palavras de K. Barth, por ser “a ciência mais bela, a que toca mais profundamente a inteligência e o coração, ... mas também a mais difícil e a mais perigosa... pode se tornar a pior coisa imaginável, a caricatura de si mesma".
No Otelo, de Shakespeare, a traição é atribuída simultaneamente a Iago, a Otelo, a Desdêmona e a Cássio. Iago trai intencionalmente seu comandante ao lançar dúvidas sobre a fidelidade de Desdêmona e Cássio. Otelo trai por fraqueza a fidelidade de Desdêmona, e Cássio parece para Otelo como o primeiro traidor. O drama se centra na ferida que a traição inflige à experiência dos homens e das mulheres: cega toda a lucidez, tira o freio a toda temperança, abre à perda de si mesmo. Não a traição, mas a suspeita de traição leva a trair a si mesmo. Até mesmo os intelectuais podem trair: traem como Iago, como Otelo, como Desdêmona e como Cássio. Há traições reais e aparências de traição: mas o que é aparente é, muitas vezes, mais consistente do que o que é real.
Toda tradição é exposição à traição: onde se confia, é possível ser enganado. Entregar-se é poder ser traído: entregar-se ao escudeiro, ao conselheiro ou à consorte é possibilidade de traição e ferida aberta. Mas a traição, como em Iago, pode assumir a forma da absoluta e deferente fidelidade; como em Otelo, da honra manchada a ser restaurada; como em Desdêmona, da relação mal interpretada ou como em Cássio, da rivalidade projetada. Você é um traidor, mas parece um servo fiel, você é um colaborador fiel ou uma esposa fiel, mas parece duplo, virado pelo avesso, reduzido a uma caricatura de si mesmo.
A história da Igreja Católica nos últimos séculos está repleta de “traições”: o inimigo coloca em perigo a tradição e a trai. O pior inimigo é, como sempre, o mais próximo, o falso amigo.
É por isso que ele deve ser isolado, refutado e, eventualmente, excomungado. De Lutero em diante, a história da relação entre tradição e traição é intensa e sofrida, traz luta e até mesmo sangue. Mas aquilo de que S. Dianich nos falou recentemente, em sua apaixonada intervenção em Settimana News (aqui), toca em uma questão muito delicada: ou seja, aquela “traição” que ocorre na forma do “serviço teológico”. O centro da traição, para S. Dianich, ocorre por causa de uma autocompreensão da teologia, que delimita o olhar às questões “internas” da Igreja. Todos os problemas fundamentais das mulheres e dos homens contemporâneos parecem ficar alheios ao trabalho teológico. Para Dianich, a traição consiste essencialmente no silêncio. Uma “traição dos teólogos” ocorre quando eles ficam em silêncio em vez de falar. Acima de tudo, porque não levantam a voz sobre o uso político das Escrituras e da liturgia, sobre a legitimação dos conflitos, das marginalizações e das injustiças por meio de uma referência a palavras e ações autorizadas que são falsas e traidoras. Sobre todas as questões que atribulam o mundo atual, parece que os teólogos não têm nada a dizer, exceto de forma genérica. Para Dianich, é aqui que reside o problema.
Nos dias seguintes, M. Neri retomou o texto de Dianich, sempre em SettimanaNews (aqui), mostrando outra questão. Para Neri, o problema não é tanto de “teólogos traidores”, mas da “teologia católica traidora”. A questão não diz respeito nem a indivíduos nem à comunidade teológica, mas à abordagem sistemática do pensamento católico, que se enrijeceu em uma contraposição entre interno e externo, entre fé e cultura, que nos últimos 200 anos se tornou um “espartilho” que comprime e paralisa toda a tradição. A teologia católica só poderá sair de sua “traição” se mudar a maneira de pensar sua relação com as culturas: somente se sair da ideia simplificada e falsa (e traidora) de um “mundo externo” no qual traduzir a mensagem “de sempre”.
Não há verdadeiros contrastes entre as duas análises: eu diria mais que uma implica a outra, embora falando a linguagem de duas gerações diferentes de teólogos. A forma dos dois textos mostra uma evolução da tradição. Para não alimentar uma “teologia que trai”, ambos acreditam que seria preciso um trabalho autocrítico sobre o sistema teológico gerado pela tradição moderna (tridentina) e moderno-tardia (séculos XIX e XX).
Uma autocompreensão rigidamente antimodernista da Igreja Católica gera paralisia da tradição e traição de sua própria identidade. Gera verbalizações autorreferenciais e silêncio sobre as questões. Também vemos um traço dessa tendência no caminho laborioso para a segunda Assembleia Sinodal sobre as sinodalidade, onde, por exemplo, em vez de enfrentar a questão dos sujeitos do ministério ordenado, pensa-se em converter a questão no artifício retórico da “ministerialidade da igreja”, onde até mesmo as ideias mais avançadas e respeitáveis podem ser utilizadas - mais ou menos conscientemente - para paralisar a tradição e impedir qualquer novidade.
Não a traição de Iago (essas são coisas da tragédia teatral, na Igreja são sempre casos-limites), mas a traição de Otelo, a traição de Desdêmona e a traição de Cássio é que estão na ordem do dia. O nosso Iago católico é a inércia do sistema moderno tridentino-oitocentista e as aparências de traição que paralisam a razão e autocensuram os corações: esse é o ponto de continuidade entre a análise de Severino e a de Marcello.
No limiar do Sínodo dos Bispos (e do Jubileu), uma discussão sobre a teologia que faz tradição e que, para honrar o seu serviço não deve cair nas armadilhas que enganam Otelo, Desdêmona e Cássio (sem esquecer o Iago sistemático, que canta como um baixo contínuo “il fazzoletto” criado por G. Verdi), deve manter o olhar fixo nos dois focos destacados pelos dois artigos de Dianich e Neri: sobre as questões vitais da existência comum, nas quais Cristo está incluído desde a raiz; e sobre as linguagens com as quais experimentamos hoje essa comunhão com Deus em cada ato da vida cotidiana.
A correlação entre objetos a serem honrados e linguagens a não serem instrumentalizadas é o verdadeiro desafio para os teólogos católicos e para a teologia católica. A traição leva a uma quebra da relação de confiança e à desfiguração de si: também a teologia, repetindo as nobres palavras de K. Barth, por ser “a ciência mais bela, a que toca mais profundamente a inteligência e o coração, ... mas também a mais difícil e a mais perigosa... pode se tornar a pior coisa imaginável, a caricatura de si mesma".
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O Iago sistemático e a traição da teologia. Sobre dois textos de S. Dianich e M. Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU